Em 1960, poucos dias após a Páscoa, o Brasil vivia um recomeço. No dia 21 de abril, era inaugurada Brasília, a nova capital do país. Com o sentimento predominante de esperança e a alma cheia de sonhos, milhares de brasileiros vieram ao coração do país, que florescia como um jardim de diversidade.
Este ano, Brasília comemora 59 anos no Domingo de Páscoa. A data, que representa a ressurreição de Jesus Cristo e sua primeira aparição aos discípulos, encerra as celebrações da Semana Santa e se tornou, para muitos, um dia propício para mudanças e renascimentos, o que, poeticamente, representa a origem da nossa cidade.
Foi em meio à necessidade de renovação que nasceu o presente de Juscelino Kubitschek a todos os brasileiros. Dizem que ao ser perguntado sobre a razão de nomear sua moradia de Palácio da Alvorada, JK respondeu sem titubear: “Porque Brasília é a alvorada de um novo Brasil”. E, assim, a cidade, quase chegando à melhor idade, continua representando seu papel de utopia, de nova vida e de oportunidades.
Em meio à polarização política e às crises que agitam o país, as datas coincidentes são um lembrete de que, apesar das dificuldades vividas, o renascimento é possível. Na nossa edição especial de Páscoa e de aniversário de Brasília, reunimos histórias de pessoas que não nasceram na capital, mas que viveram suas ressurreições pessoais na cidade e se tornaram brasilienses de coração.
A capital do refúgio
No início de 2018, a venezuelana Ana Tibisay Farfan Rojas, 56 anos, chegou a Brasília fugindo da fome e da escassez que assolam seu país. Pouco a pouco, começa uma nova vida, com esperança de ajudar os que ficaram na Venezuela e de recomeçar em um lugar mais próspero.
Antiga moradora de Santa Helena de Uiarén, ela conta que a situação era — e ainda é — crítica. Ana diz que as longas horas em filas, debaixo do sol quente, para conseguir comida não era nada diante da frustração de chegar ao fim apenas para descobrir que o alimento tinha acabado. “É uma angústia muito grande, uma dor de não poder cuidar de quem depende de nós, independentemente do esforço que se faça.”
Ela não conseguia mais ver a mãe idosa e os netos passando necessidade sem poder fazer nada e resolveu buscar novas oportunidades no Brasil. “Tomei a decisão de deixar meu país para lutar por minha família.”
Pesquisando na internet, Ana entrou em contato com alguns brasileiros, e uma mulher enviou passagens para que ela trabalhasse em sua casa como empregada doméstica. Chegando aqui, o emprego não era o que havia sido combinado e Ana se viu desamparada em um país estranho, mas, ao mesmo tempo, não podia considerar voltar para a Venezuela.
Foi aí que conheceu o Instituto Migrações e Direitos Humanos (IMDH). Ela conta que esperava apenas receber alguma ajuda para se alimentar, mas, por meio da organização, conseguiu abrigo na casa de uma família e, pouco tempo depois, um emprego na área de serviços gerais no Marista Social.
“Deus tinha um propósito para mim. Fui recebida como família e tive muito apoio e carinho. Contei tudo que tinha acontecido e a maior surpresa foi obter a oportunidade de trabalhar. Minha vida mudou”, lembra. Nesse momento o sentimento de esperança de Ana se tornou ainda mais forte e ela recobrou energia para cuidar dos entes queridos.
Apesar de sentir falta da antiga vida, antes que a crise generalizada atingisse seu país, Ana afirma que o futuro da família está em Brasília. Dois de seus filhos também vieram para a capital, e o dinheiro que conseguem juntar é todo dedicado a alimentar os netos, a mãe e a trazê-los para cá.
“A vida que vivíamos lá estava cheia de desesperança e angústia. Aqui, ainda é difícil, mas temos muita ajuda e fomos acolhidos. Isso nos traz esperança de melhorar de vida e de cuidar dos nossos.”
Gratidão
Uma memória que ainda machuca Ana, faz sua voz tremular e os olhos se encherem de lágrimas é a cena de centenas de imigrantes venezuelanos cruzando a fronteira do Brasil. “Eu olhava e via muitas pessoas fazendo o trajeto a pé. São três dias de caminhada. Todas aquelas pessoas tendo que abandonar seu país e suas casas é muito triste.”
Quando questionada sobre o que mais gosta em Brasília, Ana responde sem titubear: “As pessoas. Sou agradecida a Deus por ter colocado pessoas tão boas em meu caminho. O povo aqui me acolheu, eu não tinha amigos, não tinha nada e me ajudaram com informação, comida, abrigo e até dinheiro”.
Ana confessa que parte dela ainda tem vontade de voltar para seu lar, mas apenas quando as coisas melhorarem. Hoje, sente-se em casa em Brasília, que considera acolhedora, e se diz impressionada com os serviços de qualidade da cidade. “Além de tudo, é muito linda e moderna. Eu não planejei, Deus me trouxe para cá e é aqui que pretendo recomeçar a vida da minha família.”
Uma terra para chamar de sua
Nascido em Porto Firme, Minas Gerais, Luidson Saraiva Souza, 41 anos, chegou a Brasília com a roupa do corpo e R$ 30 no bolso. Hoje, 18 anos depois, é servidor público federal, pós-graduado e mestre, tem casa e carro próprios, se casou e teve um filho.
No trajeto entre Minas e Brasília, Luidson gastou metade do dinheiro que achava que o sustentaria por pelo menos uma semana, mas tinha a bagagem cheia de sonhos. “Eu vim em busca de uma vida melhor e trouxe tudo o que tinha, que não era muito. Meus documentos todos estavam comigo, porque voltar não era uma opção. Era daqui para a frente.”
O rapaz foi direto para a casa da irmã, moradora da cidade, que o acolheu. Em 2006, Luidson se formou em administração e conta que viveu uma mudança de vida se aproximando de seu lado religioso e espiritual. No mesmo ano, conheceu a esposa, com quem se casou nove meses depois.
Por meio do estudo, Luidson renasceu. Um ano depois de ter o primeiro filho, passou no concurso do Instituto Federal de Brasília e continuou estudando e se especializando. Foi aqui que sua natureza estudiosa encontrou campo para prosperar e ele encontrou seu maior tesouro: a família. Luidson garante que ama Brasília e o clima seco e desértico de noites frias. “Quando me perguntam se não sinto falta da minha terra, digo que terra boa é aquela que te dá oportunidades para crescer, que te acolhe e te abraça. E Brasília é minha terra”, completa.
A força da mulher candanga
Foi somente 12 anos depois da chegada a Brasília que Maria Francisca Neves, 73 anos, pôde celebrar o seu renascimento e, como a caliandra, flor típica do cerrado, floresceu e se tornou cor em meio à terra árida. Mas, até lá, passou por mais de uma década de sofrimento. Em Brasília, viveu os piores e os melhores dias da vida.
Comparada com a fazenda tranquila em que morava com os pais em Correntina, na Bahia, a cidade, ainda em fase de construção, era apenas “mato, lama e barracos” aos olhos da menina. Com 15 anos, ela chegou ao cerrado casada com um homem 11 anos mais velho, que veio trabalhar na construção da capital, e não conseguia ver com bons olhos sua nova morada.
Maria Francisca lembra que até tentou fugir de casa antes do casamento arranjado pelos pais, mas acabou aceitando o enlace. A saída do lar foi difícil. Ela sentia saudades dos pais e dos irmãos e vivia em um barraco, onde teve que aprender a cozinhar na marra em um fogareiro.
Aos 16 anos, Maria Francisca teve o primeiro filho. Aos 27, com cinco filhos, cansada da vida que levava, finalmente, fugiu do marido. “Ele era muito ruim para mim, me maltratava. Um dia, quis me matar. No dia seguinte, fui embora.”
(Re)nascendo
Cheia de coragem, Maria Francisca contratou um advogado e vendeu um anel de brilhantes que tinha ganhado da avó para alugar uma casa e morar com os filhos. Foi a 11ª mulher da cidade a entrar em um tribunal para se divorciar. No processo, ela e os filhos ficaram com o terreno que tinha ganhado do pai quando se casou e com a casa que foi construída com o passar dos anos.
Até então, Maria nunca tinha podido estudar ou trabalhar. Quando tentou, o marido a tirou de dentro da sala de aula com xingamentos e humilhação. Agora divorciada, procurou emprego como faxineira e passadeira. Seis meses depois, aprendeu a fazer unha e depilação e começou a trabalhar em salões de beleza. Ela chegou a passar 17 anos trabalhando no tradicional Hélio Diff e ali conheceu e atendeu a muitas clientes importantes na cidade. Pouco depois, reconhecida pelo talento, montou o próprio salão.
Foi assim, com muito trabalho e esforço, que Maria conseguiu aumentar a casa em Sobradinho, vendê-la e se mudar para a Asa Norte, depois para a Asa Sul e, finalmente, voltar para um condomínio em Sobradinho. As reformas, as construções e as vendas de imóveis agradavam a baiana, que hoje é dona de uma imobiliária e não pensa em parar de trabalhar. “Se parar, eu morro. Acabei de terminar a construção da minha casa e já tem gente querendo comprar. Vou morar lá um pouquinho e, depois, construo outra.”, conta, rindo.
A cidade, que no início foi um martírio para a mulher forte, virou um celeiro de oportunidades quando ela conseguiu se desvencilhar do marido. Naquele momento, depois de ser ameaçada de morte, Maria renasceu e, de fato, começou a viver.
Brasília se transformou na cidade em que criou cinco filhos bem-sucedidos e onde nasceram os seis netos e os quatro bisnetos. Lugar que ela só deixa para viajar a passeio, inclusive para o exterior. Hoje, afirma que ama a capital e que aqui é o lugar de sua família — logo, também o seu.
Um sírio brasiliense
Encantado pelo Lago Paranoá, pelo silêncio e pela tranquilidade da cidade, e conhecedor das quadras e entrequadras, o sírio Ammar Abou Nabout, 44 anos, é quase um brasiliense e já tem aquele sentimento de carinho tão característico de quem vive na cidade. “Não sou romântico, mas posso dizer que gosto desse lugar e sou feliz aqui.”
Em 2014, quando chegou ao Brasil com a mulher e os três filhos, a mudança foi a última opção da família, que fugia da guerra civil na Síria. Inicialmente, se instalaram em Florianópolis, mas não se adaptaram ao ar de cidade pequena. Viviam em Damasco, capital do país, e estavam acostumados a um lugar mais agitado.
Priorizando os filhos, buscaram cidades com melhor qualidade de vida e com boas escolas. Brasília, então, foi a escolhida. Na Síria, Ammar era dono de uma loja de roupas. Aqui, depois de quase um ano procurando emprego em comércios, resolveu investir novamente em um negócio próprio. Tentando driblar a barreira do idioma, pensou em um empreendimento que não exigiria tanta conversação. Ao cogitar o ramo de alimentação, a esposa, cozinheira de mão cheia, se tornou o trunfo da família. Em 2015, abriram a lanchonete Damascus, na Asa Sul, especializada em comida síria.
Com a vida refeita, Ammar evita relembrar os horrores da guerra. Com pesar, afirma não sentir saudades de casa — ao contrário de tantos sírios que pensam em voltar. A família dele também deixou o país. “Não sinto saudades, são apenas memórias. É difícil não ter depois de passar 39 anos na mesma casa, na mesma rua.”
Apesar das dificuldades que envolvem se mudar para outro país, como a simples tarefa de ir ao supermercado sem falar a língua local, hoje, seu lar é Brasília. Os filhos amam a cidade e nenhum deles tem vontade de sair daqui. O mais novo tinha 4 anos quando deixaram a Síria e não tem memórias do país.
Acolhimento
Uma das coisas que Ammar admira em Brasília — e que fez com que se sentisse mais à vontade quando chegou — é a diversidade. “As pessoas são todas diferentes entre si. Aqui, tem árabes, negros, brancos. É uma mistura de povos, um lugar onde todos podem viver”, afirma. Além de diverso, Ammar não hesita em afirmar que o povo brasiliense é acolhedor e o país onde os estrangeiros mais se sentem bem-vindos.
Sem falar português e sem conhecer ninguém no país, começaram uma vida nova com esperança e coragem. Cinco anos depois, consideram Brasília sua casa. Os filhos todos falam e escrevem em português, o que chegou a causar um desconforto com o pai de Ammar, que questionou o fato de os netos não conhecerem tão bem o idioma árabe. “Hoje em dia, em casa, só falamos árabe, para que meus filhos não percam a nossa herança cultural, apesar de termos perdido nosso lar na Síria.”