Gláucia Chaves
postado em 21/04/2013 08:00
Brasília é uma cidade de peculiaridades. Os que pisam pela primeira vez nas terras da capital federal encontram paradoxos e lógica incomuns às cidades ;convencionais;. Logo de cara, a tesourinha, uma dessas contradições planejadas, dá um nó na cabeça dos forasteiros: se o objetivo é ir para a direita, deve-se, primeiro, virar à esquerda.
Para comemorar os 53 anos da cidade, resolvemos usar a tão querida tesourinha como símbolo. A partir dela, tentaremos entender um pouco do espírito da aniversariante. Para alguns, são belas ferramentas que desenrolam o trânsito. Para outros, áreas vivas e humanizadas da cidade. Já os mais imaginativos preferem usá-las como inspiração. Criadas para facilitar o escoamento do trânsito, as abas dos Eixinhos, para os brasilienses (de nascença ou não), são símbolos queridos e simpáticos da cidade.
Falemos delas, então. Mas não só: as gírias, os sotaques e os outros elementos da arquitetura, incorporados à cultura da cidade, que servem de inspiração.
A Definição
Tesourinha: o recurso semântico empregado na denominação é de natureza metafórica, porque os traços de conteúdo desse termo aproximam-no do objeto tesoura pequena. Tesourinha é uma pista que dá acesso às superquadras, cortando o Eixo-Rodoviário-Residencial.
A descrição do termo é resultado do que começou como uma dissertação de mestrado e se transformou no primeiro dicionário on-line de termos brasilienses. O estudo linguístico foi feito para organizar e definir as famosas siglas que Brasília adora: SQS, SQN, SCLN, SHIS, estão todas lá. Feito pela mestre em linguística e professora de letras da Universidade de Brasília (UnB) Flávia de Oliveira Maia Pires, o glossário contava com 255 termos em sua primeira versão. A adaptação para a internet ganhou mais 45 termos. ;Quando terminei a dissertação, em 2007, me preocupei com os setores, mas na versão on-line acrescentei os monumentos, os personagens que estavam aqui desde o começo e o que temos em termos de estruturas;, detalha.
As agulhinhas (vias de acesso ao Eixão a partir do Eixinho) foram um dos elementos que precisaram ser incluídos na versão mais moderna do dicionário. De 2007 para cá, outras coisas mudaram, como o nome do Estádio Mané Garrincha ; que agora se chama Estádio Nacional Mané Garrincha. A importância urbanística e arquitetônica do Plano Piloto, o fato de a terminologia já ser usada há quase meio século e ainda não ter sido sistematizada e ainda a carência de pesquisas e publicações científicas na área foram os principais motes do levantamento. Além da curiosidade, é claro. Carioca, a pesquisadora conta que não entendeu o desconhecimento do próprio brasiliense a respeito da cidade. ;Achei estranho quando perguntava informações e as pessoas não sabiam dar referências precisas;, relembra.
Os alunos de Flávia também não estavam se dando muito bem no quesito orientação. Professora de português como segunda língua, ela conta que sofria para ensinar a estrutura de Brasília para os estrangeiros. ;Associei a minha dificuldade com a deles e comecei a pesquisar sobre o assunto;, resume. A falta de informações sistematizadas sobre as siglas da cidade e os endereços foi o primeiro desafio. A partir do projeto feito por Lucio Costa, de documentos coletados no Governo do Distrito Federal, na Unesco e de reportagens de revistas direcionadas a turistas, a pesquisadora conseguiu reunir material suficiente para encontrar a definição correta de cada termo.
Assim que encontrar uma editora interessada, Flávia diz que o próximo passo é transformar o projeto em um dicionário físico. ;Quero que seja uma obra de divulgação, porque há em Brasília várias pessoas que vêm profissionalmente, além de muitas embaixadas.; Com explicações simples, a ideia é que qualquer pessoa possa entender o que é Eixão, Eixinho, tesourinha ou bloco sem que precise ser levada até lá.
A Criação
A tesourinha já estava nos planos de Lucio Costa quando Brasília ainda era apenas uma pretensão. Carlos Magalhães estava lá no dia em que as abas dos Eixinhos foram criadas. Em 1959, o então arquiteto recém-formado chegou à cidade. Oscar Niemeyer, Joaquim Cardozo (engenheiro de cálculo) e Israel Pinheiro transformaram o estreante em um homem perdidamente apaixonado por Brasília. Para falar sobre as tesourinhas, ele faz questão de voltar aos tempos em que a capital ainda estava tomando forma. ;Quando Brasília foi feita, era para a cidade exportar desenvolvimento;, explica. ;Brasília não podia ser consequência do desenvolvimento do entorno, mas o vetor.;
Magalhães continua apaixonado pela cidade que ajudou a erguer, porém, anda com o coração partido. Hoje, ele considera Brasília uma cidade ;do meio para baixo;. ;Era para ser uma cidade boa, referência, mas não é. Apesar de ter sido projetada, é suja, mal resolvida, com dirigentes que não prestam atenção;, critica. ;Lembro da dedicação que as pessoas tinham, querendo fazer o melhor possível.; A centralização no Plano Piloto é um dos motivos que leva o arquiteto a acreditar que o trânsito nas tesourinhas (e em toda a capital) não verá dias de paz tão cedo. ;Projeta-se uma cidade com um sistema viário para atender um certo número de pessoas. Daí, você pega essas pessoas todas e bota fora de Brasília, nas cidades satélites. Aí coloca todos os empregos no Plano Piloto. Não tem como acabar com esse problema;, analisa. ;Temos, primeiro, que resolver um sistema de transporte de massa de primeira qualidade.;
As agulhinhas também não melhoram o humor de Carlos Magalhães. ;O Lucio Costa deve estar se revirando no túmulo por causa delas;, brinca. O recurso tira a naturalidade do projeto inicial, segundo o arquiteto. ;Acho que é preciso discutir com os urbanistas e arquitetos para ver qual a melhor solução. Não é uma coisa para ser decidida por uma pessoa só, sentada no gabinete da Casa Civil, que nunca usa e diz que é assim. A agulhinha é ruim até no nome.; Mas se tem uma coisa capaz de realmente tirá-lo do sério é mencionar a possibilidade de Brasília deixar de ser patrimônio da humanidade. ;É preciso valorizar os que trabalharam pela cidade desde o começo. É preciso proteger Brasília.;
A Ocupação
A tesourinha foi feita para os carros, não há dúvidas quanto a isso. Ou há? Para Renato Fino, a área não precisa se restringir aos veículos. Idealizador e organizador do Bloco da Tesourinha, o empresário defende a humanização de Brasília. Desde 2007, o bloco de carnaval conduz uma ;excursão; de foliões por dentro da tesourinha da quadra 409/410 Norte. ;Resolvemos fazer uma homenagem ao frevo e à tesourinha, já que tesourinha também é o nome do principal passo da dança;, explica. Para o primeiro desfile, Fino convidou 12 músicos e fez dois estandartes, usados até hoje: uma faixa escrita ;Bloco da Tesourinha; e um cabo de vassoura com uma imensa tesourinha talhada em madeira e forrada com papel laminado.
O slogan ;Zé Pereira toma caldo na tesourinha; era a segunda parte da homenagem ao frevo, uma vez que fazia alusão ao criador do estilo. O sucesso do bloco foi tanto que nem precisou de slogans posteriores, ou mesmo motivos para acontecer. O desfile de inauguração foi feito tão espontaneamente que Renato Fino nem chegou a pedir o apoio da prefeitura ou mesmo do Detran para conter o trânsito. ;Eu mesmo ia na frente, conduzindo o pessoal;, completa. Quando o grupo alcançou a tesourinha, contudo, ele ficou com medo do carnaval virar uma tragédia. ;Chegamos à conclusão de que poderia ser perigoso, porque já tinha muita gente nos acompanhando. Então, só atravessamos da 210 para a 209 e voltamos.; No ano seguinte, a organização procurou a prefeitura da quadra, que abraçou instantaneamente a causa e conseguiu articular a ajuda da polícia e do Detran.
Quando a multidão passa por debaixo da tesourinha, a banda de pífanos Ventoinha de Canudos, que anima o carnaval, aproveita o eco para puxar o grito de guerra do bloco: ;Ahá, uhul, a tesourinha é nossa;. ;É realmente uma sensação de posse, porque você está ali, a pé, debaixo de uma estrutura que não foi feita para isso, o que, durante a semana é inviável;, justifica Renato Fino. Adultos e, principalmente, crianças fantasiadas dançam e pulam ao som do frevo, tocado por cerca de 20 minutos ; ou até o bloco resolver continuar a caminhada rumo à 410 Norte. ;É uma posse da cidade. Nesse dia, a tesourinha é nossa.;
Renato Fino atribui sua vontade de retomar a posse da cidade da infância. Embora tenha nascido no Rio de Janeiro, ele conta que chegou a Brasília quando ainda estava com um ano e meio de idade. A infância, passada correndo de um lado para o outro entre as quadras ainda peladas da capital, fez com que ele criasse um sentimento de que cada metro quadrado de terra vermelha foi feito para se aproveitar. ;Acredito nessa ocupação da área verde, com cultura e pessoas;, defende. ;Aqui tem toda essa coisa bucólica, de contemplação, mas também temos que ter essa ideia. Acho que essa era a intenção de Lucio Costa e Oscar Niemeyer quando pensaram em todo esse espaço livre.;
Para ele, a cidade que antes era um imenso jardim disponível agora virou uma espécie de escritório. ;Brasília está mais fria. É muita gente vinda de concurso, com data para voltar para casa. Virou uma cidade dormitório, com pessoas que não a sentem como uma cidade comum.; A ideia, então, é reumanizar Brasília. Cada um faz o que pode. Para Renato, a melhor forma de dar vida à cidade é usando a cultura como instrumento. Idealizador de diversos projetos culturais, ele usa seus dois cafés como sede de saraus, concertos musicais, lançamentos de livros e feiras de troca. E ocupa as áreas verdes também. Em 2006, o Projeto Quintal promoveu sete sábados seguidos de música instrumental no meio da quadra 410 Norte. ;Muita gente que está aqui pensa a cidade como local de trabalho. Gosta de carnaval, mas só se for no Pelourinho ou na Sapucaí. Gosta de futebol, desde que seja no Maracanã. Se elas se relacionassem com a cidade, ganhariam muito mais.;
Leia a reportagem completa na edição n; 441 da Revista do Correio.