Revista

Cidade nossa



Amigos à parte

Nesses dias de discórdia, pelo menos em uma coisa exotéricos e economistas, holísticos e reducionistas, terraplanistas e cientistas parecem concordar: depois da pandemia, vamos ser diferentes. Chamam de “novo normal.” O mundo estaria aproveitando a crise para se reciclar.

Mas eu, que não sei de nada, discordo. E mais: não me interessa essa novidade – aliás, espero que não mexam no meu velho normal, com o qual estava muito satisfeito, obrigado. Acho lindo quando leio que as pessoas serão mais solidárias, solícitas e corretas; mas, os recentes roubos envolvendo saúde pública desmentem qualquer possibilidade de remissão do gênero humano.

A corrupção alcança os saidões do confinamento, deixando claro que as pessoas – gente comum – continuam tão egoístas quanto sempre foram. Incapazes de entender que o recolhimento pessoal é uma medida coletiva e se aglomeram como se milhares de mortes não importassem.

As mudanças certamente virão, mas vão afetar principalmente trabalho e renda, já que patrões entenderam que não precisam mais manter estruturas e gastos enormes se as pessoas trabalham bem de casa. Mas, de verdade, isso não muda a vida de ninguém, a não ser que todos vamos trabalhar mais.

O que realmente importa será como sempre foi. Esse isolamento compulsório nos mostrou, definitivamente, que o que a vida nos oferece de melhor são os amigos. Nenhum Zoom ou Teams, aplicativos eficientes para reuniões de trabalho, supre a necessidade presencial dos chapas; há um calor que não é transmitido pelo modem, linha telefônica ou qualquer software; a ausência deles causa uma falta de ar que parece sintoma de covid-19.

Amigos são preciosos, mesmo os mais vagabundos, aqueles que parecem distantes, mas que chegam correndo em cada sufoco. Amigos são poucos, graças a Deus, porque ninguém tem estrutura emocional para ter amigos demais – há pessoas que se dizem amigas de todo mundo, mas é só pela necessidade de ter os verdadeiros amigos por perto.

Amigos novos também são úteis, ao contrário do que pensa um velho companheiro que diz não ter mais idade para conhecer ninguém. Mas os calouros servem para mostrar o valor daqueles que nos acompanham há anos, sabem de segredos, desventuras e até malfeitos, e ainda assim sempre estiveram próximos.

Ninguém precisa ter o melhor amigo. Isso é uma bobagem inventada pelo ciúme. Todos os amigos são melhores, fazem falta, mesmo os que somem sem dar notícia.

Amigos também aborrecem. Acho que foi Mário Quintana quem disse que há dois tipos de chatos: os chatos propriamente ditos e os amigos, que são nossos chatos prediletos.

Nessa pandemia, eu só sinto falta dos amigos. Dos encontros nos bares, nos cafés, até compromisso furado faz falta. A amizade deveria estar listada entre os serviços essenciais que podem funcionar durante qualquer crise

Durante esse período de contrição, eu descobri, também, que amigo é para sempre. Lamentei demais que a vida tem me privado de velhos camaradas, gente que se perdeu pelos entroncamentos que a vida nos obriga a seguir. Mas, de alguma forma, distantes ou mortos, ainda hoje até eles ajudam a combater a solidão.