Rio de Janeiro ; Quem o vê reconhece imediatamente os olhos miúdos, o sorriso, a voz rouca e baixa, modulada agora num fiapo de som. O rosto marcante pertence a um dos maiores jogadores brasileiros de todos os tempos, sucedido fora dos gramados por um analista lúcido e grande contador de causos do futebol, que por anos brilhou como colunista do Correio Braziliense. Desfeita a miragem inicial, percebe-se que se está diante de um homem lutando bravamente, buscando cada naco de vida, cada segundo de lucidez.
Lar
No quarto número 21 da bucólica clínica de paredes amarelas, que há um ano virou o lar de um dos grandes nomes da história do esporte, a Enciclopédia do Futebol, campeão mundial pela Seleção Brasileira em 1958 e 1962, o homem cujo lugar cativo já está reservado na história do futebol brasileiro trava diariamente seu duelo particular pela sobrevivência. E, no próximo dia 16, as janelas do apartamento de 50 metros quadrados no terceiro andar da ala geriátrica da Clínica da Gávea, na Zona Sul do Rio, vão amanhecer abertas para trazer para dentro o aroma dos eucaliptos e a brisa fresca que sopra sem parar no alto da Estrada da Gávea. O ilustre paciente fará 83 anos.
Reveses
Nilton Santos vive hoje o crepúsculo de um grande ídolo. Segundo Maria Célia, sua companheira há 37 anos, que preserva a todo custo a imagem de seu grande amor, Nilton sofre de demência senil, uma deterioração neurológica progressiva e irremediável, que o faz alternar momentos de lucidez com períodos na escuridão. Fala com dificuldades e não reconhece pessoas. Nilton também sofreu recentemente outro revés, uma dengue hemorrágica, da qual só se recuperou, segundo Célia, por um milagre. ;As plaquetas dele chegaram a 50 (mil mm3). Mais um pouco e ele teria que ser transferido daqui;, conta. Agora, recupera-se de uma pneumonia.
Anjo da guarda
Deitado na cama, o olhar indecifrável, o corpo quase imóvel, muito mais magro (em parte por causa de dengue), Nilton dá a impressão, para quem o conheceu antes, que saltará de repente da cama e nos surpreenderá com sua gargalhada contida, exibindo os dentes da frente separados, divertindo-se com sua própria condição. Mas, infelizmente, não há brincadeira. Nem volta. O estado do ídolo mobiliza toda a direção do Botafogo, a começar pelo presidente Bebeto de Freitas, que deu ordem para que não sejam medidos esforços para garantir o conforto e a tranqüilidade do maior patrimônio vivo do clube. O Botafogo paga todas as despesas de Nilton na clínica e colocou seu médico e cardiologista, Paulo Samuel, permanentemente na cabeceira do ex-jogador, a ponto de ser chamado pela família de ;anjo da guarda;.
Lição
Nilton e Célia vivem de poucas rendas, especialmente da modesta aposentadoria de Nilton da LBA (Legião Brasileira de Assistência). ;A sensação que sinto ao vê-lo assim é de tristeza, muita tristeza. Mas me conforta ver o Nilton cuidado da melhor forma possível. E isso graças ao Botafogo, especialmente ao Bebeto de Freitas, que teve a sensibilidade de permitir uma velhice melhor a um ídolo. Sem o Botafogo, não estaríamos aqui. Nem remédio para ele poderíamos comprar;, diz Célia, que permitiu a visita do Correio, de cerca de 40 minutos, ao quarto de Nilton. A lucidez está lá, em algum lugar nem sempre visível. E quando emerge da escuridão traz uma luz forte, cheia de esperança. O repórter do Correio disse a ele que esperava não ser expulso do quarto, um verdadeiro santuário do Botafogo, já que torcia pelo Flamengo, rival do alvinegro na final do Campeonato Carioca. Baixinho, Nilton soprou sua lição. ;Não teria graça nenhuma se todos tivessem o mesmo time;, ensinou, sorrindo discretamente. Há algumas semanas, outro interno da clínica ouviu Nilton repetir um trecho de uma de suas histórias preferidas, sobre o primeiro teste do anjo das pernas tortas, Garrincha, no Botafogo. ;Ele me deu um baile. Pedi que contratassem ele logo para não ter que enfrentá-lo de novo;, recordou.
Paixão
Quarenta e quatro anos depois de sua última partida como profissional, seu grande alimento continua sendo o Botafogo. A simples menção do nome faz com que sua fisionomia mude. Não por acaso, o quarto que hoje é seu lar foi ;decorado; por Maria Célia para aconchegá-lo, cercado por medalhas, taças, fotos de todas as épocas e quadros pintados por ele a partir de 1990. O último deles, terminado por Nilton há algumas semanas, antes de perder finalmente o interesse por pintar, mostra uma igrejinha na antiga Praia das Flecheiras, na Ilha do Governador, onde nasceu. Do botafoguense Nivaldo Santana, colega da clínica, recebeu um cartaz: ;A reverência hoje é para a nossa maior lenda viva do futebol alvinegro, o lateral de todos os tempos, o maior, o nosso amável Nilton Santos, a Enciclopédia;. A parede está decorada por medalhas que ganhou ao longo da vida de glórias. Sobre uma pequena estante de madeira, guardada em lugar especial, está a Comenda João Havelange, recebida da Confederação Brasileira de Futebol. A última homenagem veio da Prefeitura de Valença (RJ), que batizou um centro de treinamento com o seu nome. A camisa 5 do volante Túlio, entregue pelo próprio atleta, está guardada no pequeno armário. Uma mesa guarda um mosaico com as feições do então jovem jogador. Um sofá, próximo à cama, foi coberto com a bandeira do Botafogo. Almofadas, relógios, ímãs de geladeira, tudo lembra o time da estrela solitária.
Dia-a-dia
A rotina de Nilton é muito simples. Banho de sol, caminhadas pela clínica, quando se encontra em condições, TV num salão onde se reúnem os internos e alguns prazeres frugais, como sorvete napolitano ou de flocos, que não podem faltar no frigobar. São quatro caixas por semana. No rádio-CD, tocam da alvinegra Beth Carvalho a Louis Armstrong. Nilton adora visitas, embora sejam menos freqüentes do que se imagine no caso de um ídolo desse porte. Célia acha que muitos amigos não o visitam porque não querem vê-lo no estado atual. ;Não vem mais gente porque as pessoas não querem;, encerra Célia, que não acha que o ídolo esteja sendo esquecido. Entre os amigos que recebe com mais freqüência, os ex-companheiros de pelada na Ilha, alguns ex-jogadores, como Brito, e um grande fã, Thiago Cesário Alvim, botafoguense roxo e dono de um bar do Rio, o Carioca da Gema, na Lapa. Sempre antes dos jogos do Botafogo, ele leva os filhos para alisar as pernas do velho mito. Dá sorte, dizem.
Inesquecível
Quando consegue, Nilton assiste aos jogos do Botafogo. Assistiu a parte da semifinal da Taça Guanabara, contra o Fluminense. No intervalo, chutou e acertou o placar. ;Só me chamem quando estiver 3 x 0;, avisou. O primeiro jogo da decisão contra o Flamengo não viu e, aparentemente, ignora o placar. Nunca se sabe quando vai submergir e emergir de volta. Nilton se despede com um sorriso terno. Célia controla o choro. Pairam pelo quarto lembranças de outros ídolos do passado, do presente, de sempre, que sofreram de processos degenerativos semelhantes, como Leônidas da Silva, o Diamante Negro, e o húngaro Ferenc Puskas. Como eles, Nilton jamais terá que se preocupar com a memória. Para nós, ele nunca será esquecido. Nem hoje. Nem nunca.