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Sereia no cerrado



A artista brasiliense Júnia Cascaes, 37 anos, sempre se sentiu meio por fora de tradições na cidade natal. Visitava Santa Catarina e Minas Gerais, de onde os pais dela vieram e se deparava com coisas típicas. “Eu estranhava não termos isso em Brasília, mas pensava que era normal, que ,talvez, por ser a capital, deveríamos ser mais neutros mesmo”, relembra.

Aos 21 anos, em 2004, ela, que sempre gostou de dançar e teve o incentivo da família para seguir a carreira, descobriu um grupo de maracatu que precisava de dançarina. Ao conhecer, de fato, o Seu Estrelo, soube que se enganou sobre o ritmo. “Explicaram-me que, na verdade, eles queriam criar algo característico de Brasília”, recorda-se. Foi assim que criaram o samba pisado, uma música totalmente brasiliense.

Junto com a música e a dança eram criadas histórias e personagens: toda uma mitologia cerratense, que havia começado a ser escrita por Tico Magalhães, capitão do Seu Estrelo, antes da criação do grupo. Pernambucano, encantou-se pela cidade e pela natureza local quando esteve aqui pela primeira vez com os pais. De volta ao Recife, descobriu que seu lugar não era mais lá. Precisava continuar escrevendo o Mito do Calango Voador e retornou à cidade que inspirava tantas histórias.

Conhecer o grupo foi uma transformação interna para Júnia. “Só então eu entendi o poder da  cultura popular e como era possível a gente inventar histórias sobre essa cidade que também foi inventada”, afirma. De dançarina, Júnia passou a tocar o instrumento abê, conhecido também como xerequê ou agbê e a criar histórias, como a lenda da Sereia Luzia.

Na música, o abê representa as águas. Um dia, Júnia foi instigada a escolher um rio para representar. Isso tudo foi inspirando a figura da sereia de rio. Começou a dar oficinas de abê, que chamava de sereiada. “Eu entrei no imaginário disso tudo, mergulhei nesse universo e comecei a inventar”, conta. Dessa forma, a brasiliense criou uma cultura popular que muitos alegam que Brasília não tem.





Sereia Luzia
Luzia era uma lavadeira cujo trabalho era admirado, porque as roupas lavadas por ela no rio voltavam com o poder de lavar a alma de quem as vestisse. Ela conseguia tirar todas as energias ruins das peças, tanto que, mesmo molhadas, já limpas, ficavam mais leves do que no caminho de ida ao rio, secas. Ela amava o rio, e a paixão era recíproca.

Mas Dona Eternidade (presente no mito do Calango Voador), a mãe dos rios, começou a notar que o rio estava agitado, os peixes se perdiam de seus caminhos, estava uma bagunça. Percebeu que aquilo ocorria por conta das energias que a lavadeira descarregava no rio na lavagem das roupas. Conversou com o rio e disse que, a partir de então, ele deveria impedir aquilo. Ele ficou desesperado.

Quando Luzia apareceu novamente, o rio não sabia o que fazer. Abriu, então, um buraco no peito, e dele saíram elefantes de tromba d’água. Ela ficou tão encantada que nem notou quando foi absorvida. Virou sereia. Esqueceu-se da vida como humana e passou a carregar memórias de uma infância como aquela entidade.

Ela deixou seu companheiro Casemiro, que, ao notar que a mulher não voltou naquele dia, foi procurá-la no rio. Quando viu as roupas largadas, começou a chorar. A sereia Luzia sentiu a água do rio ficar mais salgada e subiu à superfície para ver o que estava acontecendo. Viu o homem chorando e começou a recolheu as lágrimas. Ele, então, se sentiu acolhido.

Júnia explica: “A Sereia Luzia é uma colhedora de lágrimas. Ela colhe as lágrimas dos seres, tira o sal e, com o doce das lágrimas, rega os rios. Assim, renova as águas dos rios e cura os sentimentos das pessoas”.





O calango voador
Segundo o mito do Calango Voador, criado por Tico Magalhães, o personagem é filho da Terra e do Sol. A Terra se entregaria ao mar, mas o Sol ficou enciumado. Desejava a Terra. Mentiu que a Lua estava grávida do mar e convenceu a Terra a se vingar, entregando-se a ele. Ela ficou grávida e só depois descobriu  a farsa. Decidiu, então, ter seu filho no cerrado, no Planalto Central — bem longe do mar, para que ele não soubesse da traição.

O Calango teria ganhado asas a pedido de sua mãe ao Ar, em um momento de perigo, quando, depois de quase ser pego por um caçador, seria engolido por uma tromba d’água. Dizem que as asas que ganhou eram do gavião que contou ao caçador onde o Calango se escondia. A figura dele dialoga com Brasília, já que a cidade avião também tem duas asas.