Jornal Correio Braziliense

Superesportes

Uma mancha avança no futebol

De acordo com o Observatório da Discriminação, até novembro passado foram registrados 47 casos de ofensas, sobretudo por cor da pele. Cenas abjetas têm sido vistas em vários campeonatos




Aconteceu no último domingo. O zagueiro Matheus Thuler, do Flamengo, foi acusado de racismo após chamar o atacante Lincoln, seu colega de time, de ;macaco;. Foi durante um vídeo junto do meia Vinícius Souza, da base do clube, e explodiu nas redes sociais.

Na live (vídeo ao vivo) com os torcedores, Thuler chama o amigo, que não responde, e pouco depois chama Lincoln: ;E aí, preto?; Vinícius interveio: ;Que é isso, cara?;, assim que escutou a palavra ;macaco;. O vídeo não está mais disponível, mas muitos torcedores salvaram o momento exato da ofenssa.

O episódio expõe um contexto mais amplo: o aumento dos casos de injúria racial no esporte brasileiro neste ano que se encerra. O Observatório da Discriminação Racial, entidade dedicada a pesquisar e discutir o tema, registrou 47 episódios no país até novembro. O número representa um crescimento de 6,8% em relação a 2018, quando foram registradas 44 ocorrências.

Os casos de 2019 representam a maior marca nos últimos cinco anos. ;Um dos maiores erros é enxergar cada caso como uma novidade. Todos estão inseridos em um contexto que exige preocupação e atitude;, explica Marcelo Medeiros Carvalho, diretor executivo do Observatório.

Para os especialistas, a questão está ligada a problemas estruturais da sociedade brasileira. O sociólogo Rogério Baptistini Mendes, da Universidade Mackenzie, opina que os episódios nos estádios de futebol reproduzem o processo de exclusão do negro na sociedade por conta da escravidão. Nos momentos de tensão social frequentes nos estádios, quando as pessoas são colocadas como torcedoras de times diferentes, a exclusão ressurge.

;A abolição da escravatura foi insuficiente para inserir o negro na vida social. O que nós imaginávamos que estivesse sendo mitigado com o avanço da educação e a melhoria das condições econômicas e políticas voltou à tona com a polarização da vida social nos últimos anos.;

Coragem para denunciar

Roger Machado, atualmente único técnico negro da Série A do Campeonato Brasileiro ; continua à frente do Bahia ;, concorda. ;Se não há preconceito no Brasil, por que os negros têm o nível de escolaridade menor que o dos brancos? Por que 70% da população carcerária é negra? Se não há preconceito, qual a resposta? Para mim, nós vivemos um preconceito estrutural;.

Para Marcel Tonini, pesquisador da Universidade de São Paulo (USP), vários fatores explicam o aumento dos casos. ;Primeiro, os jogadores parecem estar um pouco mais encorajados a denunciar, seja por autoconsciência, seja por influência de atletas internacionais; segundo, a imprensa tem tratado o tema com mais recorrência e profundidade; terceiro, talvez, pelas ações do Observatório e por clubes nas redes sociais.;

O historiador Amailton Azevedo defende punições mais efetivas. ;Não basta exibir faixas com dizeres ;Diga não ao racismo;. É urgente uma política que puna os clubes. Os torcedores racistas devem ser banidos e o patrocínio das empresas pode ser cortado para os clubes que não adotarem medidas contra racistas;, sugere.

Até hoje repercute o caso do o segurança Fábio Coutinho, chamado de ;macaco; pelos irmãos Adrierre e Natan Siqueira da Silva, que lhe deu ainda uma cusparada no rosto. O homem agredido não queria contar para ninguém, pois temeu que não acreditassem na sua versão. Não sabia, porém, que a agressão havia sido filmada, durante um clássico entre Atlético-MG e Cruzeiro, pelo Campeonato Brasileiro.

O desfecho do episódio seguiu o que parece ser a regra de casos assim: o Atlético foi multado em R$ 130 mil, Adrierre e Natan foram expulsos do quadro de sócios-torcedores e respondem por crime de injúria racial, com pena de um a três anos e multa.