Não importa o tamanho do frisson diante de um lançamento eletrônico; em breve, ele será substituído por um novo modelo. É assim desde que a indústria passou a criar aparelhos em velocidade recorde, um superando o outro em questão de semanas. Nessa nova lógica, parece impossível pensar em pessoas comuns que gastem horas do seu dia tentando melhorar um equipamento já desenvolvido. Pois essas pessoas existem e formam um grupo cada vez mais organizado. São os entusiastas do open hardware ; ou hardware livre ; , gente que, com muita criatividade, constrói soluções capazes de revolucionar a tecnologia ou, no mínimo, aprimorar as invenções alheias.
O movimento open hardware surgiu no início dos anos 2000, mas passou a ganhar adeptos no Brasil somente agora. Nos últimos meses, pipocaram sites e blogs discutindo o assunto e, no fim de semana passado, Brasília sediou o primeiro encontro voltado para os defensores da causa. Assim como no software livre, não há a ideia de propriedade, todos podem copiar um modelo e customizá-lo a partir de suas necessidades. ;O fabricante divulga, na web, tudo que as pessoas precisam saber para construir aquela placa de computador: de que material ela foi feita, quais são seus circuitos elétricos, quais as linhas de código se houver um microcontrolador;, descreve o analista de informática Jerônimo Avelar Filho, uma das referências em hardware aberto na cidade.
Essa cultura do faça você mesmo aguça a mente de pessoas que gostam de tecnologia, mas que não têm um conhecimento profundo sobre o tema. Nos Estados Unidos, por exemplo, um inventor usou uma dessas placas para criar uma espécie de catálogo eletrônico de aves. Os animais eram atraídos para um recipiente equipado com sensores que registravam a passagem do bicho e acionavam uma máquina fotográfica. A imagem da ave era enviada instantaneamente para um banco de dados on-line, sempre atualizado. ;O open hardware despertou um espírito de Professor Pardal que estava morrendo;, diz Vinícius Senger, dono de uma empresa que vende produtos fabricados com um equipamento de domínio público.
A matéria-prima de Senger é uma placa Arduino, a mais famosa entre os amantes do hardware livre. Desenvolvida por uma equipe de italianos em 2005, ela está presente em inventos de sucesso em todo o mundo. ;Um colega criou uma fita que, acoplada à barriga da esposa grávida, captava cada chute do filho e enviava esse sinal como um tuíte;, conta Senger. A Arduino também é utilizada para que as pessoas aprendam a construir a parte física das máquinas. O empresário, que mantém uma rede de escolas de ensino de programação e robótica básica, usa a placa para estimular os estudantes. ;No começo, eu pensei em comprar kits da Lego, mas depois descobri a Arduino, que é muito mais barata e tem maior disponibilidade de peças no Brasil;, detalha.
E as aplicações não param por aí. Na Universidade de Brasília (UnB), um professor de arte eletrônica adota a Arduino para que os alunos criem sistemas eletrônicos capazes de suportar obras artísticas. Christus Nóbrega e sua classe também abrem circuitos fechados ; geralmente, de brinquedos chineses ; e modificam suas funções para dar origem a objetos artísticos. ;Estamos rumando para a solidificação de uma cultura do aberto e do livre no Brasil, e as universidades desempenham um papel muito importante nesse processo;, afirma Nóbrega.
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As mil e uma utilidades da placa italiana têm a ver com sua simplicidade. ;Ela vai além da noção de open hardware. Seus desenvolvedores fizeram de uma forma que ela fosse acessível a todos. Não é preciso ser engenheiro elétrico ou mecatrônico para trabalhar com a Arduino;, comenta o empresário brasiliense Lucas Fragomeni. ;Ela está para os nossos tempos assim como o PC está para os anos 1970;, diz. Esse potencial fez com que o rapaz mudasse seu ramo de atuação. Agora, Fragomeni trabalha com computação interativa e usa a Arduino para construir produtos que chamem a atenção das pessoas. Uma de suas invenções, feita em parceria com outra empresa, é uma máquina de escrever que tuíta. Para criar a engenhoca, a equipe de Fragomeni usou o mesmo princípio dos teclados de computador, inserindo um botão abaixo de cada tecla da máquina de escrever. Esse botão envia um sinal para a placa Arduino, que o transforma em linguagem binária. Uma entrada USB conecta os dois aparelhos.
Fora do Brasil, há uma infinidade de projetos que usam a Arduino ou outras placas livres. No Chile, por exemplo, um garoto de 14 anos conseguiu fazer um alarme sísmico mais rápido do que o utilizado pelo governo chileno. ;Também li sobre um guarda-chuva que mede a umidade relativa do ar e que fica vermelho, sugerindo que seu dono deve levá-lo ao sair de casa;, conta Fragomeni. A maioria desses inventos se encaixa na chamada internet das coisas, que é, grosso modo, fazer com que aparelhos e acessórios do dia a dia possam ser conectados e controlados a partir da rede de computadores. ;O open hardware está na fundação desse novo movimento, fazendo com que as pessoas desenvolvam coisas de forma experimental;, diz o empresário brasiliense.
E lucrativa
Mas, se todo mundo pode copiar a placa e ganhar dinheiro com ela, como fica a situação da empresa que a fabricou? Basicamente, ela desenvolve outros produtos associados ao hardware. A companhia pode, por exemplo, criar um GPS para ser acoplado a eventuais sistemas automobilísticos. Ou então projetar melhorias para a placa comum. Isso também pode ocorrer com outras empresas que queiram criar componentes acessórios. ;Nos Estados Unidos, há todo um setor que gira em torno disso, com empresas que já começaram a faturar US$ 1 milhão por mês;, conta o analista Jerônimo Avelar Filho.
Além disso, fragmentar a produção de eletrônicos pode evitar gastos com transporte e aprimorar as funções que sejam mais demandadas. ;Hoje, com R$ 1 mil, você monta uma oficina de hardware. É mais barato do que construir uma marcenaria;, compara o empresário Vinícius Senger. Um dos desafios, dizem os especialistas, é abrir a cabeça para que novos inventores sejam formados. ;Atualmente, todos compram os seus equipamentos Apple completamente lacrados, sem um parafuso. As empresas tiraram de você o direito de abrir, mexer e instalar o que você quiser;, lembra Senger. ;O open hardware devolve esse poder para as pessoas.;
Código aberto
Software livre é aquele programa de computador que pode ser copiado e usado sem qualquer restrição, segundo conceito da organização internacional Free Software Foundation. É o contrário da definição de software proprietário, uma tradução incorreta do inglês proprietary. Nesse caso, o dono da ferramenta proíbe a sua cópia e distribuição e restringe o uso a condições determinadas no contrato de compra da licença.