Na maioria dos casos, uma pessoa que sofre de algum tipo de transtorno mental não precisa que ninguém diga que ela é diferente. Em um determinado período da vida, esse indivíduo percebe que seus pensamentos, ações, anseios e reações não condizem com o considerado "normal". Além dessas diferenças facilmente observáveis, a ciência acumula inúmeros estudos a respeito do cérebro desequilibrado. O objetivo é entender e identificar exatamente em que ponto os mecanismos estão fora de controle, bem como mapear sintomas e comportamentos característicos de cada patologia. O que há de errado com a mente desses pacientes? Essa é a pergunta que a Revista, com a ajuda de especialistas, tenta responder nas linhas seguintes.
O cérebro doente apresenta alterações bioquímicas específicas, que variam dependendo do tipo de problema. Tiago da Silva Freitas, especialista em neurocirurgia funcional e vice-presidente da Sociedade Brasileira de Neuromodulação, diz que tais alterações já podem ser vistas por meio de exames de neuroimagem. O médico explica que, no cérebro humano, há um circuito associado ao humor e ao comportamento. Com as análises, os especialistas são capazes de medir a atividade cerebral do paciente. "Esses exames mostram que algumas áreas do cérebro desses pacientes são desreguladas", detalha Freitas.
As estruturas cerebrais relativas ao humor estão localizadas na região frontal do cérebro. "É um circuito em que o neurônio sai do córtex, vai para as estruturas profundas do cérebro, processa a informação, volta para o córtex e desce para a medula, em um loop", explica Tiago Freitas. Em portadores de distúrbios psíquicos, esse circuito (chamado de córtico-talamo-cortical) está comprometido em algum nível. "Determinadas áreas funcionam demais enquanto outras, de menos", aponta. Medicamentos como a fluoxetina, usada em pacientes com depressão, são uma tentativa de balancear os neurotransmissores desregulados.
Com base no quadro bioquímico dos pacientes, os médicos podem optar pela melhor forma de tratamento. Os dois exames mais difundidos para o diagnóstico de anomalias da mente são a tomografia por emissão de fótons (Spect) e a tomografia por emissão de pósitrons (PET). O objetivo de ambos é medir a quantidade de sangue circulante no cérebro, o que permite avaliar a qualidade do metabolismo cerebral. A ciência, porém, dispõe de outras ferramentas. Uma delas é a cintilografia de perfusão cerebral. Roberto Jales, médico da Clínica Nuclear de Natal e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, explica que o procedimento foi criado por Ismael Mena, profissional da Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos. Os estudos começaram na década de 1980. "Na época, já se sabia, pelas ressonâncias e tomografias, que o cérebro desses pacientes podia ser anatomicamente normal", esclarece. "Logo, a alteração tinha que ser funcional."
Ismael Mena especulava que o portador de transtorno mental seria como o paciente de hipotireoidismo ; incapaz de produzir hormônio apesar de ter a glândula. O médico americano, então, selecionou 300 pacientes esquizofrênicos, 300 bipolares e mais 300 com transtornos diversos. Ele sintetizou uma substância específica e a injetou no cérebro dos pacientes sabidamente doentes. A partir dos resultados, Mena montou um padrão de imagens para cada doença, catalogando-as em um imenso banco de dados. "A única pessoa no Brasil que tem esse banco de dados sou eu", garante Roberto Jales.
O médico explica que esse mapeamento é importante, pois cada doença apresenta um padrão único. Quando há dúvidas sobre o diagnóstico do paciente, o psiquiatra confronta os padrões. "Não é como um tumor cerebral, que a imagem é igual para todo mundo", compara. Depois que o exame é feito, os resultados são encaminhados para o próprio Mena, na Califórnia, que os envia de volta, com os devidos ajustes. A partir daí, é emitido um laudo. "Informamos o paciente que o quadro dele se comportou de acordo com um determinado grupo específico de transtornos, mas, ainda assim, não dá para saber exatamente qual doença ele tem." Um paciente esquizofrênico pode apresentar um resultado de imagem semelhante ao de um bipolar em estado de euforia, por exemplo.
Prevenção e tratamento precoce
Dependendo dos resultados dos exames, os médicos são capazes até de explicar alguns comportamentos característicos de determinadas doenças. Uma pessoa com depressão, por exemplo, tem menos sangue circulando pelos lobos frontais do cérebro. O metabolismo cerebral nessa área também é abaixo da média. "Por isso, é comum um paciente com depressão severa começar a ter diminuição da cognição", afirma Dalton Alexandre dos Anjos, especialista em medicina nuclear e em neuroimagem. Com o lado intelectual mais "preguiçoso", surgem alguns dos sintomas que definem a depressão, como a falta de vontade de fazer coisas novas, esquecimentos esporádicos, hábitos de higiene ignorados (como deixar de tomar banho ou escovar os dentes) e tantos outros.
No caso dos pacientes com transtorno bipolar, Dalton explica que a atividade cerebral ; assim como o comportamento do indivíduo ; varia. Se está na fase depressiva, o cérebro se comporta como o de um depressivo. Uma vez que o paciente entra na fase da mania, caracterizada por episódios de alegria, euforia e humor extremos, seu cérebro muda completamente. O córtex pré-frontal, área associada ao planejamento, à expressão da personalidade e à tomada de decisão, recebe mais sangue que o normal. "Há um mapa dentro da gente, no cérebro", explica o médico Roberto Jales. "Pacientes com alucinações auditivas, por exemplo, costumam ter alterações próximas à área do ouvido, que hipercapta estímulos. Quando a alucinação é visual, essa alteração costuma ser na parte posterior, chamada cortexvisual."
"O esquizofrênico, quando está na fase mais ativa, tem hiperperfusão, aumento do metabolismo e da vascularização nos lobos frontais", acrescenta o médico. É nessa parte do cérebro que ocorre o planejamento de ações e de movimento, assim como o pensamento abstrato. Quando hiperativo, esse pedaço do cérebro faz com que a pessoa desenvolva pensamentos paranoicos. É o que explica a mania de perseguição apresentada pela imensa maioria dos pacientes esquizofrênicos, por exemplo.
Se o paciente estiver sob medicação, contudo, os exames se modificam. Dalton frisa que as alterações características de cada doença foram observadas em pacientes "virgens" de remédios, ou seja, que não estavam tratando o problema de maneira medicamentosa. Os exames, portanto, são úteis tanto para o diagnóstico da enfermidade quanto para que os médicos avaliem a evolução do paciente. "O diagnóstico não é o objetivo principal porque a avaliação clínica é soberana", justifica o especialista. "O psiquiatra não precisa de exames de imagem para dar um diagnóstico preciso."
Além de diagnosticar e verificar se os tratamentos estão mesmo dando certo, os médicos querem fazer dos exames de imagem uma maneira de prevenir os transtornos mentais. Ary Araripe Neto, psiquiatra e pesquisador da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), estuda em conjunto com outros pesquisadores da universidade uma maneira de prevenir o primeiro episódio de esquizofrenia e transtorno bipolar em adolescentes com alto risco de desenvolver a doença. O objetivo, segundo ele, é identificar o pródromo ; ou, em outras palavras, o conjunto de sintomas premonitórios dessas doenças. "No pródromo, os sintomas são mais leves, mas demonstram que a pessoa tem a doença e que pode estar em risco", detalha. "Se conseguirmos identificar indivíduos nessa fase, existe a possibilidade de fazer uma intervenção para evitar que a doença evolua."
O trabalho começou em 2009, mas ainda está em andamento. De acordo com Neto, estudos assim ainda são novos no Brasil. No exterior, contudo, eles evoluem a passos largos. "Essas pesquisas feitas fora do Brasil mostram que talvez seja possível retardar ou mesmo prevenir o início dessas doenças." Os participantes da pesquisa paulista têm de 15 a 25 anos, todos com características comportamentais compatíveis com esquizofrenia ou bipolaridade. Identificar a tempo a possibilidade de uma doença mental se manifestar é importante não só para o tratamento em si, mas também para proteger o cérebro e o restante do organismo. Após a primeira crise, as células cerebrais ficam danificadas.
O estrago é gradativo: À medida que o paciente piora, mais células são perdidas. É possível, de acordo com alguns estudos recentes, que esses distúrbios liberem compostos que, quando em excesso, não deixam que o restante das células cerebrais trabalhem normalmente. A longo prazo, isso pode significar perda irreversível de racioncínio, aprendizagem, julgamento, planejamento e alterações sérias de humor. "O conceito de prevenção e promoção da saúde mental é novo na psiquiatria e pouco discutido no Brasil", completa Ary Neto. "Todo mundo fala sobre saúde física, mas cuidar da mente ainda é um assunto pouco debatido."
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