Desde início do século passado, sabe-se que “samba é como passarinho que voa: é de quem pegar primeiro”. Pelo menos foi o que disse Sinhô, um dos sambistas pioneiros, ao ser acusado de roubar Gosto que me enrosco, de Heitor dos Prazeres.
Sinhô mandou imprimir abaixo do nome, no cartão de visitas, o epônimo “rei do samba”, mas era mesmo o rei da confusão.
A primeira das mais de mil músicas gravadas por Francisco Alves era dele, Pé de Anjo, marchinha que resultou de rusga que tinha com China, irmão de Pixinguinha. “Eu tenho uma tesourinha que corta ouro e marfim, mas guardo também pra cortar as línguas que falam de mim”, diz a letra.
Sinhô causou confusão até morto, no próprio velório, como narrou o poeta Manuel Bandeira, presente ao evento. “Apareceram mais de seis viúvas a disputar o morto, políticos e jornalistas se misturavam com rufiões e malandros temerários”, narrou o poeta. Mas Sinhô deixou sambas importantes e a frase mais cínica da música brasileira.
A boemia brasiliense conviveu com algo parecido. O finado Sérgio Dimacau, figura fácil nos bares da cidade, deve ter contado mais de mil vezes a mesma história: uma música de sua autoria fora surrupiada e virou um grande sucesso nacional. Ele não tinha provas, mas a veemência era tamanha que ninguém duvidava.
E punha se a cantar um hino à boemia: “O meu amor chorou, não sei porque razão; também pudera eu não estava acostumado à vida de casado, faço força pra ficar em casa sossegado, mas amor é tão difícil a gente se conter”.
A música foi gravada por Paulo Diniz, já cantor de sucesso, em 1971, e ficou conhecida em todo o país. Nos créditos do disco, aparece como autor o arquiteto e boêmio Luiz Marçal Neto, de quem só se sabe que era um boa praça bom de copo. Dimacau não se conformava com a alegada tunga e manteve a mesma história até a morte.
Como a música chegou ao conhecimento de Paulo Diniz não se sabe, mas, no isolamento imposto pela pandemia, foi adicionado mais um tempero nessa história. Alguns dos integrantes da Turma do Gambá, que, semanalmente, reuniam-se para uma animada roda musical, decidiram gravar canções favoritas em sessões virtuais. Cada um no seu canto, instrumentos e vozes são editados digitalmente.
Numa das gravações, o violonista Marco Aurélio decidiu revisitar exatamente a música da discórdia, O meu amor chorou, da forma que era apresentada pelo grupo Kik Ryas, um quinteto que ele integrou no início dos anos 1970 — “letra, melodia e arranjo originais”, ele anuncia antes do clipe. Acompanhado por Raul Ferraz (contrabaixo) e Nelson Serra (pandeiro), Marco Aurélio faz várias vozes para emular o grupo original.
Mas a grande revelação vem pouco antes, quando ele diz que a música é de autoria de Luiz Marçal e Sérgio Fiúza. E agora? Quem é o novo personagem do nosso pequeno mistério, esse Sérgio Fiúza?
P.S. – Que não se confunda Kik Ryas com Okik-Ryas, choro de Avena de Castro.