Ao longo dos séculos, o Brasil vivenciou diferentes padrões de beleza e de estilo. Passou pelo glamour e pela sensualidade da vedete, a formosura do "brotinho", a valorização do corpo de cintura fina e quadris largos e o advento das top models, mais altas e magras. O país viu a passagem do bicho grilo, o hippie à brasileira, a descontração da Jovem Guarda e a cuidadosa rebeldia dos bad boys. Essas são algumas das características analisadas pela historiadora Denise Sant;Anna. Ela é especialista em história do corpo e autora do livro História da beleza no Brasil.
Na passagem do século 19 para o 20, as atenções estavam voltadas para as tendências burguesas e parisienses. Para estar na moda, era preciso sofrer com o clima tropical e aderir às roupas fabricadas em pesados tecidos e que cobriam a maior parte do corpo. Muitos homens eram adeptos do dandismo, movimento que buscava se diferenciar da antiga aristocracia e que foi marcado pelo uso de modernos e elegantes ternos. Os chapéus eram itens quase essencias e de boa ajuda para esconder a calvície. Já os cabelos femininos só poderiam ser soltos na intimidade do lar, e o foco dos cuidados com a aparência estava na vestimenta e na postura, auxiliada por espartilhos que endireitavam o tronco. Os gestos deveriam ser discretos e o flerte era disfarçado no balanço dos leques. Tempos em que "belleza" era grafado com dois "eles" e o eufemismo para feiura era "carência de elegância".
Corpos femininos malhados e definidos, tão valorizados atualmente, seriam impensáveis quando o ideal era a delicadeza. Os exercícios físicos eram considerados inadequados. "Não foi fácil nem rápido aceitar a imagem de mulheres praticando esportes", observa Sant;Anna. Foi apenas na década de 1980 que a atividade física entrou em alta. As roupas adotaram estilo mais esportivo e as academias ganharam um ar mais feminino. Nos anos 1990 e 2000, começa a se consolidar uma "beleza bombástica", impulsionadas pelo funk e pelas musas do carnaval. Entram em destaque as dietas, os corpos sarados e as cirurgias plásticas. É o auge do direito a interferir no próprio corpo, seja por meio de exercícios, seja pelas intervenções médicas. Coexistindo com esse movimento, mas em direção oposta, também ocorre a valorização da beleza plus size.
Algumas décadas antes, o famoso rebolado de Elvis Presley anunciava inovações na estética. "O homem que dormia de terno acordou com vestes de cores berrantes", analisa a historiadora. É que a contestação hippie aboliu o laquê nos cabelos e a rigidez no comportamento. A vaidade masculina avançou muito com a Jovem Guarda, sobretudo no uso de acessórios, como anéis, colares e brincos. Na década de 1970, seria a vez da androginia de ídolos como David Bowie e, entre nós, Ney Matogrosso, dar as cartas, com consequências que ainda perduram no nosso jeito de ser.
Entrevista // Denise Sant;Anna
O contexto histórico pode influenciar os padrões de beleza?
A história da beleza revela os sonhos e os temores mais marcantes de cada época. Por exemplo, a modernidade proposta na era JK pode ser lida nos elogios às silhuetas lépidas, leves, arrojadas e extremamente juvenis daqueles anos. De fato, os cuidados com a aparência expressam mudanças sociais que não se restringem ao plano estético. Outro exemplo: nos anos 1980, a necessidade de as mulheres concorrerem com os homens no mundo empresarial, assumindo cargos executivos até então reservados a eles, favoreceu um padrão de "beleza executiva" ligado à imagem da "mulher fera", forte, competitiva e voraz. Daí, em parte, a valorização, desde então, das mulheres com corpos musculosos, ombros largos, boca grande e pernas longas.
O Brasil chegou a valorizar uma beleza genuinamente brasileira?
Até os anos 1960, era mais comum aparecer na imprensa o elogio das "belezas regionais". Apreciava-se um rol de morenas de vários tipos e tamanhos (por exemplo, morena jambo, morena clara ou escura, assim como moça brejeira, mignon, cheinha de corpo, miudinha, redondinha etc.). Havia, também, a mistura entre padrões estrangeiros e gostos nacionais, assim como diferenças entre as classes sociais: no começo do século 20, por exemplo, eram principalmente as elites letradas que seguiam as modas europeias e, mais tarde, as referências vindas dos EUA. Com o cinema e, sobretudo, com o advento da televisão e de uma megaindústria de cosméticos, os padrões foram generalizados e, a seguir, ficou difícil dizer de onde vêm as referências da beleza, se elas são inventadas por elites ou pelas classes populares.
Como o preconceito, principalmente o racial, afetou a avaliação dos brasileiros sobre o que é belo?
Até meados do século passado, vários artigos na imprensa assumiam sem constrangimento a suposição de que a pele "alva" e os cabelos que em nada lembravam a carapinha eram sinônimos de beleza e civilidade. Depois da Segunda Guerra Mundial, a tendência foi a de não mais explicitar na imprensa o preconceito, mesmo quando ele ainda existia. A partir da contracultura nos anos 1970 e, sobretudo, com a emergência dos movimentos sociais em prol da igualdade de direitos entre raças e etnias, houve um interesse novo por uma "beleza multicultural", expresso, várias vezes, nas artes e na moda. Mas a suposição de que os cabelos e a pele devem ser lisos ainda resiste à passagem do tempo, limitando, portanto, a possibilidade de apreciar uma gama mais variada de tipos e cores.
Os ideais de beleza se relacionam com o papel de homens e mulheres na sociedade?
A relação é constante. Por exemplo, nos anos 1950, a jovem devia ser, em geral, encantadora e possuir "um dono" (pai, namorado, noivo ou marido). Lembrava as flores, tendo, portanto, hora certa para desabrochar e murchar. Tinha pouca autonomia, devia ser estável, cheirosa, delicada, feito uma rosa. Isso combinava com o papel social das mulheres, mais limitado do que hoje, restrito ao espaço doméstico. Já os homens deviam exibir o garbo de quem era responsável por uma família e o progresso da nação. Mais tarde, com a liberação sexual e feminina, junto da voga unissex, o universo floral foi esmaecido com a emergência da mulher-gata, expressa numa beleza felina e flexível, detentora de uma sexualidade que se queria liberada. Era o padrão de beleza em moda nos anos 1960 e 1970, sugerindo uma aproximação inusitada entre os dois sexos, tanto no corpo como nos direitos e deveres.
Os homens conseguiram se libertar dos estereótipos de masculinidade?
A força e a robustez sofreram mudanças ao longo do tempo: o tórax do primeiro Tarzan de Hollywood é bem mais modesto do que o de qualquer herói dos atuais filmes de aventura. Falava-se em ter muque, mais do que em cultivar músculos em todo o corpo. Os pelos nos corpos masculinos não eram objeto de muitos cuidados, tudo muito diferente de hoje, quando a virilidade passou a combinar, também, com peitos, pernas e costas depilados. Mas os homens dificilmente se libertam da associação entre força física e poder.
Como ocorreu a transição de um ideal de beleza recatada e discreta para uma beleza sensual e independente?
Essa passagem só foi possível graças a mudanças amplas na sociedade, que vão desde a necessidade de integrar mais mulheres no trabalho fora de casa até o advento da pílula anticoncepcional. Houve, ainda, uma ascensão do "poder jovem", posterior aos anos 1950, quando a juventude formou um mercado a parte, com seu modo de vestir, falar, comer e consumir. Foi quando "a birutice" e a descontração se tornaram signos não mais de doença, pobreza ou esquisitice, mas sim de modernidade, criatividade e sensualidade.
Beleza e envelhecimento sempre estiveram em lados opostos?
Na imprensa, falava-se mais em velhice do que em envelhecimento. As pessoas eram velhas ou moças. Nos anos 1940 e 1950, também existia a expressão "mulheres e homens maduros". O amadurecimento era uma fase importante na vida. Mas envelhecer ainda não era um tema muito importante, pois os produtos de beleza destinavam-se principalmente aos jovens. Aparentar a idade que se tinha ; quando esta era sabida com exatidão ; já era uma qualidade invejada! Foi a partir dos anos 1960 que o envelhecimento se tornou um problema recorrente nas revistas e nos jornais do país. Desde então, os termos velhice e feiúra ganharam uma conotação muito forte. É quando, segundo a publicidade, qualquer um poderia rejuvenescer e, portanto, escapar daquilo que nem mesmo é mais aceito na linguagem corrente: ser velho.
As cirurgias plásticas deixaram de ser "uma vergonha a ser ocultada"?
Após a década de 1980, a ideia de que todos têm o direito de "corrigir" cirurgicamente o que é considerado sinal de velhice, feiúra ou mesmo de cansaço, conquistou sucesso em todas as classes sociais. Mudança que se deve aos progressos científicos e tecnológicos, à ampla publicidade que se faz eles, ao aumento da expectativa de vida no país e desse país ser eminentemente um lugar de gente jovem; mas deve-se também ao aumento do receio de ser considerado velho e inútil, de viver, portanto, o risco de ser "descartado" do mercado de trabalho e das relações amorosas.
Quando o peso se tornou uma preocupação?
Desde os anos 1960, o hábito de se pesar e de saber o próprio peso foi banalizado no Brasil. As balanças foram exibidas em drogarias, a seguir, ganharam os clubes de lazer, os banheiros das residências, enquanto que a preocupação com os regimes aumentou como nunca. Mais do que uma epidemia de obesidade, vive-se, desde então, uma pandemia de regimes. É quando o peso de cada pessoa passou a compor a sua identidade, coisa inédita até então! Antes, sabia-se que alguém era gordo ou magro pelo volume do corpo, pelo cinto que não fechava na cintura, pela fita métrica dos alfaiates e costureiras. Com o universo das balanças e das roupas compradas prontas, nós ganhamos um novo saber, um saber que é só nosso, uma nova parte de nossa identidade: somos tamanho 42, 44, 48; pesamos, 60kg, 70kg; Esses dados não constituíam as identidades de nossos bisavós.