A filosofia hippie pode não ter ido para frente, mas a região prova que os caras da paz e do amor tinham razão ou, pelo menos, sabiam escolher bem seus paraísos particulares. Os atrativos do lugar continuam apoiados em belas paisagens e sustentabilidade, acrescidos do conforto de boas pousadas. A região também se destaca por algumas aparições improváveis, como a de um grupo de tropeiros que seguem à risca os costumes de décadas atrás.
Passear por lá faz lembrar uma velha frase: ;Fulano ainda está voltando de Kombi de Woodstock;, usada para fazer uma gozação com quem viveu os loucos anos 1960 e até hoje passeia no mundo da lua. Se os ripongas não são mais a marca registrada local, parece que aquela antiga Kombi, toda colorida, ainda roda nesses pontos do alto da Mantiqueira, numa viagem sem fim.
Os titãs do tropeirismo
A cena, surpreendente, aconteceu na vila de Maromba, um dos distritos cravados no alto da Serra da Mantiqueira, na divisa dos estados do Rio de Janeiro e Minas Gerais: eis que na estradinha de terra surge, montado numa mula, Jair Fernandes Fonseca, de 60 anos, completados recentemente. A figura, apesar do cabresto nas mãos, pode ser definida como um símbolo de elegância discreta, um senhor bem apessoado.
A camisa vermelha berrante, impecavelmente bem passada, está por dentro da calça. Na cintura, o indefectível canivete; na cabeça, o chapéu, parecendo novo. O item contrastante é a galocha, que, convenhamos, não fica bem com nada. Mas o conjunto acaba harmônico e asseado, como alguém que tivesse se vestido para ir à missa de domingo. O que destoa de tudo é saber que esse senhor é um tropeiro e começa a empreender uma longa jornada em cima do animal.
Por que alguém se vestiria tão bem para fazer um caminho de terra, serra, lama e água? Seu Jair agradece o elogio e diz que gosta de andar assim, mesmo nas horas de pura labuta. Enquanto desenrola o queijo canastra ; guardado em embalagem própria para viagens no lombo de animais ;, conta que frequenta as vilas de Mauá, Maromba e Maringá há 20 anos, quando resolveu ser também tropeiro, uma atividade a mais em seu mundo de pequeno produtor rural.
Todas as sextas-feiras, ele e um grupo apeiam na região das vilas, levando produtos para vender. A jornada começa na pequena Fragária, distrito de Itamonte, em Minas Gerais. Dali cruzam as serras, o ;mar de morros;, como chamam, para seis horas depois chegar ao destino. No caminho, a divisa com o estado do Rio de Janeiro, a beleza do cenário da Serra da Mantiqueira, e alguns temerários desfiladeiros. Na carga de Jair e de seus companheiros, delícias produzidas lá no alto das montanhas: geleia, mel, ovos caipiras e o campeão de vendas, o queijo canastra, esperado com ansiedade por turistas e comerciantes.
Há também a truta, limpa e embalada de véspera, para seguir viagem acondicionada no gelo. Esse peixe encontra excelentes condições para procriar nos trutários do alto da Mantiqueira, onde clima, altitude e boa água são como maná para a espécie. Geralmente, seguem com seu Jair os tropeiros Jesuel, Paulo Fonseca e Natanael, que formam um grupo quase permanente, além de um ou outro lá do alto. Saem na sexta-feira cedo e chegam no mesmo dia, para voltar no domingo de manhã. Se o comércio ajudar, o retorno é mais fácil, sem o peso das mercadorias.
O grupo se tornou famoso depois que um programa semanal de tevê contou sua história. O sucesso das vendas está na qualidade dos produtos da roça e também na apresentação dos tropeiros, que conquistam facilmente a simpatia dos compradores. Pense bem: você chega em casa e mostra orgulhoso o superqueijo canastra comprado diretamente de um tropeiro, por menos de R$ 20 a peça de 1kg. Sucesso garantido!
O ofício, hoje visto até com um certo romantismo, está em extinção no Brasil. Pelo menos não tem mais a força de séculos atrás, até começar a declinar por volta de 1950, com o advento das estradas melhores e dos veículos de carga. Presenciar esses homens andando pelas ruas de terra das vilas ou seguindo por caminhos na serra é como ver um belo filme em preto e branco. Com direito a reprise todos os fins de semana.
O jornalista viajou a convite da Tereza Quinderé Comunicação
A matéria completa você lê na edição de hoje do Correio Braziliense