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Experimentação do material


Unidos pela causalidade e, principalmente, pelo uso de materiais que haviam sido descartados, os designers Nina Coimbra e Thiago Lucas fundaram o Estudio Polpa. Nina tem formação em artes plásticas e um curso técnico em restauração e conservação de arte. “Enquanto restauradora, meu pensamento vai muito a partir da beleza e do respeito à ação do tempo sob as coisas. O tempo conta muita história”, comenta.

Thiago, por sua vez, é bacharel em design pela UnB e realizou um trabalho de mobiliário, com reaproveitamento de madeira,  com a cooperativa Sonho de Liberdade, da Estrutural. “É uma forma de pensar o design de maneira menos destrutiva para o mundo. Sai da parte industrial e entra no aspecto mais artesanal. O material inicial me diz o que precisa ser feito. Ao mesmo tempo que é limitador, por já estar ali, expande o processo criativo. É uma restrição positiva, benéfica, que faz sentido. Aquele material já teve um caminho, uma história. Eu entro dentro desse processo já iniciado e consigo criar nele novos benefícios, não só o destrutivo de gerar mais lixo”, detalha.



Juntos, os dois partem da experimentação do material para a concepção da forma, seja ela traduzida em um móvel, uma cenografia ou qualquer outro formato possível. Algo que encontraram no trabalho dos Irmãos Campana. “Olhar para eles foi perceber que a gente não precisa se moldar. Os irmãos conseguem se divertir e eu tenho a sensação de que falta isso na indústria. Eles não seguem tendências. São chamados por aquilo que fazem, sabem que vão fazer algo extraordinário, que não tem nada repetido, vão subverter”, afirma Thiago. “O design contemporâneo brasileiro de mobiliário é muito influenciado por eles e não tem quem traduza melhor o que é brasilidade como eles”, complementa Nina.

Assim como os Campana, o Estudio Polpa enxerga o trabalho como obra de arte, em camadas de significado, cheias de histórias. Uma das últimas ações foi em conjunto com uma cooperativa de catadoras de lixo no Varjão. “Passamos um semestre inteiro com elas. As catadoras selecionavam o material e a gente dava ideia de outros usos, mostrávamos que poderia ser uma matéria-prima para o design”, lembra Nina. É uma forma que os dois encontraram de traduzir os conceitos e os valores que acreditam: um design moderno, esteticamente bem resolvido, que gera uma economia justa, uma cidade sustentável e com colaboração em projetos sociais.


Identidade brasileira

Se os Irmãos Campana têm uma linguagem local e, ao mesmo tempo, global, a designer Flavia Amadeu ressignificou a borracha colorida vinda da Amazônia, em joia premiada na Europa. Identidade brasileira, impacto social e sustentabilidade são questões que estão intimamente ligadas ao trabalho da brasiliense. Ela desenvolve, com produtores e artesãos do coração da floresta, a matéria-prima para as joias a partir da borracha nativa.

“Logo no início da minha trajetória, percebi que esse era o meu caminho, trabalhar com a questão da sustentabilidade, da questão social, do design brasileiro, do artesanato. E eles (os Campana) estavam bem ali, nesse espaço de um design que tem a identidade nacional, que carrega tudo isso, mas, ao mesmo tempo, tem uma qualidade, um acabamento e um refinamento. Eles colocam aquela expressão popular, os materiais, em um outro patamar e isso é uma característica que sempre busquei”, relembra a designer.

Inspirada em aspectos conceituais e intelectuais dos Irmãos Campana, Flavia desenvolveu, nos segmentos do design de joias e da moda, a brasilidade atrelada à sustentabilidade e ao singular. O trabalho da brasiliense percorreu o mundo e, hoje, é vendido no Masp e em importantes lojas de São Paulo e do Rio de Janeiro.


Entrevista / Humberto Campana

Como definir o trabalho dos Irmãos Campana e o Brasil que ele representa no exterior?
Procuro fazer fotografias do Brasil, valorizar o que é cultura popular, a nossa natureza, as paisagens que a gente tem, paisagens de pessoas, de gestos, de texturas, de cores, da mistura de cores e de raças. Essa é a nossa modernidade. Busco traduzir o Brasil moderno, com orgulho das raízes, não querendo ser quem eu não sou. Quando você fala do seu quintal, você comunica global. Esse Brasil que a Lina Bo Bardi via, que Burle Marx via pelas plantas e trazia espécimes da Amazônia para os jardins. É isso que eu e o Fernando tentamos traduzir.

Como se dá a escolha do material do trabalho de vocês?
Tudo nasce sempre dos materiais, são como personagens procura de um autor. Eles que foram nos indicando e dirigindo a função e a estética. Eles que nos escolhem. Em qualquer lugar que vou, eu fico com o olhar atento a tudo e aí vejo um material, compro, levo para o meu estúdio, para a minha sala e fica um flerte. Demora, às vezes, uma semana, um mês, 10 anos e um dia a ficha cai. Ele fica desafiando, buscando um autor.

O que atrai mais?
Gosto de materiais naturais, tenho um respeito pela natureza, porque você não está criando mais lixo — isso me incomoda muito — porque hoje a gente precisa resolver todas essas questões, repensar, recuperar tradições que estão desaparecendo e o Brasil é rico nisso, na tradição manual, tudo me interessa. Acho que esse é o nosso museu. A Amazônia é o nosso Louvre, o Pantanal, os Lençóis Maranhenses, Fernando de Noronha. Tudo tem que permanecer como está, intocado, é a nossa história, não pode mudar. Precisamos inverter os hábitos, construir arquitetura com a natureza, porque acho que o futuro é isso, a natureza a favor da cidade, da arquitetura, do homem e não destruir a natureza.

Por que olhar para as tradições populares, para o interior?
Tenho essa alma caipira, nasci no interior. Acho que eu e o Fernando fazemos a tradução entre o rural e o urbano pela vivência no campo. Eu fazia casas em árvores feitas de bambu.

O trabalho de vocês não tem uma linguagem única, ele é multilinguagem. São vários materiais, vários suportes e plataformas. O que definem primeiro, a ideia e depois o suporte que melhor traduz o conceito? Como funciona?
Não sou intelectual, sou de fazer, sou da mão e de observar. Observo a vida, observo os lugares e faço fotografias. O que me interessa no objeto não é o objeto em si, é o processo de colocar alma no objeto, de colocar vida. Não sei se eu sou designer, artista, gosto de ser livre e não ficar numa caixa. Este século é para fazer pontes e não criar limites. Sou inquieto, procuro sair sempre da minha zona de conforto. Não sou uma pessoa muito relaxada. Estou sempre à procura, é o que me mantém vivo, resistente e com esperança.

Como começou e como se desenvolve o trabalho do Instituto Campana (que utiliza o design como ferramenta de transformação social), hoje com 10 anos?
Começou espontaneamente, com o trabalho da poltrona de bonecas. Fiquei sabendo das mulheres de Esperança, na Paraíba,  que criavam as bonecas e começamos a comprá-las. Hoje, nós procurarmos ONGs que possam fazer logísticas semelhantes. O que nos interessa é a economia circular com essas pessoas. A ideia é que nosso trabalho ajude a mudar a vida deles. A gente ganhou tanto, recebemos tanto do universo, por que não retribuir?

Quais são os desafios agora?
Fazer o instituto crescer, ter uma sede, fazer um pequeno museu, com exposições de outros jovens designers, sejam eles brasileiros ou de fora. Manter a nossa memória e trabalhar com comunidades, porque isso me instiga, me dá mais vontade, não tem dinheiro que pague.

Acredita que tenham outros Irmãos Campana por aí?
Tem vários. O Brasil está cheio de Irmãos Campana. Acho que a gente abriu portas para uma geração e, hoje, o design não se restringe só ao Sul, ao Rio de Janeiro, a São Paulo. É Ceará, Amazonas. A comunicação tornou isso possível.