Mais de cem mil mortos por covid-19, em apenas cinco meses. A triste marca da pandemia impôs, ontem, uma dor lancinante em milhões de brasileiros que perderam familiares, amigos, conhecidos, vizinhos, artistas e tantos outros na luta contra o novo coronavírus. Em protesto ou em silêncio, o país expressou o pesar por todos que sucumbiram a uma doença que, letal e altamente contagiosa, adquiriu proporções amazônicas. Como ocorre desde o início da pandemia, políticos e outras personalidades da República se manifestaram sobre a covid-19, enfermidade que deveria ser debatida prioritariamente por autoridades sanitárias, mas foi duramente atingida pelo mal da politização. Com mais de três milhões de casos e uma quantidade de mortos , o Brasil chora pelas vítimas da covid-19, sem perspectivas de reduzir de maneira consistente o avanço mortal do vírus.
Em Brasília, o Supremo Tribunal Federal e o Congresso Nacional decretaram luto oficial. O Palácio do Planalto, por sua vez, não seguiu o gesto. Pelo Poder Judiciário, o presidente do STF, Dias Toffoli, lamentou. “Somos uma nação enlutada, que sofre pela perda de familiares, amigos e pessoas do nosso convívio social. Jamais vivemos uma tragédia desta dimensão em nosso país”, publicou o ministro. Na véspera da comemoração do Dia dos Pais, Toffoli se solidarizou em especial às famílias vítimas da pandemia. “São filhas e filhos que não mais estarão com seus pais no dia especial de amanhã. São pais que não terão o que festejar neste domingo”, escreveu o ministro.
Pelo Legislativo, o luto estabelecido no Congresso foi de quatro dias, em solidariedade a todos os brasileiros afetados pela pandemia e às vítimas. “Hoje é um dos dias mais tristes da nossa história recente”, lamentou o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), no comunicado feito por ele no Twitter. Com a decisão, as sessões na Câmara dos Deputados e no Senado Federal serão retomadas na quarta-feira.
O presidente da Câmara, Rodrigo Maia também se pronunciou. “Chegamos à absurda marca de 100 mil mortos pela covid-19. Número que, infelizmente, já havia sido previsto lá atrás, ainda na gestão do ex-ministro Mandetta”, publicou nas redes sociais. Maia ressaltou que a convivência diária com a pandemia não pode “anestesiar” os brasileiros a ponto de “tratar com naturalidade esses números”. “Cada vida é única e importa”, disse.
Nas redes sociais, a marca dos 100 mil motivou manifestações bem mais contundentes. A pergunta “E daí?”, pronunciada pelo presidente Jair Bolsonaro em abril, quando o Brasil contou 5 mil mortes, veio em tom crítico ontem. As hashtags #Bolsonaro100Mil e #CemMileDaí, que relacionavam a quantidade de perdas ao presidente, estavam entre os dez assuntos mais comentados do Twitter.
Frequentador profissional das redes sociais, o presidente silenciou ontem sobre a covid. Publicou sobre reforma de aeroporto, exportação de mel natural, digitalização de serviços, operações PF. Compartilhou uma foto com a camisa do Palmeiras para parabenizar o clube pelo título paulista conquistado ontem. Mas pouco falou sobre a quantidade exorbitante de vítimas da pandemia no país.
Ontem, o ex-capitão se limitou a republicar a nota da assessoria de comunicação do Planalto. “Lamentamos as mortes por Covid, assim como por outras doenças. Nossas orações e nossos esforços têm a força de um governo que dá tudo para salvar vidas”, dizia uma das mensagens, seguida pela afirmação de que “todas as vidas importam: as que vão e as que ficam”. Em outra publicação, o governo federal tentou isentar a responsabilidade sobre a centena de milhares de vítimas da pandemia. “Toda a assistência possível à saúde dos brasileiros foi dada.”
Pazuello também divulgou nota. “Não se trata de números, planilhas ou estatísticas, mas de vidas perdidas que afetam famílias, amigos e atingem o entorno do convívio social", disse o ministro interino. O general afirmou que o trabalho de enfrentamento à doença ocorre 24 horas por dia “em parceria com estados e municípios para garantir que não faltem recursos, leitos, medicamentos e apoio às equipes de saúde”.
Negacionismo
O tom foi bem mais duro entre ex-integrantes do governo Bolsonaro. Luiz Henrique Mandetta. O médico coloca no colo de Bolsonaro a culpa pelos altos patamares. “Cem mil vidas perdidas. Negacionismo, desprezo à ciência, perda de credibilidade e ausência de liderança. Solidariedade às famílias”, publicou ontem nas redes sociais.
Sergio Moro também se manifestou. “Não podemos nos conformar, nem apenas dizer #CemMilEdaí. São mais de 100 mil mortos; 100 mil famílias que perderam entes para a Covid. Que a ciência nos aponte caminhos e que a fé nos dê esperança”, tuitou o ex-ministro da Justiça. A mensagem foi rebatida na mesma plataforma pela secretaria de comunicação do Planalto. “Para um Governo, muito mais do que palavras bonitas, a melhor forma de mostrar que se importa é trabalhando. Estamos todos do mesmo lado da trincheira na guerra que foi imposta ao mundo todo. E o Governo do Brasil tem trabalhado sem descanso desde o começo”, informou o texto.
Instituições e entidades de saúde também lamentaram as mortes com discursos carregados de críticas ao governo e levantando a bandeira de melhorias ao Sistema Único de Saúde (SUS). O diretor científico da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia, César Eduardo Fernandes, ressaltou que os números são reflexos do descompasso entre as instâncias de coordenação. “A perda de 100 mil vidas é chaga que marca constrangedoramente a história do Brasil. É algo que não há como definir em palavras”, lamentou.
Para ele, a pandemia traz lições dolorosas para a sociedade e para a classe política em particular, que precisa valorizar a saúde. “Isso passa por mais investimentos no Sistema Único de Saúde (SUS), gestão responsável, combate à corrupção, valorização dos recursos humanos”, completou Fernandes, lamentando, ainda, a perda de médicos e profissionais da saúde no âmbito da pandemia. “O impacto poderia ser menor, todos sabemos, mas aqui faltou uma entidade forte para defender a classe”, criticou.
O dia também foi marcado por protestos e o palco foi, mais uma vez, a praia de Copacabana, na Zona Sul do Rio. “'Quando o Brasil chega à triste estatística de 100 mil brasileiros mortos pela covid-19, o Rio de Paz pergunta: por que somos o segundo país em número de mortos?”, dizia o cartaz fixado pelos organizadores na areia da praia. Quem participou do ato foi o taxista Márcio Antônio do Nascimento Silva, o pai que perdeu o filho de 25 anos para a doença e, no protesto passado, recolocou as cruzes derrubadas por um opositor.