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O câncer do Brasil

Entenda como é viver com uma neoplasia em um país que não oferece todos os tratamentos de ponta já usados em outras partes do mundo. Um país em que os anos de vida da população enferma podem ser contabilizados pela qualidade do atendimento disponível e o acesso a medicamentos

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O SUS na capital

Depois de denúncias feitas por um médico do Hospital de Base, a Comissão de Educação, Saúde e Cultura da Câmara dos Deputados verificou, no fim do mês de maio, a situação in loco. "Descobrimos que tudo o que a gente achava que era ruim, na verdade era muito pior. Saímos de lá absolutamente estarrecidos", conta o deputado Professor Reginaldo Veras, presidente da Comissão.

Segundo o relatório emitido pelos deputados, há somente um aparelho de radioterapia funcionando. Outros dois estão sem manutenção há dois anos, quando a obrigatoriedade do ajuste é a cada dois meses. O hospital também tem um equipamento de ponta, o pet-scan, que rastrea tumores pelo corpo, mas nunca foi instalado. Além disso, faltam vários medicamentos.

"A primeira coisa que temos que reconhecer é que as definições de ;caótico; ou ;calamidade; correspondem à realidade. A situação é grave e, feito esse reconhecimento, as frentes estão abertas. A necessidade de normalização do abastecimento e dos contratos de manutenção é aguda", garante Bruno Sarmento, gerente de cuidados com câncer da Secretária de Saúde do DF.

Há problemas em todas as etapas do tratamento oncológico em Brasília. Na área de diagnóstico, a tomografia é o principal gargalo, uma vez que não atende a demanda total, que extrapola os casos de câncer. Nas cirurgias, necessárias para quase 70% dos pacientes, o modelo que funciona atualmente não é o ideal. Os procedimentos são feitos nos hospitais regionais e, como o tratamento oncológico é de alta complexidade, exige especialização. "Tem gente sendo operada por médicos não especializados e os pacientes de câncer disputam espaço com as vítimas de traumas urgentes", afirma o médico.

Quanto aos remédios, há uma lista de 53 remédios listados para tratamento oncológico e, hoje, faltam 12 na capital. Se o paciente precisa de um tratamento que está disponível, tem que esperar uma semana ou até 10 dias. Caso a droga possa ser substituída por outra disponível, o paciente começa a se tratar com mais rapidez. Mas se o remédio está em falta, o hospital tenta comprar, respeitando um orçamento máximo de R$ 8 mil reais. Quando não consegue, o paciente pode entrar na justiça. "Os medicamentos que faltam estão em processo de compra", Bruno tranquiliza.

O cenário mais grave em todo o tratamento oncológico é o da radioterapia. A rede não foi ampliada nos últimos anos de acordo com o crescimento e a necessidade da população. A OMS recomenda a existência de uma máquina para cada meio milhão de habitantes. Pela SES-DF, no entanto, existem apenas três disponíveis, que atenderiam 1 milhão e meio de pessoas, ou seja, a metade da população da capital. Para agravar a situação, os aparelhos não trabalham com o desempenho máximo. Por serem muito antigos, é difícil encontrar manutenção. "O funcionamento é confiável, porque a cada dia o físico responsável faz medidas. Mas não podemos tratar muitos pacientes e trabalhamos com mais ou menos a metade da capacidade. A fila já supera 900 pessoas atualmente", lamenta Bruno.

Mas, este ano, há pelo menos uma boa notícia. A fila de pacientes aguardando consulta em oncologia clínica chegou a zero. "Sabemos que não quer dizer que o paciente vai ser tratado, mas é uma vitória que precisa ser registrada. Sem a consulta, o paciente fica em casa, ansioso, sem saber qual a chance de cura, enquanto a doença progride. Quando ele entra no consultório, as perguntas são respondidas e alguns sintomas começam a ser tratados, além de conseguir a prescrição do tratamento", comemora.

No começo deste mês, os deputados da Comissão tiveram uma audiência de quase duas horas com o governador e representantes da SES-DF para encontrarem, juntos, formas de amenizar as carências. "O secretário disse que era questão de orçamento, então, conseguimos fazer um remanejamento de crédito de R$ 35 milhões para o Hospital de Base", explica o deputado Reginaldo Veras.

A verba será destinada, principalmente, para quitar as dívidas com os fornecedores de remédios, comprar novos medicamentos, garantir a manutenção dos equipamentos de radioterapia, concluir a instalação do pet-scan, além de contratar clínicas particulares em caráter emergencial para atender a população que depende urgentemente do serviço público. "Estamos otimistas. Agora, é fiscalizar cada passo", garante o deputado.

Obviamente, o dinheiro soluciona alguns problemas, mas outros não são resolvidos apenas com o auxílio financeiro. Para instalar o pet-scan, por exemplo, é preciso um projeto de engenharia. "Esperamos lançar um edital em 30 dias para contratar prestadores de serviço privados, mas é caro e a expectativa de oferta de vagas é pequena", afirma.

Há planos de dar início a obras e recuperar os centros de tratamento já existentes, além de criar o Hospital Oncológico de Brasília. O projeto, em parceria com o Ministério da Saúde, existe desde 2012, e a expectativa é de que a licitação saia ainda este ano. A equipe que desenhou o projeto é a mesma que participou da construção do Icesp e da ampliação do Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo.

"Será uma referência regional, com capacidade para fazer no mínimo 5 mil cirurgias por ano. Serão 162 leitos, sete salas para cirurgia e uma para emergências, com a capacidade total de absorver mais 2 mil pacientes. Continuaremos com os atendimentos no Hospital de Base e no Hospital Universitário, mas a pressão vai diminuir bastante", prevê. Se tudo correr bem, a expectativa é que o hospital esteja funcionando em, no mínimo, três anos. "Temos a perspectiva de que, daqui a quatro ou cinco anos, tenhamos uma assistência oncológica decente, no nível que a população deseja e espera."

O caminho dos remédios oncológicos

Em primeiro lugar, o medicamento precisa de um registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). "No caso de um fármaco inovador, ou seja, caso a substância ativa ainda não tenha sido registrada na mesma concentração, forma farmacêutica ou indicação desejada, será necessário todo um processo de Pesquisa e Desenvolvimento. Descrito de forma geral, se inicia com a descoberta e síntese de uma molécula, desenvolvimento farmacotécnico do medicamento e posteriormente realização de estudos pré-clínicos (em animais) até se chegar na pesquisa em humanos (fase de pesquisa clínica)", explica a assessoria do órgão.

A agência, então, analisa os dados e, se aprovados, recebem um número de registro e podem seguir para a precificação. O processo de análise do registro de um medicamento novo dura, em média, de oito a 12 meses, podendo ser maior, dependendo da complexidade da análise. Medicamentos oncológicos seguem o mesmo caminho de qualquer outro remédio.

O processo passa, então, para a Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED). O órgão é formado por cinco Ministérios: Saúde, Fazenda, Indústria e Comércio, Casa Civil e Justiça. "A câmara tem que enquadrar o medicamento em uma das seis categorias definidas pela resolução. Se o produto conseguir, por meio de estudos e evidências científicas robustas, provar que é um grande diferencial em termos de eficácia ou de menor efeito colateral em relação ao tratamento antigo, ele recebe o menor preço pelo qual é comercializado entre nove países definidos", conta Pedro Bernardo, diretor de Acesso da Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa (Interfarma).

Como a indústria farmacêutica gasta pelo menos 15 anos e muito dinheiro para criar um novo medicamento, ela espera que o preço esteja de acordo com a expectativa de lucro. Se o valor definido pela CMED não for aceito, a indústria pode solicitar uma revisão da proposta ou simplesmente desistir de lançar o produto.

A partir daí, o medicamento tem dois caminhos. Para seguir para o SUS, é preciso mandar um pedido para incorporação do medicamento junto à Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec). "Apesar de ser responsabilidade e interesse do Ministério da Saúde oferecer novos tratamentos, quem faz o pedido são as indústrias, as associações de paciente e a sociedade de oncologia. O Ministério tem obrigação de cuidar das pessoas", pressiona Gustavo Fernandes, presidente da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica.

Segundo uma pesquisa da Interfarma, 56% dos pedidos de incorporação são negados e 79% das solicitações, em geral, é feita por agentes externos ao governo. "A maior parte das negativas diz que as drogas não funcionam, o que é uma leitura diferente do que acontece no resto do mundo. É discordar de especialistas do mundo inteiro, porque o medicamento que chega aqui já é usado lá fora. Gente que nunca participou de uma pesquisa clínica avalia o que os outros fizeram e reprova", continua o presidente da SBOC. Outra justificativa comum é a falta de dinheiro ou que o custo-benefício não vale a pena. Sem acesso ao medicamento pelo SUS, o paciente pode entrar na justiça para garantir a droga.O outro caminho é para entrar no rol de medicamentos que devem ser ofertados pelos planos de saúde.

A lista é atualizada a cada dois anos pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). "Esse processo de revisão ocorre com a participação da sociedade, no âmbito do Comitê Permanente de Regulação da Atenção à Saúde (Cosaúde), formado por representantes de órgãos de defesa do consumidor, prestadores de serviços, operadoras de planos de saúde, conselhos e associações profissionais, representantes de beneficiários, dentre outras entidades", explica a assessoria da ANS. São avaliadas a segurança e a efetividade do tratamento, custo-benefício e disponibilidade de rede prestadora, entre outros quesitos. A proposta final vai para uma consulta pública e, depois de aprovada, entra na lista de medicamentos disponíveis. A última atualização foi feita em janeiro deste ano e foram incluídos 40 medicamentos quimioterápicos orais.

O grande obstáculo nesse processo é a demora na atualização pela ANS. O paciente tem que esperar pelo menos um ano pela aprovação na Anvisa, a precificação e, depois, mais dois anos para contar com o tratamento. "Imagina a quantidade de gente que morre nesse tempo, a quantidade de gente que deixa de ser atendida. O paciente de câncer não tem esse tempo para esperar. A lei dos 60 dias existe no atendimento público, mas no particular o paciente pode esperar mais de 700 dias?", questiona Gustavo. Segundo a ANS, o método atual só pode ser modificado quando a lei for mudada.

VOCÊ SABIA?

Dos 80 medicamentos de indicações gerais incorporados ao SUS, a maioria, 45 deles, é formada por terapias disponíveis no mercado há mais de 15 anos. Já remédios lançados mais recentemente, com até cinco anos no mercado brasileiro, tiveram uma incorporação bem menor, de apenas 13 produtos.

Fonte: Interfarma: Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa

Onde se tratar na rede pública de Brasília

Hospital Universitário de Brasília/Fundação da Universidade de Brasília (Unacon com serviço de Radioterapia)

Hospital de Base do Distrito Federal/SES do Distrito Federal (Cacon serviço de Oncologia Pediátrica)

Hospital Sarah /Associação das Pioneiras Sociais (Unacon)

Câncer na rede particular

Na rede privada, o desenrolar do diagnóstico acontece muito mais rápido. Ao perceber os sintomas, o paciente marca uma consulta. Se encaminhado para um oncologista, a ANS garante em lei que o atendimento seja feito em até 14 dias. A partir daí, o médico decide o tratamento e, se tudo der certo, o paciente começa logo a luta pela vida.

O problema é que a medicação precisa estar incluída no rol de Procedimentos e Eventos em Saúde, definido pela ANS, que é atualizado a cada dois anos. Se não for o caso, o paciente doente deve brigar pelo atendimento na Justiça, protagonista de um processo conhecido como judicialização da doença.

Enquanto o paciente tem direito de ser atendido com o que há de melhor, a maioria das causas, se bem defendidas, é ganha. "O Judiciário tem tratado o tema com maior juridicização, não existindo espaço para decisões apenas com fundamento na urgência da causa e risco de morte do autor", conta a advogada Karolina Leal. "Como não há ainda um caminho de ações coletivas bem delineado no país, predominam as ações individuais e, nestas, o desdobramento mais comum é a obtenção de decisões favoráveis aos pacientes já no início do processo judicial." Apesar disso, o processo poder se arrastar por até três anos.

Ou seja, as operadoras de saúde são defendidas de processos pelo rol da ANS, e o paciente precisa processar o Estado para conseguir o tratamento. Mas claro que não é uma decisão simples para nenhuma das partes envolvidas. Cabe ao médico, o advogado e o paciente avaliarem se é válido o desgaste de um processo judicial. Em alguns casos, o medicamento receitado é oneroso e não garante muito tempo de vida ao paciente.

No caso de seu Antônio, o remédio era caro, mas ele teve como bancar sua chance de cura. Além de passar por uma reabilitação bem desgastante, o desconforto de ter que gastar mais de R$ 30 mil reais em remédios que deveriam ser cobertos pelo plano é grande. Em outubro de 2015, o engenheiro entrou com um processo na Justiça pedindo o reembolso do montante dispendido. "O gasto é, certamente, um transtorno. A resposta da Justiça ainda não saiu, ficamos esperando o retorno. Mas em janeiro deste ano, o remédio foi incorporado pelo rol e, agora, o plano de saúde assumiu os gastos", explica.

É um caso complicado. O maior problema da judicialização do câncer para o governo é que tem um impacto grande no planejamento do Ministério da Saúde. A Secretaria Estadual de Saúde de São Paulo, por exemplo, estima que se gasta cerca de R$ 1 bilhão por ano só para pagar processos judiciais. "Dava pra construir uma rede de postos de saúde ou um hospital com esse dinheiro", contabiliza Gustavo. "O paciente está no direito de garantir o acesso ao melhor tratamento e a Justiça tem uma atuação bem bacana, no sentido de tentar defender o cidadão. Mas, às vezes, a disparidade só se aprofunda mais, porque, além de uma diferença no acesso à saúde, existe o acesso à luta pelos próprios direitos. O Ministério da Saúde tem um levantamento que afirma que a maior parte do dinheiro é pago para famílias de alta renda", continua. O dinheiro que é gasto com a judicialização é o mesmo que se investe no funcionamento geral do SUS.

Pedro, da Interfarma, afirma que a judicialização é, no fim das contas, ruim para todo mundo. Desorganiza o sistema. O planejamento do Ministério tem que ser alterado. A indústria tem que lidar com compras sendo feitas de forma esporádica, sem previsão e acaba tendo que manter um estoque de custo elevado para garantir a entrega do medicamento, sem nenhuma garantia de que o produto será, no fim das contas, vendido. "O melhor seria se o governo se sentasse com o laboratório, negociasse o preço, fizesse um planejamento e organizasse uma venda única. Acabaria sendo mais barato e eficiente para todos os lados", afirma Pedro. Mas essa venda única dependeria da aprovação da Conitec, e a aprovação esbarra em um problema conhecido: a falta dinheiro.

O futuro

Quem acompanha o cenário do tratamento oncológico no Brasil sabe que ainda há um longo caminho para que os protocolos de tratamento daqui se equiparem aos internacionais. Atualmente, o Ministério da Saúde apaga incêndios com pouca verba todos os dias. "A agonia é que a gente não faz nada hoje. É preciso educar as pessoas sobre ter hábitos saudáveis e tentar se preparar para o que vem pela frente. Discutir o que vamos oferecer, o que é o mínimo obrigatório. Precisamos falar mais sobre câncer. Só escutamos filas, demora, desigualdades, mas o câncer também tem a face que sobrevive, de gente que vira a página, gente que trabalha, gente que envolve e se engaja. Não é necessariamente uma sentença de morte", afirma Luciana Holtz, do Instituto Oncoguia.

"O que eu acho que o Brasil tinha que se esforçar para montar estruturas de pesquisa clínica. Primeiro, para diminuir o custo. É uma fonte diferente para tratar o paciente, seja financiada pela indústria ou por órgãos governamentais. Segundo, porque dá acesso ao paciente, a essa enormidade de drogas e a tratamentos novos. Além de melhorar o perfil do profissional brasileiro", explica o oncologista Murilo Buso, do Cettro. Para isso, as regras, as questões legais e os modelos precisariam ser mudados. "Falta mobilização, pressão da sociedade."