Gustavo Oliveira - Especial para o Correio
Que força é capaz de unir 15 pessoas desconhecidas, para caminharem durante seis dias, acampando em meio a um grande cerrado aberto e enfrentando todo tipo de intempérie? Só a força da natureza. Ir ao estado de Roraima para uma aventura desgastante e emocionante e escalar o Monte Roraima não faz parte dos planos de viagem da grande maioria. Quinze pessoas de vários pontos do Brasil ; mineiros, paulistas, cariocas, brasilienses, cearenses e amazonenses ;, encararam a trilha e voltaram com muita história para contar.
Na fronteira entre Brasil, Venezuela e Guiana, quase tudo que envolve o Monte Roraima é grande. O esforço, o cansaço, a expectativa, a beleza, a mística, a caminhada e o próprio monte. Mas nós, veja a ironia, ficamos muito pequenos. Com respeito e humildade, atravessamos um cerrado aberto para chegar até a sua base, admirá-lo e nos perguntar se conseguimos subir. Não é uma tarefa fácil. Porém, muito gratificante. Daquelas que ficam na memória e no coração.
Gustavo Oliveira é designer e diretor de arte
Primeiro dia
Saímos de Boa Vista até Santa Helena de Uairen, cidade venezuelana fronteiriça com o Brasil. Lá, compramos todos os mantimentos para a viagem, trocamos os carros por caminhonetes 4x4 e rumamos para Paratepuy, onde está uma pequena comunidade indígena. Começamos a caminhada. Serão, a partir daqui, seis dias para ir, subir ao monte e voltar. Caminhando.
O peso da mochila é de mais ou menos 10 quilos. As barracas, os suprimentos e a comida vão nas costas dos carregadores, acostumados a levar 20kg ou 30kg em mochilas rústicas, feitas de palhas trançadas, formando uma grande cesta. O resto é contigo.
Depois de caminhar por quatro horas e presenciar um belíssimo arco-íris, chegamos ao primeiro acampamento: o Ték, nome dado ao rio que o banha. Aqui, podemos ver ao longe o Kukenán, o monte que fica ao lado do Roraima. À noite, depois de um banho nas águas geladas do Ték, observamos o céu estrelado brindando-nos com a silhueta das serras ao longe.
Segundo dia
O sol banhava o monte numa luz dourada que o deixava ainda mais belo e temido. Os dois montes são conhecidos também pelas cachoeiras que os banham. No Kukenán, que significa ;águas turvas;, existe o salto de mesmo nome, uma queda de água não permanente e com 610m de altura. Já no topo do Roraima está localizada a nascente de três rios. Por isso, para alguns habitantes da região, o monte é conhecido como ;mãe de todas as águas;.
A caminhada começa com a travessia de dois rios: o Ték e o Kukenán. Nos próximos nove quilômetros, andamos debaixo de um sol quente ao longo da savana venezuelana, numa subida longa, interminável, inclinada, com mais de 800 metros. A distância, avistávamos o grande Monte Roraima. E, conforme andávamos, o monte ia ficando mais alto. A 1.870 metros de altitude, aos pés do morro, paramos para dormir no acampamento-base.
Terceiro dia
O dia seguinte nos aguardava com uma subida até os 2,7 mil metros de altitude, o topo do monte. Era hora de preparar mais uma vez a mente, o corpo e o espírito. Ao longo da subida, em alguns trechos é preciso engatinhar e escalar paredões de praticamente 80 graus de inclinação. Começamos o dia aliviando o peso da mochila para subir mais leves.
São três horas até o topo, numa trilha dura e íngreme, que mistura cansaço e vistas incríveis. À certa altura, quase no topo, tivemos um dos momentos mais bonitos de toda a caminhada: o Passo das Lágrimas. Passamos por baixo da cachoeira, que está ali perfeitamente criada para nos brindar com suas gotas de água refrescantes. A vista deste ponto é linda. Estamos acima da metade da altura do monte.
Em menos de uma hora, alcançamos o topo, uma superfície rochosa negra, disforme e irregular, com pequenos arbustos, morros e poços de água por todos os lados. Não há nada parecido em lugar nenhum. Na beirada do monte, uma vista do topo do céu, acima das nuvens, a quase um quilômetro de altura. Mas ainda era preciso andar uns 40 minutos até o nosso acampamento, o Guaxaro, que nada mais é do que uma grande caverna incrustada num dos vários morros que existem em cima.
Desta caverna, caminhando por uns cinco minutos, alcançamos o paredão, na beira do monte, onde é possível ouvir o silêncio. Nada de buzinas, de música, barulho, nada. Silêncio absoluto cortado por revoadas de pássaros aqui e ali, que contribuíam ainda mais para a mágica do momento. Era a primeira noite no topo do monte. Silenciosa e fria.
Quarto dia
Exploramos o topo do monte. Sua área total é de 35 quilômetros quadrados. Lugar com rios, lagos, montanhas, formações rochosas, cristais, arbustos e plantas únicas. É possível chegar à tríplice fronteira entre o Brasil, a Venezuela e a Guiana fazendo um percurso de 24 quilômetros. Optamos por fazer uma caminhada de uns 10km, cheia de paisagens de cair o queixo.
Por cerca de oito horas, andamos por trilhas em que cristais brotavam do chão. Passamos pela jacuzzi, assim chamada por ser uma série de poços de águas cristalinas desaguando um no outro, formando pequenas piscinas conectadas entre si.
Chegamos a um precipício, numa outra ponta do monte, quando, no percurso, apesar do dia ensolarado, uma nuvem tomou conta e tudo ficou branco. O que se via pela frente eram apenas silhuetas dos trilheiros e das rochas em meio a uma neblina espessa. Na volta ao acampamento, curiosamente, o tempo abriu e chegamos com o céu limpo. Havíamos caminhado num cenário lunar, com uma paisagem de encher os olhos e o coração, ora sob o sol, ora por entre as nuvens.
Depois do jantar, chegou a hora de se despedir do céu. Era nossa última noite no topo. Olhando para cima, havia um brilho infinito de estrelas e apenas a silhueta negra da montanha que abrigava nossa caverna.
Quinto dia
Descemos o monte em mais ou menos três horas, e pelo caminho passamos por várias pessoas. Há uma história, contada pelos índios, segundo a qual a montanha não gosta de barulho e confusão. E quando isso acontece, ela se irrita e faz fechar o tempo lá em cima.
Chegamos ao acampamento-base para um almoço rápido. Ainda teríamos todo o caminho de volta até o acampamento Ték. À medida que descíamos, olhando para trás, o monte ficava cada vez menor e mais distante. E por mais incrível que pareça a história contada pelos índios, ao longe víamos que o tempo no topo havia mesmo fechado. Sinal de que cairia chuva ali em cima. Por volta das 16h, chegamos ao Rio Ték, depois de percorrer o trajeto de dois dias em apenas um. Banho revigorante, roupas limpas, corpo são e mente ainda mais, prontos para comemorar a chegada.
Sexto dia
Depois de uma noite de festa, começamos o sexto dia com mais quatro horas de caminhada até Paratepuy, onde fomos saudados com a cerveja mais gelada e a recepção mais calorosa.
A alegria e a satisfação eram imensas, mas ao mesmo tempo sabíamos que ali acabava um momento mágico na vida de todos. Apesar de ser uma trilha extrema, com quase nenhum conforto e muito cansativa, a subida do Monte Roraima é muito prazerosa e compensadora. Nada supera a emoção de saber que somos capazes de, com todas as nossas limitações e imperfeições, superar as dificuldades e completar o trajeto.
Seja você um adolescente, um idoso, atleta ou não, se tem força de vontade e ama a natureza, o Monte Roraima pode se tornar o destino certo para sua próxima viagem. Faça-o com calma, respeito e admiração. Tire muitas fotos e aproveite. Esta é uma viagem para poucos. E para sempre.