Jornal Correio Braziliense

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Personagens estereotipadas trazem debate e polêmica ao carnaval

Algumas brincadeiras carnavalescas guardam uma carga preconceituosa. Minorias e grupos engajados acham que está na hora de rever os estereótipos associados ao festejo

André Baioff*

 

Nega Maluca, personagem muito comum no carnaval: precisamos disso? 

Cada um prioriza o que quer quando vai se fantasiar para o carnaval. Alguns pensam no calor e querem roupas frescas; outros se preocupam em ficar atraentes. Nisso, pouca roupa ajuda. Há ainda quem pensa na praticidade e cria uma produção com o que já tem em casa. O resultado é uma quantidade enorme de fantasias, sendo boa parte delas uma releitura de temas tradicionais. Frequentemente, esses motivos têm um quê de politicamente incorretos, o que vem gerando um grande debate sobre o que é, ou não, ofensivo.

 

Como o carnaval é a festa da inversão de valores, em que o bobo da corte faz piada com o rei, esse constrangimento foi, por muito tempo, minimizado. Agora, não mais: existem grupos seriamente determinados a questionar personagens típicos, como a Nega Maluca, e o teor das letras de certas marchinhas, que variam entre o machista, o homofóbico e o racista. Para esses ativistas, a brincadeira não tem graça.

A produtora cultural Tainá Almeida, 29 anos, integrante do Coletivo Meninas Black Power do Rio de Janeiro, diz que a fantasia da Nega Maluca é um das mais preocupantes, porque satiriza as mulheres negras. “Pessoas não negras fazem black face (pintam o rosto de tinta preta), usam perucas de cabelos crespos no estilo black power, colocam enchimentos para simbolizar os seios e as nádegas e, assim, reforçam estereótipos hipersexualizadores da mulher negra”, detalha a jovem.

Para a jornalista Juliana Cézar Nunes, 36 anos, integrante da irmandade Pretas Candangas e da Comissão de Jornalistas pela Igualdade Racial do DF (Cojira-SJPDF), certas fantasias reforçam, sim, preconceitos travestidos de humor. Além do black face, ela explica que os trajes carnavalescos têm o poder de reforçar papéis sociais. “Isso fica bem evidente nas fantasias eróticas e depreciativas de enfermeiras e empregadas domésticas. São profissões, em geral, exercidas por mulheres, principalmente negras, que não raramente vivem situações de assédio, racismo e violência sexual no seu cotidiano. Colocar isso no carnaval, a pretexto de ‘brincadeira’, autoriza a continuidade dessas agressões”, afirma.

Outra caracterização comum é a de índio. Há quem a considere inofensiva, comparável à de japonês, por exemplo. A mestre em ciência sociais Eliane Oliveira, pesquisadora do Núcleo de Estudos Interdisciplinares Afro-Brasileiro da Universidade Estadual de Maringá (NEIAB/UEM) e fundadora e administradora do projeto Preta e Acadêmica, explica por que a comparação não é válida. “Devemos analisar a apropriação cultural para além da interação social entre diferentes grupos, pois vivemos num mundo dividido entre dominantes e dominados e, nesse contexto, precisamos perceber a quem cabe dizer ou determinar o valor de uma cultura.”

Taily Terena, 23 anos, estudante de antropologia da UnB, é indígena da tribo Terena, do Mato Grosso do Sul. Ela nota que a discussão sobre apropriação cultural está mais intensa do que nunca e concorda que muita coisa precisa mudar. “Comigo, já aconteceu de pessoas vestidas de indígenas baterem na boca para fazer o que acham que é ‘barulho de índio’. É carnaval, mas não é bagunça”, pondera. “É muito desrespeitoso, porque os acessórios que usamos têm significados, e, inclusive, alguns são sagrados”, completa. Ela relata um dos piores argumentos que já ouviu: “Mas você é índia e usa calça jeans e celular”.

Esse raciocínio não se sustenta se levada em consideração a dinâmica dominantes-dominados em nossa sociedade. “Estruturalmente, no Brasil, as culturas negra e indígena foram marginalizadas e, algumas vezes, temidas, como no caso da capoeira e também do samba. O racismo que atinge nossa formatação sociocultural fez com que a preservação dessas culturas fosse ameaçada e, na maioria das vezes, só teve seu reconhecimento legitimado quando os brancos passaram a reproduzir ou fazer uso desses elementos”, esclarece Eliane Oliveira.

As pessoas questionadas por Taily insistiram ainda: vestem-se de índio por respeito e por gostarem da cultura. Mas ela garante que, se gostassem mesmo, não o fariam. “O brasileiro não conhece os indígenas do país dele e banaliza a sua imagem. O cocar, por exemplo, é sagrado. Não são todos indígenas que podem usar, tampouco em qualquer ocasião.”

 

Mudança de comportamento


Aqui, na capital federal, há seis anos, nasceu um bloco de carnaval que se tornou um dos mais esperados da festa. Um grupo de amigos que trabalhavam em uma agência de publicidade mantinham uma tradição de colocar músicas antigas do estilo carnavalesco. Em umas dessas, ressoou, na voz de Robertinho de Recife, o sucesso Babydoll de naylon. Foi quando alguém gritou: “Essa música já é um bloco de carnaval”. A ideia agradou. “Meia hora de conversa depois, tínhamos decidido alugar um pequeno carro de som e chamar alguns poucos amigos para curtir. Apareceram, naquele sábado do carnaval de 2011, por volta de 80 pessoas e o resto é história”, define David Murad, 34 anos, diretor do bloco Babydoll de Naylon.

Os foliões vão vestidos de babydoll, sejam eles do sexo masculino ou feminino, e isso traz um certo conforto àqueles que desejam se divertir sem sentir tanto calor. Mas a prática de homens se vestirem de mulher também gera polêmica. Umas das críticas é que muitos desses homens que se vestem de mulher no carnaval passam o resto do ano sendo preconceituosos com transgêneros e drag queens. David Murad reconhece e concorda com a crítica, mas assegura que o intuito do bloco não é, de forma alguma, ridicularizar a comunidade LGBT, tampouco as mulheres. “A gente sempre deixa claro que, se a pessoa tem qualquer tipo de preconceito, não deve nem passar perto do Babydoll de Nylon”, reforça.

O estudante e artista Henrique Sales, 29 anos, é drag queen. Criou a personagem Baby Brasil há 14 anos e, desde então, tem sido ativista LGBT. A drag reconhece que os blocos de carnaval brasilienses evoluíram muito, no sentido de respeito às diferenças, mas nem sempre foi assim. “Um tempo atrás, eu estava com um grupo de amigos em um bloco no Eixão. Vieram alguns homens e nos agrediram. Tivemos que passar por esse constrangimento. Felizmente, não foi nada grave”, relembra. “A partir do momento em que a população LGBT tem um certo status e visibilidade, as pessoas passam a respeitar”, acredita.

Juliana Nunes, do Pretas Candangas, reforça que a mídia pode ter um papel importante nesse processo e deveria fazer campanhas para conscientizar os foliões. “As campanhas poderiam usar um tom bem-humorado, dialogando com o espírito carnavalesco, mas trazendo a crítica”, sugere. “É possível fazer um carnaval bonito e divertido sem agredir ninguém. Só precisamos de um pouco de esforço para desconstruir preconceitos e inovar. Se aprendemos a fazer piada contra grupos sociais vulneráveis, acho que também podemos aprender a fazer críticas sociais de forma irreverente contra estruturas opressoras e violentas”, reflete.

E, por conta disso, o coletivo Meninas Black Power decidiu produzir um ensaio fotográfico no estilo de carnaval e mostrar para as pessoas que é possível brincar sem agredir a condição de ninguém. “Surgiu para ajudar a promover a eliminação dos preconceitos particulares e fornecer meios para que essa aceitação pessoal aconteça e seja eficaz”, conclui.

 

 

Reflexão na música


Algumas marchinhas são um tanto preconceituosas. Por exemplo, “O teu cabelo não nega”. “É uma música racista e sexista que reforça o lugar preterido de mulheres negras no mercado afetivo. Exemplo disso são os versos ‘o teu cabelo não nega, mulata, porque és mulata da cor / Mas como a cor não pega mulata / Mulata, eu quero seu amor’”, ressalta a jornalista Juliana Nunes, da fraternidade Pretas Candangas.

Tem muita gente tentando fazer um carnaval diferente, com mais abertura à diversidade. No Rio de Janeiro, alguns blocos anunciaram que não tocariam mais determinadas marchinhas. A decisão dividiu opiniões. As clássicas O teu cabelo não nega, Índio quer apito?, Maria Sapatão e Cabeleira do Zezé foram banidas do repertório por conter mensagens de cunho racista, homofóbico e machista.

 

 

 

 

 

ENTREVISTA / Eliane Oliveira, professora de sociologia

 

O que é apropriação cultural?

Apropriação cultural, conceitualmente falando, é adoção de elementos culturais de um determinado povo por um grupo diferente. A meu ver, devemos analisar a apropriação cultural para além da interação social entre diferentes grupos, pois vivemos num mundo dividido entre dominantes e dominados e, nesse contexto, perceber a quem cabe dizer ou determinar o valor de uma cultura. O foco da discussão desse tema na atualidade brasileira está relacionado à preservação de símbolos da cultura afro que vêm perdendo seu significado cultural e religioso e sendo transformados em produtos meramente comerciais.

É possível usar elementos de outra cultura sem estar se apropriando daquilo?

Nos desfiles das escolas de samba, temos as baianas, que são fantasias voltadas para a preservação da memória do povo do candomblé. Muita gente desconhece a referência, mas as baianas estão lá, abrindo os caminhos das escolas de samba. O problema são fantasias que fazem chacota com a estética negra, como as perucas black, as Negas Malucas e o black face. Isso não é se fantasiar de uma cultura na perspectiva de reverenciar uma tradição, mas violentar um povo que sofre por anos o peso de padrões idealizados, que valorizam o branco como o bonito. O brasileiro precisa entender que o fato de sermos um país em que culturas se misturam não significa que temos que desconsiderar a importância de todas. Não podemos falar de apropriação cultural no Brasil sem levar em conta o racismo estrutural, que permeia nossas relações sociais.

É o caso, na sua opinião, de dizer “não se fantasiem de um povo que não é o seu”? 

Nós somos um povo de misturas, não tem como negar isso, mas, em relação aos negros, é importante lembrar que a miscigenação brasileira não se deu de forma romantizada, como descrita em livros escritos por teóricos brancos, donos de grandes estâncias. A mulher negra foi violentada, estuprada e teve filhos dos seus senhores. Esses filhos foram vendidos como escravos. Quando alguém exalta nossa miscigenação como algo que nós, negros, devemos considerar nessa questão de apropriação cultural, penso numa sordidez sem tamanho. A cultura brasileira é híbrida porque somos um país colonizado, muitos elementos de distintas culturas já são usados, inclusive em nossa língua, o que me espanta é essa necessidade de se continuar tentando desconfigurar alguns elementos que são intimamente ligados à resistência, à ancestralidade e à religiosidade negra. Os brancos podem usar elementos da cultura afro? Podem, mas o ideal é que se conscientizem sobre aquilo que querem fazer uso.

 

* Estagiário sob a supervisão de Gustavo T. Falleiros