Ailim Cabral
postado em 01/12/2019 04:19
A presença de um cachorro tem poderes transformadores. São muitas as histórias de amor que envolvem a presença de um ;anjo de quatro patas;. Mas não é somente com seu jeito brincalhão e carinhoso que os pets concretizam mudanças de vida. E os cães de serviço são a prova viva disso.
Treinados para acompanhar deficientes visuais e atuar como os olhos de seu tutor, os cães-guia são os mais conhecidos nessa categoria, assim como os que trabalham com bombeiros em salvamentos e com a polícia como farejadores. Mas as funções que os animais podem exercer auxiliando os humanos são muito mais variadas (veja quadro).
Uma delas é acompanhar crianças dentro do espectro autista, como Gaia, companheira de Guilherme Polesi Enriquez, 6 anos. Os dois se encontraram por meio do projeto Cão Inclusão, de São Paulo, que treina cães de serviço. A jornalista Rita Polesi, 38 anos, conta que o filho recebeu o diagnóstico com 3 anos e meio e costumava sair correndo em lugares públicos. ;Isso nos causou muitos sustos, chegamos a perdê-lo de vista em um aeroporto;, lembra.
Rita buscou diversos tipos de terapia, mas a família já não se sentia segura para passear em lugares públicos e grandes, como parques e shoppings. Foi quando ela ouviu falar nos cães de serviço psiquiátrico, que podiam ajudar Guilherme.
A jornalista se cadastrou no site do projeto e, alguns meses depois, foi informada de que um dos animais em treinamento se encaixava nas particularidades do filho. Depois de alguns meses de treinamento e de a dupla ser positiva tanto para Gaia quanto para a família, a cadela foi morar com a família.
Guilherme era uma criança pequena, com 5 anos na época, e Gaia era uma golden retriever menor do que o comum, o que fez com que fosse ideal para ele. ;A dupla tem que combinar muito bem. O cachorro tem de ser capaz de segurar a criança quando necessário;, explica Rita.
Essa é a principal missão de Gaia, que hoje está com 4 anos. Por meio de uma triangulação, em que a guia de Gaia é ligada à cintura de Guilherme e a outra ponta está nas mãos de Rita, toda vez que ele começa a correr, se agitar, ou solta a guia, Gaia se senta e impede que Guilherme fuja.
Outra particularidade de Guilherme é a hipossensibilidade. Para se sentir seguro e confortável, precisa de um pouco mais de pressão. Isso fazia com que ele acordasse muitas vezes durante a noite, correndo para a cama dos pais. Hoje, Gaia deita por cima de Guilherme, oferecendo a sensação de acolhimento, o que permite que ele durma mais relaxado e durante a noite toda.
Gaia é amada e faz parte da família. Na semana passada, fez aniversário e ganhou um bolo de banana e ração. Guilherme se orgulha da ;amiga grande; e não perde a chance de apresentá-la para outras pessoas, o que também auxilia em seu processo de socialização. ;A relação deles é linda, muito carinhosa. Eles passam horas olhando um nos olhos do outro, o que é incomum para crianças dentro do espectro;, conta Rita.
Treinamento
Raul Garcia, adestrador comportamentalista e diretor executivo da Cão Inclusão, afirma que, além do auxílio que os cães trazem com as questões específicas para as quais são treinados, os ganhos são ainda maiores. ;O cão auxilia na independência das pessoas, dá mais autonomia, segurança, liberdade, autoestima, além de trazer alegria e companhia.;
Raul conta que os cães são treinados por cerca de dois anos. Quando filhotes, com cerca de 50 dias de vida, passam por processo de avaliação para saber se têm o perfil necessário. Uma vez escolhidos, ficam um ano com uma família socializadora, que tem a obrigação de levá-los a todos os lugares para que tenham desenvoltura em diversas situações.
Depois do primeiro ano, eles passam de seis a sete meses sendo treinados aos comandos específicos das funções que vão exercer. Em seguida, ocorre o processo de formação de dupla, que costuma levar de dois a três meses. O cão trabalha por cerca de oito a nove anos e se aposenta.
Depois da aposentadoria, podem ficar com as famílias ou ser encaminhados pelo projeto para outra casa. Normalmente, existe uma relação de amor, e o tutor continua com o animal. Mas, em alguns casos, um novo cão de serviço ativo faz-se necessário e a pessoa ou família não consegue cuidar dos dois. A maioria dos animais usados nesse tipo de projeto são goldens e labradores, raças sensíveis e dóceis.
Guias amorosos
Em Brasília, o Projeto Cão Guia de Cegos também aposta em labradores para o trabalho. A ONG tem parceria com o Corpo de Bombeiros do DF, que treina os animais, desenvolvendo a parte técnica e fazendo a adaptação da dupla. O processo de treinamento foi trazido pelos militares do Canadá e segue o mesmo padrão dos outros treinamentos.
;A família voluntária que faz a socialização precisa levar o cão a todos os lugares. Nada pode ser novidade para ele, isso é 50% do treinamento. Ele precisa estar preparado para todas as situações, convivendo com outras pessoas e animais;, ensina o subtenente Siqueira, um dos responsáveis pelo projeto.
Siqueira afirma que os animais são treinados em mais de 30 comandos. Para receber um cão-guia, o deficiente visual precisa ter orientação e mobilidade, andando bem com a bengala. Com esses pré-requisitos podem se inscrever. Os animais auxiliam a desviar de obstáculos, buracos e a seguir os caminhos mais seguros.
Flávio e Platão
Juntos há nove anos, o artista plástico e massoterapeuta Flávio Luis da Silva, 50, e o labrador Platão, 11, são um exemplo de dupla bem-sucedida. Fã de cachorros desde criança, Flávio ficou cego aos 26 anos. Ele estava em uma lanchonete quando uma briga começou, enquanto deixava o local, ele foi atingido no rosto por uma garrafa de vidro. Mesmo após cinco cirurgias, o artista perdeu 100% da visão.
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Ao saber do projeto, Flávio, que já andava com a bengala havia anos, se inscreveu. Foram cinco anos de fila de espera até que recebesse um cão. ;Eu me locomovia bem, mas era muito devagar. O medo e a insegurança se juntavam à situação ruim das calçadas, aos carros mal estacionados, às obras sem sinalização e até os orelhões, onde batia a cabeça;, lembra Flávio.
O artista conta que, ao se unir a Platão, tudo mudou. Ele sai para trabalhar todos os dias, chega mais rápido aos lugares e se desvia dos obstáculos com agilidade, graças ao cão-guia. Outra vantagem que Platão trouxe foi a socialização. Flávio conta que, por conta do cão, as pessoas se aproximam mais dele na rua, puxam assunto e interagem com a dupla com simpatia. ;As pessoas o acham bonito, ficam curiosas e isso é muito bom para mim, que tenho a chance de conversar com as pessoas em ônibus e shoppings, por exemplo.;
O labrador está prestes a se aposentar, e Flávio afirma que o cão não sairá do seu lado. ;Não abro mão dele de jeito nenhum, mesmo quando eu receber outro cão para me guiar. Peguei um amor muito grande por ele, não tenho filhos, e ele é meu bebê.;
Os dois ficam juntos até quando Platão está ;de folga;. Mesmo em casa e sem o colete, são inseparáveis. Onde Flávio vai, Platão vai junto. Flávio comenta que o projeto mudou sua vida e lamenta a falta de investimentos do governo nesse tipo de iniciativa. Ele conta que a ONG passa por dificuldades financeiras, o que faz com que a fila de espera só cresça e que pessoas fiquem sem seus cães. ;Minha vida mudou. Eu era travado, tímido. Hoje tenho autonomia, converso com as pessoas, melhorou minha autoestima, e o mérito é todo do Platão.;
Outros tipos de cão de serviço
Cães de alerta para diabéticos
- Por meio do faro, esses cães são treinados para detectar mudanças no nível de açúcar no sangue. Eles conseguem sentir a mudança quando a pessoa está com hipo ou hiperglicemia e alertam seus tutores antes que a mudança se torne perigosa. Os cães também são treinados para acionar alarmes, caso os tutores precisem de auxílio médico.
Cães de serviço de mobilidade
- Auxiliam tetra e paraplégicos ou pessoas com outro tipo de dificuldade de locomoção. Eles podem trabalhar buscando objetos, pegando coisas que caem no chão, como controles remotos e telefones, apertando botões, como os de elevadores, e abrindo portas.
Cães ouvintes
- Auxiliam deficientes auditivos e trabalham alertando o acompanhante sobre determinados avisos sonoros, como campainhas, alarmes de incêndio, emergência e relógios, toque de telefone, sons de forno ou micro-ondas e até mesmo bebês ou crianças chorando. Eles tocam o tutor e o guiam até a fonte do barulho. As raças mais comuns são labrador, golden, cocker spaniel e minipoodles. Alguns vira-latas de abrigo de pequeno a médio porte também podem ser treinados.
Cães de alerta e de resposta para convulsão
- São alvos de controvérsia, pois alguns médicos afirmam não haver evidências suficientes para garantir que os cães podem prever convulsões, mas alguns deles conseguem sinalizar aos tutores quando eles estão prestes a ter uma convulsão. Os cães de resposta são os que auxiliam o tutor quando ele está tendo uma convulsão. Eles latem para pedir ajuda, acionam alarmes e conseguem levar o tutor a um local seguro ou mesmo trazer remédios ou um telefone para o tutor ao fim da crise.
Cães terapeutas e de serviço psiquiátrico
- Os cães terapeutas trabalham em asilos e hospitais e ajudam pessoas com dificuldades de socialização e de aprendizado. Eles ficam com os terapeutas ou instituições com as quais trabalham. Os cães de serviço psiquiátrico costumam ficar com pessoas que sofrem com depressão, ansiedade e crises de pânico e estresse pós-traumático. Trazem sensação de segurança, podem entrar em casa antes do humano e ligar as luzes, por exemplo.
Cães de alerta de alergia
- São treinados para farejar cheiros específicos, como glúten ou amendoim, e alertar o acompanhante a não consumir o alimento. São muito usados com crianças, dando mais autonomia a elas e mais segurança aos pais.
Cães de serviço militar
- São os que trabalham com os bombeiros em salvamentos ou nas forças policiais, como farejadores de drogas.
Como ter um cão de serviço?
É necessário fazer um cadastro na instituição que treina o tipo de cão de que a família ou pessoa precisa. Normalmente existe uma fila de espera e o processo de adaptação do perfil do cachorro.