Brasília é uma cidade de peculiaridades. Os que pisam pela primeira vez nas terras da capital federal encontram paradoxos e lógica incomuns às cidades ;convencionais;. Logo de cara, a tesourinha, uma dessas contradições planejadas, dá um nó na cabeça dos forasteiros: se o objetivo é ir para a direita, deve-se, primeiro, virar à esquerda.
Para comemorar os 53 anos da cidade, resolvemos usar a tão querida tesourinha como símbolo. A partir dela, tentaremos entender um pouco do espírito da aniversariante. Para alguns, são belas ferramentas que desenrolam o trânsito. Para outros, áreas vivas e humanizadas da cidade. Já os mais imaginativos preferem usá-las como inspiração. Criadas para facilitar o escoamento do trânsito, as abas dos Eixinhos, para os brasilienses (de nascença ou não), são símbolos queridos e simpáticos da cidade.
Falemos delas, então. Mas não só: as gírias, os sotaques e os outros elementos da arquitetura, incorporados à cultura da cidade, que servem de inspiração.
A Definição
Tesourinha: o recurso semântico empregado na denominação é de natureza metafórica, porque os traços de conteúdo desse termo aproximam-no do objeto tesoura pequena. Tesourinha é uma pista que dá acesso às superquadras, cortando o Eixo-Rodoviário-Residencial.
As agulhinhas (vias de acesso ao Eixão a partir do Eixinho) foram um dos elementos que precisaram ser incluídos na versão mais moderna do dicionário. De 2007 para cá, outras coisas mudaram, como o nome do Estádio Mané Garrincha ; que agora se chama Estádio Nacional Mané Garrincha. A importância urbanística e arquitetônica do Plano Piloto, o fato de a terminologia já ser usada há quase meio século e ainda não ter sido sistematizada e ainda a carência de pesquisas e publicações científicas na área foram os principais motes do levantamento. Além da curiosidade, é claro. Carioca, a pesquisadora conta que não entendeu o desconhecimento do próprio brasiliense a respeito da cidade. ;Achei estranho quando perguntava informações e as pessoas não sabiam dar referências precisas;, relembra.
Os alunos de Flávia também não estavam se dando muito bem no quesito orientação. Professora de português como segunda língua, ela conta que sofria para ensinar a estrutura de Brasília para os estrangeiros. ;Associei a minha dificuldade com a deles e comecei a pesquisar sobre o assunto;, resume. A falta de informações sistematizadas sobre as siglas da cidade e os endereços foi o primeiro desafio. A partir do projeto feito por Lucio Costa, de documentos coletados no Governo do Distrito Federal, na Unesco e de reportagens de revistas direcionadas a turistas, a pesquisadora conseguiu reunir material suficiente para encontrar a definição correta de cada termo.
Assim que encontrar uma editora interessada, Flávia diz que o próximo passo é transformar o projeto em um dicionário físico. ;Quero que seja uma obra de divulgação, porque há em Brasília várias pessoas que vêm profissionalmente, além de muitas embaixadas.; Com explicações simples, a ideia é que qualquer pessoa possa entender o que é Eixão, Eixinho, tesourinha ou bloco sem que precise ser levada até lá.
A Criação
Magalhães continua apaixonado pela cidade que ajudou a erguer, porém, anda com o coração partido. Hoje, ele considera Brasília uma cidade ;do meio para baixo;. ;Era para ser uma cidade boa, referência, mas não é. Apesar de ter sido projetada, é suja, mal resolvida, com dirigentes que não prestam atenção;, critica. ;Lembro da dedicação que as pessoas tinham, querendo fazer o melhor possível.; A centralização no Plano Piloto é um dos motivos que leva o arquiteto a acreditar que o trânsito nas tesourinhas (e em toda a capital) não verá dias de paz tão cedo. ;Projeta-se uma cidade com um sistema viário para atender um certo número de pessoas. Daí, você pega essas pessoas todas e bota fora de Brasília, nas cidades satélites. Aí coloca todos os empregos no Plano Piloto. Não tem como acabar com esse problema;, analisa. ;Temos, primeiro, que resolver um sistema de transporte de massa de primeira qualidade.;
As agulhinhas também não melhoram o humor de Carlos Magalhães. ;O Lucio Costa deve estar se revirando no túmulo por causa delas;, brinca. O recurso tira a naturalidade do projeto inicial, segundo o arquiteto. ;Acho que é preciso discutir com os urbanistas e arquitetos para ver qual a melhor solução. Não é uma coisa para ser decidida por uma pessoa só, sentada no gabinete da Casa Civil, que nunca usa e diz que é assim. A agulhinha é ruim até no nome.; Mas se tem uma coisa capaz de realmente tirá-lo do sério é mencionar a possibilidade de Brasília deixar de ser patrimônio da humanidade. ;É preciso valorizar os que trabalharam pela cidade desde o começo. É preciso proteger Brasília.;
A Ocupação
O slogan ;Zé Pereira toma caldo na tesourinha; era a segunda parte da homenagem ao frevo, uma vez que fazia alusão ao criador do estilo. O sucesso do bloco foi tanto que nem precisou de slogans posteriores, ou mesmo motivos para acontecer. O desfile de inauguração foi feito tão espontaneamente que Renato Fino nem chegou a pedir o apoio da prefeitura ou mesmo do Detran para conter o trânsito. ;Eu mesmo ia na frente, conduzindo o pessoal;, completa. Quando o grupo alcançou a tesourinha, contudo, ele ficou com medo do carnaval virar uma tragédia. ;Chegamos à conclusão de que poderia ser perigoso, porque já tinha muita gente nos acompanhando. Então, só atravessamos da 210 para a 209 e voltamos.; No ano seguinte, a organização procurou a prefeitura da quadra, que abraçou instantaneamente a causa e conseguiu articular a ajuda da polícia e do Detran.
Quando a multidão passa por debaixo da tesourinha, a banda de pífanos Ventoinha de Canudos, que anima o carnaval, aproveita o eco para puxar o grito de guerra do bloco: ;Ahá, uhul, a tesourinha é nossa;. ;É realmente uma sensação de posse, porque você está ali, a pé, debaixo de uma estrutura que não foi feita para isso, o que, durante a semana é inviável;, justifica Renato Fino. Adultos e, principalmente, crianças fantasiadas dançam e pulam ao som do frevo, tocado por cerca de 20 minutos ; ou até o bloco resolver continuar a caminhada rumo à 410 Norte. ;É uma posse da cidade. Nesse dia, a tesourinha é nossa.;
Renato Fino atribui sua vontade de retomar a posse da cidade da infância. Embora tenha nascido no Rio de Janeiro, ele conta que chegou a Brasília quando ainda estava com um ano e meio de idade. A infância, passada correndo de um lado para o outro entre as quadras ainda peladas da capital, fez com que ele criasse um sentimento de que cada metro quadrado de terra vermelha foi feito para se aproveitar. ;Acredito nessa ocupação da área verde, com cultura e pessoas;, defende. ;Aqui tem toda essa coisa bucólica, de contemplação, mas também temos que ter essa ideia. Acho que essa era a intenção de Lucio Costa e Oscar Niemeyer quando pensaram em todo esse espaço livre.;
Para ele, a cidade que antes era um imenso jardim disponível agora virou uma espécie de escritório. ;Brasília está mais fria. É muita gente vinda de concurso, com data para voltar para casa. Virou uma cidade dormitório, com pessoas que não a sentem como uma cidade comum.; A ideia, então, é reumanizar Brasília. Cada um faz o que pode. Para Renato, a melhor forma de dar vida à cidade é usando a cultura como instrumento. Idealizador de diversos projetos culturais, ele usa seus dois cafés como sede de saraus, concertos musicais, lançamentos de livros e feiras de troca. E ocupa as áreas verdes também. Em 2006, o Projeto Quintal promoveu sete sábados seguidos de música instrumental no meio da quadra 410 Norte. ;Muita gente que está aqui pensa a cidade como local de trabalho. Gosta de carnaval, mas só se for no Pelourinho ou na Sapucaí. Gosta de futebol, desde que seja no Maracanã. Se elas se relacionassem com a cidade, ganhariam muito mais.;
Leia a reportagem completa na edição n; 441 da Revista do Correio.