Pernambuco

"Minha preocupação é de fazer o certo", diz médico que fez aborto em menina

Acusado de assassino, obstetra que fez aborto em criança de 10 anos, estuprada pelo tio, diz ao Correio que não se intimida por pressão religiosa. Gravidez teve interrupção iniciada no domingo, em meio a protestos

Fernanda Strickland
postado em 18/08/2020 07:00 / atualizado em 19/08/2020 00:00
 (crédito: Luis Macedo/Câmara dos Deputados)
(crédito: Luis Macedo/Câmara dos Deputados)

O caso de uma menina de apenas 10 anos do Espírito Santo que precisou ser levada a Recife para poder interromper uma gravidez fruto de estupro praticado pelo próprio tio provocou grande repercussão nacional. A polêmica foi iniciada por grupos religiosos no domingo (16/8), que protestaram quando a criança deu entrada no Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros (Cisam), no Recife, para fazer o aborto, amparada no que rege a legislação brasileira.

O tio da criança, de 33 anos, é suspeito de abusar da menina desde que ela tinha seis anos. Ele foi indiciado pela Polícia Civil pelos crimes de ameaça e estupro de vulnerável. Enquanto ele permanece foragido, o aborto da menina, confirmado nesta segunda-feira (17/8), virou alvo de manifestações em todo o país, ganhando tom ideológico. Religiosos se manifestaram contra a interrupção da gravidez. A criança segue em observação. Expectativa é que ela volte para casa no máximo até quarta-feira (19/8), segundo informações do hospital.

Durante o domingo, no dia em que a menina chegou ao hospital para passar pelo procedimento médico de interrupção da gestação, grupos se manifestaram na entrada do local e tentaram impedir a entrada do médico responsável pelo procedimento na unidade de saúde, dirigindo a ele gritos de “assassino”. Ontem, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) publicou um artigo no qual um bispo de Rio Grande (RS) condena o ato. “A violência do estupro e do abuso sexual é infame e horrenda, mas a violência do aborto provocado em um ser inocente e sem defesa é tão terrível quanto. Ambos são crimes”, escreveu o bispo.

O alvo é o obstetra Olímpio Moraes Filho, diretor médico do Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros (Cisam), de Recife, que aceitou receber a vítima para realizar o procedimento autorizado em juízo. O médico foi “excomungado duplamente” pela Igreja Católica, uma delas por fazer o mesmo procedimento, mas em uma menina de 9 anos de Alagoinha (PE), também estuprada e grávida de gêmeos.

“Antes, eu tinha de lidar apenas com o arcebispo. Agora, também, tenho de lidar com os políticos; a bancada religiosa praticamente não existia e, agora, fazem uma pressão mais sentida. A realidade só tem piorado”, diz Olímpio, em entrevista ao Correio. Questionado sobre a possibilidade de mais uma excomunhão, numa espécie de trindade às avessas, o obstetra dá de ombros, como quem pega emprestado dose extra de paciência: “minha preocupação é apenas a de fazer o certo”.

O médico ressaltou que o pesadelo vivido pela menina do Espírito Santo não é incomum: “O que chama a atenção é que nos dois casos (no de agora e no de Alagoinha), a imprensa teve acesso ao caso e se fez polêmica. A realidade do dia a dia não tem essa atenção”.

Olímpio está certo. Em 2018, 21.172 bebês nasceram de mães entre 10 e 14 anos. Os dados são do Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos (Sinasc), gerido pela Secretaria de Vigilância em Saúde em conjunto com as Secretarias Estaduais e Municipais de Saúde. Na última década de publicação, de 2009 a 2018, foram registrados os partos de 26.126 mães com idades entre 10 e 14 anos, em média, por ano. Entre as mães com 15 a 19 anos, a média anual saltou para 509.576.

Parte dessas crianças e adolescentes se torna mãe por ter sido vítima de estupro. A cada hora, quatro meninas de até 13 anos são estupradas no Brasil, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2019. De acordo com dados tabulados pela BBC News Brasil no Sistema de Informações Hospitalares do SUS, do Ministério da Saúde, o Brasil registra, em média, seis internações por abortos diárias em meninas de 10 a 14 anos. Apenas em 2020 já foram registradas 642 internações do tipo.

Perigos

Diante da polêmica, o vice-presidente Hamilton Mourão se manifestou. “O nosso Código Penal é claro, em casos como esse o aborto é mais que necessário, é recomendado. Como é que uma menina de 10 anos de idade vai ter um filho e vai criar um filho?”, disse à BBC News Brasil.

A psicóloga clínica Irce de Carvalho diz que, além de mudanças no corpo, uma gestação traz alterações psicológicas. No caso da menina do Espírito Santo, há o agravante de ela estar sofrendo complicações sociais e familiares devido aos quatro anos do abuso. E, agora, teve outra marca: o aborto. “Se um adulto, que já tem consciência para lidar com isso, desenvolve algumas dificuldades psicológicas, uma criança precisará fazer um longo acompanhamento psicológico, um longo processo de formação, para que consiga recomeçar a vida.”

Apesar de, “teoricamente”, o corpo feminino estar pronto para uma gestação a partir de quando ela começa a menstruar, “esta menina, ao engravidar, pode sofrer sérias condições durante o período gestacional”. É o que alerta a ginecologista Silandia Freitas, do Hospital Universitário de Brasília. Entre os perigos, há o maior risco de doenças hipertensivas gestacionais, maior risco de diabetes gestacional, parto prematuro, entre outros.

*Estagiária sob a supervisão de Andreia Castro

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Para juristas, Sara feriu ECA

A militante bolsonarista Sara Giromini, a Sara Winter, usou as redes sociais para divulgar o primeiro nome da menina de 10 anos estuprada pelo próprio tio. Apesar de a publicação ter sido apagada, juristas afirmam que ela pode ter ferido ao menos quatro artigos do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e do Código Penal. As informações da vítima estavam protegidas por sigilo de Justiça.

A divulgação de dados da vítima de estupro aconteceu no domingo, pela conta de Sara no Twitter. Na ocasião, a extremista publicou a identidade da criança e o endereço do hospital que faria o procedimento para interromper a gravidez, previsto em lei. Ela também chamou o médico responsável pela unidade, Olímpio Moraes Filho, de “aborteiro”.

Sara não foi a única a divulgar informações sobre a criança. A Justiça do Espírito Santo atendeu pedido da Defensoria Pública do Estado e deferiu liminar no domingo, determinando que o Google, o Facebook e o Twitter retirassem, num período de até 24 horas, “informações divulgadas em suas plataformas sobre a menina de 10 anos que engravidou após ser estuprada em São Mateus”. O juízo estabeleceu multa diária de R$ 50 mil em caso de descumprimento.

Para o advogado Rogério Fontele, “no momento, a intimidade e honra da criança que sofreu o crime são mais importantes que o direito de expressão. Por isso, não há violação ao direito de expressão, quando é proibido divulgar qualquer informação sobre o caso”, explica.

Sara pode responder nas esferas criminal e cível por causa da exposição da menina. Para a advogada Cecilia Mello, ex-juíza federal e especialista em direito penal e administrativo, só do ECA ela poderia ser enquadrada em mais de um delito.

“O artigo 17 estabelece o direito ao respeito, que consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da identidade”, salienta a jurista.

A outra infração cometida seria ao § 1º do artigo 247, segundo a especialista. A legislação proíbe exibir, total ou parcialmente, qualquer ilustração de criança ou adolescente, que se refira a atos que lhe sejam atribuídos, de forma a permitir a identificação do jovem. A pena prevista é de multa de três a vinte salários — ou o dobro, em caso de reincidência.

Código Penal
Mestre em Direito Processual Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), o advogado criminal Fernando Castelo Branco afirma que, em tese, Sara também poderia responder por constrangimento ilegal e incitação de crime. Os delitos são previstos nos artigos 146 e 286, respectivamente, do Código Penal.

“O constrangimento teria sido gerado para os médicos, querendo proibi-los ou ameaçando-os a não fazer algo que a própria lei permite”, explica o advogado. Neste caso, a pena prevista é de três meses a um ano de prisão. Já a incitação, com pena de três a seis meses ou multa, seria por divulgar o nome do hospital e incentivar a ida ao local para impedir que o procedimento fosse realizado.

Chefe do movimento “300 do Brasil”, Sara Winter já responde a inquérito sobre atos antidemocráticos contra o Supremo Tribunal Federal (STF), motivo pelo qual chegou a passar nove dias presa neste ano. (FS* e MN)

Condições de alta
De acordo com o médico Olímpio Moraes Filho, o procedimento de interrupção da gestação, pelo qual ele foi responsável, teve início no domingo. "Ontem (domingo) mesmo foi procedido o óbito fetal, então não tem mais vida, o feto. E hoje (ontem) vamos proceder com o esvaziamento, que é para causar contrações para expulsão do feto. E esperamos, a partir de amanhã (hoje), em algum momento, que ela tenha condições de alta", afirmou. Questionado sobre o estado de saúde da menina, o médico disse que ela está bem. "Ela está bem, com apoio psicológico, assistência social e a avó. Está tendo algumas contrações, cólicas, mas está bem", afirmou. De acordo com a equipe responsável, a instituição optou pelo tipo de procedimento menos invasivo possível.

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