Liberdade de imprensa

Funcionários da prefeitura do Rio impedem trabalho da imprensa em hospitais

Servidores públicos se organizam por meio de grupos no WhatsApp para vigiar hospitais municipais do Rio de Janeiro a fim de impedir o trabalho dos jornalistas. Eles são conhecidos como "Guardiões do Crivella"

Correio Braziliense
postado em 31/08/2020 23:05
 (crédito: Prefeitura Rio de Janeiro/Reprodução)
(crédito: Prefeitura Rio de Janeiro/Reprodução)

Um esquema montado com funcionários públicos da prefeitura para fazer plantão na porta dos hospitais municipais do Rio de Janeiro, foi relevado, nesta segunda-feira (31/8), pelo telejornal RJTV, Rede Globo. O intuito é atrapalhar o trabalho da imprensa e impedir que a população fale e denuncie problemas na área da Saúde pública do estado. A organização, segundo o telejornal, tem escalas diárias, horários rígidos e ameaças de demissão.

Os funcionários se organizam por meio de grupos no WhatsApp, um deles intitulado "Guardiões do Crivella”. Eles são distribuídos — em duplas ou sozinhos — por unidades de saúde municipais para fazerem uma espécie de plantão. Após serem escalados, segundo a reportagem, eles enviam selfies para comprovar que chegaram às unidades. Um dos funcionários do grupo aparece em várias fotos ao lado do prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella (PRB), e tem salário de mais de R$ 10 mil.

Após bater essa espécie de “ponto”, os funcionários públicos monitoram e relatam tudo o que acontece na porta das unidades de saúde. Principalmente a chegada dos jornalistas.

Entre os participantes de um dos grupos, um número chama a atenção. O telefone aparece registrado como sendo do próprio prefeito. A TV Globo apurou que o prefeito já usou esse número. A equipe de reportagem ligou, mas ninguém atendeu.

"O prefeito, ele acompanha no grupo os relatórios e tem vezes que ele escreve lá: 'Parabéns! Isso aí!'", contou um dos participantes dos grupos.

A prefeitura não nega a criação dos grupos e diz que faz isso para "melhor informar a população" justificando que, como, por exemplo, quando uma parte da imprensa veiculou que um hospital (no caso, o Albert Schweitzer) estava fechado, mas a unidade estava aberta para atendimento a quem precisava. A Prefeitura do Rio destaca que uma falsa informação pode levar pessoas necessitadas a não buscarem o tratamento onde ele é oferecido, causando riscos à saúde".

As 'invasões'

Em uma entrevista ao vivo para o Bom Dia Rio em 20 de agosto, no Hospital Rocha Faria, uma senhora cobrava a transferência para a mãe que tem câncer, mas não conseguiu terminar a conversa com a repórter porque dois homens começaram as agressões verbais e gritos de "Bolsonaro".

A repórter precisou, então, encerrar a reportagem e as agressões dos dois homens geraram uma confusão. Esse não foi um caso isolado, uma série de interrupções à imprensa já ocorrem no local. Os ataques, contudo, não acontecem por acaso. Ao contrário: são organizados e pelo poder público.

Pagos para atacar

Os agressores são contratados da prefeitura do Rio de Janeiro. Eles recebem salários pagos pelo contribuinte para vigiar a porta de hospitais e clínicas, para constranger e ameaçar jornalistas e cidadãos que denunciam os problemas na saúde da capital fluminense.

Nesta segunda-feira (31/8), o repórter Paulo Renato Soares, da RJTV, fazia uma entrevista na porta do Hospital Salgado Filho, no Méier. Assim que a entrevista começou, o entrevistado foi interrompido. Veja o diálogo que foi ao ar:

Funcionário da prefeitura: "Fala isso não, meu querido".
Entrevistado: "Oi?"
Funcionário da prefeitura: "Fala isso não, cumpadre".
Entrevistado: "Como, perdi um dedo, não posso falar?"
Funcionário da prefeitura: "Fala isso não, meu irmão".
Entrevistado: "Não tô falando do hospital, não. Estou falando de Rocha Miranda".
Funcionário da prefeitura: "Você foi bem atendido, não foi?"
Repórter: “Ele [o entrevistado] não pode falar da saúde?"
Funcionário da prefeitura: "Não".
Repórter: "O senhor pode deixar ele falar da saúde?"
Funcionário da prefeitura: "Está tudo indo bem, meu querido"
O repórter, então, começa a confrontar o funcionário:
Repórter: "O senhor é o senhor José Robério Vicente".
Funcionário da prefeitura: "O hospital está tudo certinho, meu querido. O prefeito está trabalhando correto e bem."
Repórter: "Quem está trabalhando bem?"
Funcionário da prefeitura: "Com certeza, o prefeito está trabalhando bem. Na saúde. Que negócio é esse, rapaz?"

José Robério Vicente Adeliano foi admitido na prefeitura em novembro de 2018, em “cargo especial”. O salário bruto é de R$ 3.229.

'Missão' antiga, intensificada na pandemia

O homem, entrevistado pela TV Globo, conta ainda que a tática foi adotada no fim do ano passado e aumentou durante a pandemia. “Nós temos essa missão lá já há mais de 8 meses. Antes, já estava funcionando, mas quando entrou a Covid em março, ficou todos os dias. Existe plantão nas unidades para poder cercear a imprensa”, relatou.

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