Seja para se dar bem em alguma situação, para evitar uma bronca por ter feito algo errado ou somente para contar vantagem, em algum momento da vida o ser humano mente ou inventa desculpas. O mentiroso que existe em cada indivíduo pode, porém, ser potencializado pela barreira da impessoalidade presente nas mensagens de texto. Pelo menos é esse o resultado de uma pesquisa desenvolvida na Universidade de British Columbia (Canadá) e na Universidade Estadual de Wichita (Estados Unidos), que será publicada na edição de março da revista Journal of Business Ethics. O estudo revela que distorcer a verdade ou inventar uma história é mais fácil de ser feito por SMS do que em conversas ao telefone, por videoconferência ou pessoalmente.
Um grupo de 170 estudantes participou da análise. Metade deles interpretou um corretor da bolsa de valores, enquanto os outros se passaram por compradores de ações. Os corretores foram informados de que as ações que possuíam perderiam 50% do valor em uma semana e que receberiam recompensas em dinheiro à medida que conseguissem vendê-las. Por sua vez, os compradores não sabiam que esses papéis teriam menos valor. As transações comerciais foram feitas por quatro meios: encontros cara a cara, conversas por vídeo ou por áudio, além do envio de mensagens de texto para celular.
Os vendedores mentiram sobre o que comercializavam em 83% dos SMS mandados. Esse percentual caiu para 71% nas ligações telefônicas e para 63,6% quando o assunto era tratado pessoalmente. Curiosamente, a quantidade de mentiras era menor nas videoconferências, ocorrendo em apenas 43% dos casos. ;As pessoas terem sido mais sinceras nos vídeos do que cara a cara com os compradores foi o mais surpreendente;, admite ao Correio o coautor do estudo Ronald Cenfetelli, professor da Escola Sauder de Negócios da Universidade de British Columbia. ;Com esses resultados, agora temos maior compreensão do papel da tecnologia na comunicação humana, principalmente quando utilizada por quem quer transmitir informações enganosas;, explica.
O líder da pesquisa, David Jingjun Xu, professor de administração de sistemas de informações da universidade norte-americana, complementa: ;Com essa análise, conseguimos fornecer orientações para profissionais de investigação ; como auditores contábeis ou policiais ; sobre como agir. As auditorias devem ser feitas pelo menos por vídeo, enquanto a polícia deve entrevistar vítimas, suspeitos e testemunhas pessoalmente, em vez de por telefone;.
;Sombra;
Segundo o psicólogo Fernando Almeida, especialista em psicologia analítica jungiana, quando alguém faz uma coisa errada, um dos mecanismos de defesa ao qual as pessoas recorrem se não estão seguras para assumir seus atos é mentir. ;Essa ação é facilitada por meio das mensagens de celular, porque a situação não é olho no olho, você não está diante de outro ser humano. Escondido, portanto, na obscuridade da falta de contato físico, de voz e visual, você pode apresentar sua sombra ; tudo o que a pessoa considera feio ou inadequado nela;, descreve. Almeida comenta que, na obscuridade, o indivíduo se sente mais livre para dissimular.
As características da mentira que não há como notar em trocas de SMS são diversas. Julio Pessôa, especialista em psicopatologias (transtornos mentais), cita algumas: ;Em encontros cara a cara, é possível observar se a pessoa está escondendo algo quando olha muito para baixo, gagueja, fica o tempo todo se movimentando ou se coçando. Quem mente não consegue encarar o enganado porque tenta desviar o foco do assunto em si;.
A secretária executiva Juliana*, 23 anos, admite mentir com mais facilidade ao enviar mensagens de texto para o celular de outras pessoas. ;Já fiz isso várias vezes, normalmente em situações em que marquei de me encontrar com alguém e estou atrasada para chegar ao local combinado;, conta. ;Sou muito enrolada, então, geralmente mando mensagens como ;estou chegando;, ;estou no meio do caminho;, ;em meia hora chego aí; para que a pessoa não fique com raiva;, explica a jovem.
Juliana conta que uma vez combinou de sair para passear com o namorado às 16h, mas cochilou durante a tarde e acordou apenas às 18h. ;Aí, mandei um SMS para ele avisando que já tinha saído de casa há muito tempo, mas que tinha dado um problema no ônibus;, recorda. A desculpa não colou, já que ambos só se encontraram uma hora após ela acordar, o que irritou o namorado. Segundo a jovem, faz sentido que os indivíduos costumem mentir mais por mensagem de texto do que em conversas ao telefone ou cara a cara. ;Ninguém te vê, ninguém ouve a sua voz. Assim, quem recebe o SMS não tem dicas de se você está dizendo a verdade ou não;, diz.
Sem perdão
Outra descoberta da pesquisa é que quem foi enganado por SMS ficou mais chateado do que quando a situação ocorreu por outros meios. Cenfetelli estima que a potencialização da raiva aconteça porque, ao estar frente a frente com alguém, há mais oportunidades para se construir uma relação, devido ao contato visual e à linguagem do corpo. ;Essa construção pode funcionar como um ;amortecedor; contra reações mais negativas por parte de quem ouviu a mentira. Meios de comunicação menos ricos, como o texto, não têm essa capacidade de transmitir emoções, o que serve para magnificar o sentimento de traição;, esclarece. Xu destaca que ;estudos anteriores mostram que as pessoas são mais propensas a perdoar quem as ofendeu se o autor tiver sido simpático;. Além disso, nas interações cara a cara, a pessoa busca relembrar a cena que envolveu a mentira, para pensar se não interpretou erroneamente a intenção de com que conversava.
Uma das vítimas desses ;enganadores por mensagens; foi a bióloga Camila*, 23 anos. Desculpas esfarrapadas e, em seguida, mentiras mais sérias enviadas a seu celular pelo namorado causaram o fim do relacionamento de cinco anos. ;No começo, eram só coisas do tipo ;não vi sua ligação; ou ;não posso falar agora;. Com o tempo, veio a história de que o celular dele não estava funcionando, mas, curiosamente, quando ele precisava falar comigo o aparelho voltava a funcionar e ele me mandava SMS;, lembra.
Ela descobriu as mentiras do então namorado após ele lhe mandar uma mensagem dizendo que estava em casa e, minutos depois, ela vê-lo em uma lanchonete. ;Ser enganada em si já é muito ruim, mas, por SMS, há o agravante de você não ter meios para saber se a pessoa está mesmo em casa ou em um lugar movimentado (por causa do barulho do local), enfim, de ao menos ter ferramentas que te passem a segurança de que se está falando a verdade ou não. Sem contar que mensagens são mais impessoais;, salienta.
O psicólogo Fernando Almeida credita essa chateação maior do enganado ao fato de que, ;em uma conversa em que as pessoas estão diante uma da outra, você tem como observar suas atitudes e reações;, enquanto ao telefone há a possibilidade de ao menos notar as alterações na voz. ;Na mensagem de texto, não, o indivíduo se esconde atrás de uma barreira e, assim, pode externar seu lado mais obscuro;, compara. ;Desse modo, a impressão que se tem do mentiroso é a pior possível, pois não permite que quem recebeu a informação tenha mecanismos para se defender;, conclui Julio Pessôa. ;Essa raiva, na minha opinião, também vem de a pessoa saber que a atitude de quem a enganou é extremamente covarde;, acrescenta. Além disso, o colega especialista em psicologia jungiana ressalta que o texto é algo registrado, o que faz com que o indivíduo, ao descobrir a mentira, tenha provas contra quem lhe mandou o conteúdo.
* Nomes fictícios a pedido dos entrevistados.