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Morte do poeta português Luís de Camões completa 440 anos

Histórias de aventuras que deixam o público com olhos vidrados, na beira da poltrona. Cantos apaixonados que podem estar nas mensagens para o Dia dos Namorados. Lutas mitológicas, combate com espadas, poderes sobre-humanos, mistérios transcendentais, ficção científica, inconformismo com o mundo em desconcerto... Tem também história de guerra na aparência, filosofia na essência. Com tantos ingredientes assim, quem já não enfrentou filas para garantir o ingresso para estreia daquele filme tão esperado, ou não maratonou a série e ficou ainda mais encucado? Luís Vaz de Camões, autor genial da língua portuguesa (nascido possivelmente em 1525), que morreu em 10 de junho de 1580, deixa leitores atordoados-vidrados há mais de quatro séculos. Ele tem que ser visto, segundo professores de literatura, mais do que um cânone ou leitura obrigatória para a prova da escola. Mas como um homem-narrador da pena forte, que alfinetou o racismo e homenageou as mulheres. Inovador, transgressor e muito à frente do seu tempo são adjetivos rotineiros. Para os mais jovens entenderem melhor, seria um “roteirista” para se maratonar. Episódios em versos em português. Mas, prepare o fôlego.

Assista a vídeo com entrevista de pesquisadores:

Com o fôlego preparado, é possível embarcar na aventura de época com o navegador Vasco da Gama, em Os Lusíadas, pelos “mares nunca d´antes navegados”, em pleno século 16, atrás de conquistas e terras distantes, com desafios e monstros pelo caminho. Fôlego, em outras obras, para o coração a fim de refletir como o “amor é um fogo que arde sem se ver” e “uma ferida que dói e não se sente” (Soneto 005). Se você reconhecer os versos, pode se pegar cantarolando trecho da música Monte Castelo, da banda Legião Urbana, com as lembranças do vozeirão de Renato Russo. O músico homenageou a genialidade do português em gravação de 1989. Na epopeia ou no poema lírico, Camões era de família da baixa nobreza, que serviu como soldado no norte da África, brigou na corte, perdeu um olho e foi exilado, transformou os versos em espada ou homenagens. Ele entrou para a história com obras fundamentais para entender o Renascimento na Europa. “Olha como é rico. Tem história, mitologia, feitos heróicos, amor... Os alunos gostam quando fazemos relação com o presente”, diz a professora universitária Sandra Araújo. Pesquisadores ainda buscam detalhes da vida do autor que morreu com 55 anos de idade, pobre e triste.

Aventure-se na leitura de Os Lusíadas (domínio público)

 

 

Esse século 16 revolucionário...

 

“Estudar autores como Camões nos dá repertório para entender o que é ser cidadão do Ocidente na modernidade. Possibilita entrar em contato com o outro sem necessidade de aprender outra língua”, explica o professor Márcio Muniz, que ensina literatura portuguesa na Universidade Federal da Bahia (UFBA). Para o especialista, o século 16 é o grande momento da revolução tecnológica. Isso chegou a nosso tempo pela arte e literatura. “O ser humano viveu isso na pele. O primeiro grande passo para a globalização. O que as navegações fizeram foi levar o homem ocidental a conhecer outros povos com outras tecnologias. Trata-se de um momento muito semelhante ao que estamos vivendo hoje”, compara. Muniz contextualiza que os pensadores se reafirmam como modernos e se afastam do “atraso” da Idade Média, de um passado que era “necessário negar”.

“Nem havia ainda esse sentimento da globalização. E ele tinha esse pensamento de universalidade”, diz a professora Sandra Araújo, ao destacar que o pensamento de Camões vai além das fronteiras.

Viver essa modernidade, porém, era dramático. Uma expressão para definir aquele tempo era o “desconcerto do mundo”, utilizado pela literatura, inclusive pelo avanço da tecnologia. “Não é porque o mundo está sem conserto. Mas porque há a ideia de que o mundo está fora do lugar, fora da ordem. Uma ideia de que nos sentimos fragilizados e injustiçados por esse mundo, e cheio de ameaças”, afirma Márcio Muniz. Camões é autor de um poema sobre o tema do desconcerto do mundo, de teor filosófico e existencialista. “O autor tem um senso de justiça e de ser injustiçado, e que pode conquistar os alunos. Camões trata de temas próximos da angústia da transformação, próximos dos sentimentos dos jovens. Isso pode explicar por que ele é tão recorrente”, destaca o docente da UFBA.

A professora Luciene Rêgo acredita que os temas tratados pelo autor podem ser reinterpretados para os dias atuais. “Com a pandemia em que vivemos na atualidade estamos descobrindo novos valores, nossos heróis hoje são os profissionais da saúde e trabalhadores dos serviços essenciais”. Eles têm suas próprias epopeias.

Camões lendo Os Lusíadas a D. Sebastião, em litografia de 1893 - Wikipedia Commons

O espírito aventureiro de Camões possibilitou que ele encontrasse o “outro” ser humano, o não europeu, e isso foi fundamental para o amadurecimento dos seus versos, conforme explicam os especialistas. “Há o encontro da maravilha com o que é diferente. Era ficção científica e, de repente, se torna real. O poema que ele escreve sobre Bárbara, que não tinha o mesmo perfil de uma mulher europeia, é belíssimo. Ele fala que a escrava deixa o amor dele cativo. É um poema inusitado para a época e podemos discutir sobre o combate ao racismo com o encontro do outro”, afirma o professor.

O texto fala sobre “pretidão de amor” dentro de um modelo retórico da época. A professora Sandra Araújo entende também que é um exemplo de como o autor escreveu contra o preconceito. “Muito à frente do seu tempo”. Para a professora de literatura Luciene Rêgo, coordenadora pedagógica em Brasília, estudar a lírica camoniana é “constatar a que grau de excelência o ser humano pode chegar quando se põe a expressar criativamente, sob forma de poesia, seu estar no mundo”.

Túmulo de Camões está no Mosteiro dos Jerónimos, em Lisboa - Wikipedia

Para os professores, a epopeia de Os Lusíadas (1572), é a mais representativa do Renascimento europeu. O trabalho sobre a narrativa heroica da história da viagem de Vasco da Gama ao Oriente, de Portugal como um todo, e de um povo destinado à vitória. Traduz essa época com um canto de louvor ao país e por pertencer ao lugar. “Trata-se de um texto feito em uma época muito próxima do auge da potência portuguesa, mesmo tendo apenas cerca de um milhão de pessoas. Ele vive aquilo de uma forma muito intensa”, diz Muniz. Para Sandra Araújo, os seres mitológicos encantam os leitores. “Ao mesmo tempo em que Vênus abre os caminhos para Portugal, traz as ninfas. É o amor que salva.”

“Nós ainda consumimos esses tipos de narrativa de ação e de fantasia, como Percy Jackson ou Harry Potter”, diz o professor Márcio Muniz.. Tanto que, durante a viagem, as brigas entre deuses e seres mitológicos emolduram a história formada por realismo e fantasia. “Acredita-se que ele demorou 10 anos para escrever essa história. Ao mesmo tempo, ele percebe um caminho de derrocada do país dele”. Ao final da obra épica, Camões se apresenta desiludido. “Camões entendia que a solução era o amor”, ressalta a professora Sandra Araújo.

Influência para o Brasil

É tangível a influência de Camões para a literatura brasileira, segundo os pesquisadores. Eles ressaltam que a literatura produzida no país por mais de três séculos é luso-brasileira. Nesses séculos buscava imitar os modelos e suplantá-los. "Assim como Camões tinha os modelos de Petrarca, Homero e Dante, o autor português foi modelo para os brasileiros”, diz Muniz.

A influência é visível, inclusive, para os autores brasileiros contemporâneos. “Tem um grande narrador do Rio Grande do Sul, o Tabajara Ruas, que conta a história da guerra dos Farrapos 'Os varões assinados'. Ou na Bahia, sobre a guerra dos Canudos, Francisco Mangabeira escreve Tragédia Épica em 10 Cantos”.  

Luciene Rêgo contextualiza que a epopeia é trabalhada no Brasil “maravilhoso cristão ou indígena”, como O Uraguai, de Basílio da Gama, Caramuru, de Santa Rita Durão, e, em I-Juca Pirama, de Gonçalves Dias. Ela ressalta ainda alguns poemas narrativos herói-cômicos da literatura brasileira, como O Reino da Estupidez, de Francisco de Melo Franco, O Desertor, de Silva Alvarenga, O Almada, de Machado de Assis, e O Elixir do Pajé, de Bernardo Guimarães. João Cabral de Melo Neto, da terceira fase do Modernismo, escreveu Morte e Vida Severina.

 "Apesar de não termos as musas ou ninfas mitológicas, aos moldes homéricos e camonianos, temos a construção da figura dos heróis e espaços narrativos, fazendo parte do gênero poema narrativo, o que poderíamos denominar como uma epopeia moderna”. A professora de literatura Sandra Araújo destaca também influências nas narrativas de autores como Ariano Suassuna, em obras como O Auto da Compadecida e também em Romance d'A Pedra do Reino. São também páginas brasileiras de ficção, epopeias tropicais,que ajudaram a constituir e aquecer essa cultura nacional como uma espécie de canto de amor, “um fogo que arde sem se ver”.