Não, a foto desta página não é montagem, como pode parecer. Os carros realmente estão lá e o fundo retrata uma cena cotidiana do comércio em São Paulo, na década de 1920. A imagem pintada é uma expressão de pura arte, vinda do grafite, feita em terceira dimensão, pelo Studio Kobra, que tem sede em Minas Gerais. Nesta edição, apresentamos uma viagem pelo mundo colorido (ou não) do grafite. A capital paulista, Nova York e outras partes do mundo mostram seus espaços, paredes e painéis trabalhados pelos artistas para quem ;a felicidade é um muro branco; ; como decretou John Howard, artista norte-americano radicado no Brasil.
A moça de maria-chiquinha e vestido verde oferece uma flor. Sobre a cabeça, um trecho de Guimarães Rosa: ;Felicidade se acha em horinhas de descuido;. A gueixa moderna olha quem passa com ar de desinteresse. Sob um viaduto da Avenida Sumaré, em São Paulo, ela repete a expressão, agora em companhia da menina com traços de mangá que dorme vigiada pelo gato preto. Quem serão essas personagens?
Sobrou para o Batman
; Marlyana Tavares
Na Vila Madalena, em São Paulo, o beco que leva o nome do homem-morcego é um lugar perfeito para observar o trabalho dos grafiteiros e tirar muitas fotos dos muros coloridos
O passante que se dispõe a percebê-las em meio ao caos urbano encontrará outros cenários, figuras, situações e abstrações que se sobrepõem à azáfama do trânsito para se tornarem, elas mesmas, integrantes do cotidiano. Em muros, sob viadutos, no chão e em equipamentos urbanos, os grafites de São Paulo amenizam a crueza do asfalto, embelezam o cinza e transmitem mensagens.
Se para Rosa ela está em ;horinhas de descuido;, para John Howard, ;a felicidade é um muro branco;. Ele é um conhecido grafiteiro que começou a se expressar pelas ruas em 1975. Lá se vão uns bons anos e hoje, ainda que menos reconhecida no Brasil do que em outros países, a arte das ruas ganha impacto em vários bairros da maior capital do país.
Na boêmia Vila Madalena, descendo pela Rua Cardeal Arcoverde, o grafite aparece em viadutos, escadarias, muros e caixas de energia. No Beco do Batman (olha só a metáfora), com entrada pela Rua Harmonia, encontramos, numa gelada manhã de sábado, o tatuador Wagner Roza, de 25 anos, o motoboy Dhaner Reale, de 29, e a assistente administrativa Verônica Leão, de 25.
Tremenda sorte topar com os três em plena atividade: eles limpavam um dos muros para retocar o grafite de sua autoria. Sim, porque pelo código de ética, grafiteiro que é grafiteiro só renova o próprio muro. ;Está vendo aquele grafite ali no portão? Foi feito pelo Nigas, um grafiteiro que já morreu. Mesmo que ele não esteja mais aqui, tem o respeito das ruas: ninguém vai lá pichar em cima;, garante Dhaner.
Dhaner, ou DRXIII, como se identifica em seus desenhos, prefere usar as tintas para louvar a natureza, com seus pássaros imaginários. O amigo Wagner, que assina o sugestivo nome de Legalize, se expressa em seus desenhos contra o poder, valendo-se de coroas e temas indígenas: ;A coroa significa o poder, e o índio, o que o poder matou;, explica. Verônica, a Verishas, mulher de Dhaner, adora bonequinhas, flores e borboletas. O cozinheiro Miguel Bushatsky, de passagem por ali, aprova esse tipo de expressão. ;Passava antes no beco e achava triste ver as paredes sem cor. O grafite não só harmoniza, mas transmite uma mensagem;, diz.
Circuitos
No Beco do Batman, podem-se ver as obras de Speto, Ninguém Dorme, Chivtz, Boleta, Presto e Zezão, entre outros. Perto dali, o Beco do Aprendiz, com entrada pela Rua Belmiro Braga, é uma profusão de desenhos, cada um mais instigante do que o outro. Entre os autores, estão John Howard e Titi Freak. Mais adiante, na Avenida Henrique Shaumann, um dos mais expressivos trabalhos é o do Studio Kobra, com suas imagens tridimensionais que se fundem com a cena urbana.
Um imenso painel em preto e branco, retratando uma rua comercial nos anos 1920, mistura-se à paisagem caótica da maior cidade brasileira. Os carros parecem atropelar os senhores de chapéu coco e as senhoras de luva de filó que passeiam entre as lojas. Quem passa por ali se mescla e se confunde com os passageiros do velho bonde gravado em um muro da Rua Belmiro Braga.
Além da Vila Madalena, o Cambuci é parada obrigatória para os fãs de grafite. As principais ruas do circuito são Lavapés e Justo Azambuja. Seus muros guardam a obra da dupla Os Gêmeos (Gustavo e Otávio Pandolfo) e de Francisco Rodrigues, mais conhecido como Nunca. Os três viveram ali e integraram a mostra Street art, em 2008, que estampou a fachada da prestigiada Tate Modern, às margens do Rio Tâmisa, em Londres.
Outros pontos cobertos por painéis coletivos e trabalhos curiosos são o túnel da Paulista, que leva à Avenida Rebouças; as ruas Galvão e da Glória, na Liberdade, bairro oriental; o Viaduto do Minhocão; as margens do Tietê e a Rua da Consolação.