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Não dá para ficar parado

Criança gosta de correr, de pular, de brincar, certo? Por que então enfrentamos uma epidemia de sedentarismo infantil? Entenda as consequências desse fenômeno

Quando se pensa em um grupo de crianças, a primeira imagem que vem à cabeça é uma correria desordenada, acompanhada de sorrisos, pulos, diversão e um contato social que só a tenra idade proporciona. Quando se pensa nessa turma, ela é imaginada em uma grande área aberta num dia de sol, com ar livre aos montes, sem muitos riscos além do de ficar cansado o suficiente para dormir a noite inteira. Essa cena, contudo, vem se tornando cada vez mais rara. Em vez de espaços abertos, aparelhos de tevê ligados por horas a fio. A correria e os pulos estão ficando restritos aos personagens movidos por joysticks e telas sensíveis ao toque.

A atividade física, tão apontada entre as prioridades para a boa saúde no mundo atual, está em declínio, independentemente de todos os alertas médicos. E os efeitos negativos do sedentarismo agora atacam diretamente as crianças, trazendo um alerta grave: o mundo parou de se movimentar e elas estão sendo criadas para considerar isso normal. "Pesquisadores que trabalham com atividade física para a saúde vêm tentando alertar para os crescentes níveis de inatividade há mais de uma década, principalmente entre crianças e jovens. Nós estamos conscientes da gravidade do problema há muito tempo. O desafio agora é fazer com que os líderes políticos a reconheçam também", garante Margaret Talbot, presidente do International Council of Sport Science and Physical Education (ICSSPE) ; Conselho Internacional de Ciência do Desporto e Educação Física.

Há também a questão da tecnologia. Diversas atividades que antes demandavam esforço foram se tornando mais simples. Dessa forma, os que antes eram obrigados a se movimentar para, por exemplo, ir ao supermercado, agora podem fazer as compras do mês pela internet, sem se levantar da poltrona. Os novos hábitos já impactam as estatísticas. De acordo com o estudo Time use and physical activity: A shift away from movement across the globe, conduzido pelos professores Shu Wen Ng e Barry Popkin, da University of North Carolina, nos últimos 44 anos, a atividade física nos EUA diminuiu 32%. No Brasil, é esperado que, entre 2002 e 2030, haja uma diminuição de 34% da atividade física. Os riscos econômicos, sociais e físicos são preocupantes, principalmente porque atingem as crianças ; a combinação de sedentarismo e dieta inadequada pode encurtar a vida dessa geração em cinco anos.

A preocupação global com o que já é chamada de epidemia de inatividade física vem exigindo grandes esforços frente a desinformação dos pais e a publicidade da indústria alimentícia. Afinal, só para 2013, são esperadas 5,3 milhões de mortes atribuídas à inatividade física. Para efeito comparativo, o cigarro mata 5 milhões por ano. De olho nessas estatísticas inquietantes, o American College of Sports Medicine, o ICSSPE e a Nike lançaram, mês passado, o projeto Design to Move (Feitos para nos movimentar, em tradução livre).

A iniciativa, que conta com apoio de instituições de todo o mundo, inclusive brasileiras, pretende olhar além da obesidade: sua principal bandeira é criar um quadro de ações que consiga trazer de volta a atividade física para o dia a dia das crianças. De acordo com o diretor de comunicação global da Nike, Andy Fouché, o Design to Move foi pensado para alterar a ideia de que é normal ficar parado. Para atingir esse objetivo, eles propõem um plano de ação coordenado, que incorpora diversas iniciativas bem-sucedidas ao redor do mundo.

"Mais de 70 organizações de peritos da área da atividade física foram envolvidas na elaboração do relatório, que descreve como a inatividade física atingiu proporções de epidemia e cresce num ritmo alarmante. Ela representa uma grande ameaça para a saúde, a felicidade e a prosperidade de indivíduos, comunidades e nações." Fouché explica que, em suma, o objetivo é simples como correr: criar um mundo no qual a atividade física e o esporte possam ser valorizados como parte essencial da vida.

"Há, sem dúvida, uma ligação entre inatividade física, obesidade e diabetes tipo 2. Isso é conhecido há muito tempo, mas era pouco falado até a obesidade ter se tornado uma epidemia. Só que ainda falta compreensão da população para a importância de se praticar atividade física. O estímulo para comer mais e ficar parado é muito maior que o para fazer exercícios", assegura Balduino Tschiedel, presidente na Sociedade Brasileira de Diabetes (SBD). O médico afirma que os pais até percebem que as crianças estão se alimentando de forma errada, mas subestimam as consequências. "Todas elas vão pagar um preço mais na frente. A luta é muito difícil, mas precisa começar com o esclarecimento da população."

O fator alimentação
Desde que lançou, ano passado, o documentário Muito além do peso (que pode ser visto em www.muitoalem-dopeso.com.br), a cineasta paulista Estela Renner vem causando choque nas plateias. Entre imagens que beiram o inacreditável ; como o caso que abre o filme, do pequeno Yan, que aos 4 anos já tem problemas de coração e pulmão decorrentes da obesidade ; e dados contundentes, ela mostra que o combo inatividade física e má alimentação é uma realidade no Brasil. "Muito do sucesso do documentário veio porque as histórias podem ser encontradas em todos os lugares. São milhares de casos em todo o país de crianças que birram para comer um salgadinho, um achocolato e estão tendo doenças de adulto por conta de uma dieta cheia de excessos", relata a diretora.

Mãe de três filhos, Estela garante que a maior lição que tirou é a necessidade de se manter sempre presente na vida dos rebentos. "Não só na hora das refeições. Até o momento de amarrar o cadarço deles deve ser aproveitado para interagir mais. Muito desse vazio existencial que as crianças preenchem com comida pode ser suprido pelos pais." A luta, porém, não é simples. Bombardeadas por todos os lados com propagandas, as crianças ganham poder de escolha dentro de casa sem ter capacidade de entenderem, sozinhas, o que faz bem ou mal para elas. "É o chocolate da marca tal, é o bombom que apareceu na televisão. É muito difícil educar a alimentação de um filho hoje", afirma a dona de casa Cleonice Alves de Araújo, 28 anos.

Mãe de Lucas, que tem 2 anos e 7 meses, ela vai quase todos os dias ao Parque de Águas Claras brincar com o garoto. E garante: ele nunca comeu fast-food. "Mas gosta muito de chocolate. Só que não tenho em casa. Às vezes, ele come quando saímos ou ganha dos avós." Em suas visitas ao parque, Cleonice repara que os pais brincam pouco com as crianças. "Há pouca interação. E também conheço muitas crianças acima do peso que não brincam, só ficam em casa. Isso não está certo", opina.

Coordenadora do Council of Sport Science and Physical Education, Margaret Talbot elenca alguns motivos que desencorajam as crianças a praticar atividade física. Primeiro, ela critica a projeção dos lares, cada vez mais pensados de forma a impedir a brincadeira, principalmente nas grandes cidades, com seus apartamentos pequenos. Segundo, a enorme agenda de atividades das crianças, que não têm espaço para brincadeiras. Por último, critica os urbanistas, que parecem ignorar as necessidades das crianças por espaços seguros e próximos de casa, onde possam experimentar novos desafios físicos. "Além disso, muitas escolas em diversos países excluíram educação física no currículo, apesar de seus benefícios comprovados."

A matéria completa pode ser lida na edição n; 409 da Revista do Correio.