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Mulheres de fibra: artesãs ressignificam o trabalho manual

Da Amazônia ao Centro-Oeste, o artesanato se transforma em um ofício de prazer e esperança

Em uma cidade ribeirinha no interior do Amazonas, artesãs colhem cipó da floresta e o transformam em acessórios para o mercado de luxo. Em Formosa, Goiás, detentas entram em processo de ressocialização por meio de bordados manuais. Em Planaltina, no Distrito Federal, ceramistas fazem do barro uma forma de sustento e prazer.

No norte ou no centro do Brasil, há mulheres fortes o suficiente para romper qualquer barreira. A Revista esteve nos três cantos do país para conhecê-las, reportar suas histórias e descobrir projetos inspiradores que ressignificam o trabalho artesanal.

Trama a trama

Careiro Castanho (AM) ; São necessárias três horas de avião de Brasília a Manaus. De lá, somam-se 30 minutos de lancha rápida até o porto de Careiro da Várzea, no interior amazonense, e mais uma hora e meia de táxi-lotação até Careiro Castanho. A 102km da capital do Amazonas, em meio à mata tropical e às margens do Rio Tupana, fica o município onde moram as artesãs do Teçume da Floresta, projeto orientado pela ONG Casa do Rio. No grupo, oito mulheres se unem para transformar o entrelace do cipó ambé nos mais diversos acessórios que viraram desejo de compra em todo o Brasil.

Entre elas, mães de família, aposentadas, provedoras. Edite Paixão Colares, 50 anos, mais conhecida como dona Branca, é um exemplo. Filha de pai indígena, nasceu na boca do Rio Tupana e cresceu na floresta, ao lado de cinco irmãos. Aos 12 anos, viu o pai e um dos irmãos morrerem na água, atingidos por um raio. Religiosamente, acorda às 3h da manhã todos os dias para fazer café e começar o trabalho artesanal.

Branca é autora do primeiro modelo da Teçume da Floresta, a bolsa Paricá. Ao lado das companheiras de trabalho, sente-se realizada ao fazer os acessórios e gerar renda por meio deles, apesar da visão debilitada. ;Um dia fui colher abacaxi e a palha atingiu meu olho. Com o tempo, acabou prejudicando o outro. Enxergo só um fumaceiro;, relata.

A marca Teçume da Floresta surgiu em 2015, sob as asas da Casa do Rio. Com a mentoria da designer Luly Vianna, proprietária da marca Saissu ; que também faz moda sustentável ;, as artesãs foram aperfeiçoando a técnica e criando modelos exclusivos. Com o tempo, adquiriram liberdade criativa e hoje já conseguem criar modelos de acessórios sozinhas. Ao fazer as bolsas, carro-chefe do grupo, elas coletam (de forma controlada) a matéria-prima, cortam, descascam e deixam a fibra descansar na água para ganhar flexibilidade.

A produção é toda feita nos lares de cada uma. Algumas têm o apoio da família. Em meio às dificuldades, Valdecira Maria da Silva Reis, 45, é exemplo de força, resiliência e talento. Val, como é chamada por todos, aprendeu com a mãe a habilidade de tecer. Mãe de seis filhos, recebe benefício do governo e paga o que mais der com dinheiro que recebe das bolsas. O cipó, para ela, é prazer e distração. Tecer uma bolsa a faz ;esquecer de tudo;, dos problemas e dos desafios diários. ;Tenho um filho acamado, e só consigo sair quando meu marido está. Mas ele gosta de tirar umas férias de vez em quando, sabe. Tomar umas. Passa vários dias fora de casa.;

Da Amazônia para o mundo

Em uma era em que o mercado da moda anseia por propósito e sustentabilidade na cadeia produtiva, a Teçume da Floresta ocupa seu espaço. A história da marca conta com parcerias com marcas renomadas, como Cris Barros, Giuliana Rommano, Yael Sonia e DVF. De acordo com Jeff Ares, relações públicas e membro voluntário da Casa do Rio, o objetivo sempre foi colocar o artesanato da Amazônia no mapa da moda nacional. ;Acreditamos no artesanato como um produto do mercado de luxo. O brasileiro encara o trabalho manual como algo inferior, mas ele é a identidade do design nacional. É o luxo brasileiro;, defende.

Com a crença de que a Teçume da Floresta é a mistura entre o design contemporâneo e a ancestralidade do Brasil, a marca adere ao movimento slow fashion ; sistema de produção que não se encaixa nos padrões de massa e leva em consideração o valor do trabalho, o impacto ambiental e a qualidade do produto. A renda arrecadada por meio de parcerias com grandes marcas já foi investimento para programas de alfabetização das artesãs. Atualmente, toda peça vendida é direcionada para o sustento familiar de cada uma.

Para impulsionar a divulgação da marca e reforçar o espírito empreendedor nas artesãs, a Casa do Rio se uniu à Fundação Pedro Jorge ; organização sem fins lucrativos, instituída pela Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR) ; e elaborou um intercâmbio de voluntários na cidade de Careiro Castanho.

Denominado Teçume Virtual, o projeto criou uma loja on-line para a marca, que será lançada ainda neste semestre. Formado por profissionais e estudantes, o grupo de jovens intercambistas ministrou oficinas sobre as mais diversas expertises: fotografia, filmagem, empreendedorismo, mídias sociais e língua portuguesa.

Thiago Cavalli, fundador da Casa do Rio, afirma que a criação de um canal de venda próprio da Teçume era, até então, uma realidade distante. ;É uma grande conquista, uma mudança de cultura. Um sinal de que elas estão amadurecendo.;

Sonhos bordados

;No bordado, estou vendo um futuro.; As palavras de T.L., 27 anos, são carregadas de esperança. Detenta da Penitenciária Pública de Formosa, em Goiás, está há três anos e dois meses no cárcere, por tráfico de drogas. Hoje, ela se sente acolhida pelo projeto Futuro Bordado, também de autoria da Fundação Pedro Jorge, que visa a reinserção das presas na sociedade por meio do trabalho manual.

Em encontros pontuais, as detentas têm aula de bordado e de encadernação. A empresária e instrutora do projeto Danniella Ribeiro, proprietária da marca Malagueta Craft, é quem ensina o bordado para as detentas. Ela comenta que a atividade é uma forma positiva de ocupação de tempo e que amplia as possibilidades profissionais no período pós-pena.

;É uma maneira de mostrar para elas que é possível fazer algo e ser alguém, sem voltar para o crime. É uma esperança.; A atividade dentro do presídio também conta com remissão de pena: as horas dedicadas ao bordado reduzem o tempo de cárcere.

Na penitenciária, veem-se paredes descascadas, fios aparentes e móveis deteriorados. Localizado no centro da cidade, o local é casa para 15 detentas, que moram em celas coletivas, em cubículos de aproximadamente cinco metros quadrados.

M.C., 23 anos, é participante assídua das oficinas. Condenada a 20 anos de prisão por latrocínio, ela conta que saiu de casa aos 11 para traficar. Cabisbaixa, um tanto trêmula, ela desabafa: ;Todo dia eu roubava, assaltava. Virou um vício na minha rotina. Até que chegou o dia em que matei para roubar;.

Sem família na cidade, M.C. achou no bordado uma ocupação em que ;o tempo não fica perdido;. Ao bordar, ela deixa o passado de lado e foca no presente, de olho no futuro. ;Quero conseguir resgatar minha mãe do mundo das drogas, reconstruir minha família. Não quero bem material, não quero nada. Só eles.;

Por enquanto, a penitenciária só recebe um projeto social. ;Além desse, apenas as igrejas que vêm com frequência, fazem umas confraternizações aqui. E só;, comenta Kyrian Fayad, agente da penitenciária. A profissional reconhece que, depois da entrada do projeto na prisão, houve mudança no comportamento e até na autoestima das presas.

O Futuro Bordado, além da reinserção social, tem o objetivo de garantir renda para as detentas, seja para comprar mais material, seja para ajudar as famílias de cada uma. Como o projeto é recente ;a primeira edição ocorreu em outubro passado, e a segunda ocorrerá no próximo 20 de março ;, ainda não há uma comercialização consolidada. Com os primeiros objetos produzidos, inclusive, as detentas escolheram presentear seus parentes.

Em um futuro breve, a Fundação Pedro Jorge quer empoderar as mulheres detentas por meio de um ambiente empreendedor contagiante. ;Nossa ideia é criar uma loja virtual com os artigos produzidos, além de fechar possíveis parcerias com estilistas e marcas, incluindo bordados em peças e coleções de roupa;, afirma Tayná Lemes, autora e coordenadora do projeto em Formosa.

De voz baixa e fala curta, T.L. diz que o bordado tem importância e sentido em sua vida. É importante porque, com ele, conseguiu mandar dinheiro para a família, que ajuda a sustentá-la durante o cárcere. ;Se não abrem a porta enquanto a gente está aqui, quem vai abrir quando a gente sair?;, questiona. Assim como M.C., ela compartilha um sonho: continuar a bordar e abrir uma escolinha de futebol no futuro. ;Quero ajudar pessoas na mesma situação que eu. Para mim, preso é igual criança: é na educação que resolve.;

Barro que fortalece


Em uma pequena casa localizada na região da horta comunitária de Planaltina do DF, reúne-se um grupo de artesãos que faz do barro uma esperança. Nas manhãs de quinta-feira, eles se juntam para moldar o próprio futuro.

A casa onde ocorre a produção é uma das sedes do Instituto Maria do Barro, reconhecido na região pelo trabalho social voluntário desenvolvido para a comunidade local. No passado, eram referência no trabalho de tecelagem. Hoje, os teares e as máquinas de costura estão encostados na parede, empoeirados, por falta de verba para compra de material e manutenção.

Contudo, parar não foi uma opção. Apoiados pela ONG Paranoarte, atualmente, movimentam oficinas de cerâmica, em que a argila é delicadamente modelada em objetos utilitários e decorativos. Escolhida pela própria Maria do Barro para dar continuidade à memória do Instituto, Idalete Silva, 48 anos, é considerada presidente vitalícia do local.

Artesã, faz da criação de objetos decorativos sua única renda. Incomodada, quer empoderar mais mulheres por meio do barro, mas sente falta de apoio. ;Existir a gente já existe. Maquinário a gente já tem. Tirando a Paranoarte, que nos resgatou, somos esquecidas. Vivemos de doação.;

Desafios

A turma das quintas-feiras é mesclada: tanto mulheres quanto homens participam das aulas de capacitação administradas pela Paranoarte. Vanessa Goldenberg, 46, instrui um grupo de seis pessoas, todas com debilitações físicas ou psicológicas. Segundo ela, a luta pela inclusão deles na sociedade e no comércio é prioridade. ;E aqui eles se sentem fortalecidos para trabalhar;, argumenta.

A paraense Maria Nelma Sousa, 50, é aluna assídua e acredita no sonho de ser uma ceramista profissional. Ela conheceu o Instituto Maria do Barro quando chegou a Brasília, em 1997. Começou como doméstica no local, entrou para a turma de tapeçaria e tornou-se ceramista há oito meses. Durante esses anos, criou 10 filhos na cidade, um deles paraplégico. Para ela, barro é sustento e terapia. Segurando a travessa em formato de folha, ainda inacabada, ela diz que quer tornar rentável a atividade. ;Ainda, estou aprendendo, mas quero fazer disso meu trabalho.;

Desde 2003, a Paranoarte é referência no DF em apoiar projetos sociais e transformar realidades. Fundada pela psicóloga e assistente social Aída Rodrigues, 60, já chegou a apoiar cerca de 20 projetos nos arredores de Brasília. Atualmente, abraça apenas o Maria do Barro. ;A gente visa aprimorar a técnica primeiro e inserir a mente empreendedora. Queremos ver o desenvolvimento das pessoas.;

Contudo, Aída revela que há dificuldades no escoamento de produto e na comercialização. Alguns pontos da cidade recebem os artigos de cerâmica feitos pelos artesãos ; como o viveiro Aroeira, no Polo Verde, do Lago Norte ;, mas, ainda assim, é fraca. Em complemento, a coordenadora da ONG Helenice Bastos, 54, expõe: ;Artesanato é cíclico. Vive em altos e baixos. Não tem política pública que apoie. Muitos consideram como um complemento de renda, não como profissão.;

*Estagiária sob supervisão de Sibele Negromonte