Jornal Correio Braziliense

Revista

Sem perder a doçura

Voluntárias do Exército Brasileiro abrem mão do conforto de casa, da segurança e do convívio com a família para ajudar a reconstruir o Haiti. Elas enfrentam as duras regras da missão com a delicadeza e a sensibilidade típicas da mulher

Porto Príncipe ; Dezenove brasileiras, incluindo uma candanga, integram o contingente feminino da missão de paz no Haiti. Elas representam 1% dos 1.877 militares brasileiros servindo no país caribenho. São médicas, enfermeiras e uma engenheira. Como os colegas homens, são obrigadas a andar de farda e coturno preto, sempre limpos. Marcham, prestam continência, ouvem e cumprem ordens. E, quando necessário, vão às ruas de capacete, colete à prova de balas e fuzil. No entanto, em um universo predominantemente masculino e sob rígidas normas, fazem de tudo para manter a feminilidade.

Como todos os militares brasileiros que estão no Haiti, ou passaram por lá, desde 2004, as mulheres integram a missão de paz mantida pelas Organizações das Nações Unidas (ONU) voluntariamente. Mas, até desembarcarem na capital Porto Príncipe, em abril, o grupo atual enfrentou rigorosa seleção e uma bateria de testes, que durou seis meses e incluiu avaliações física, médica e psicológica; além de terem recebido instruções e treinos específicos, como aulas de tiro, manuseio de bombas e ações em áreas de conflito.

Apesar de a maioria ser da área médica, todas correm sérios riscos no país mais miserável das Américas, arrasado pelo terremoto ocorrido em janeiro de 2010, que deixou mais de 250 mil mortos e 1,5 milhão de desabrigados. Elas estão expostas a doenças como a cólera, que matou mais de 7 mil desde outubro de 2010, e à violência urbana. Além de enfrentarem o preconceito, em um país onde a mulher não tem os direitos respeitados e são vítimas constantes de agressões físicas, como o estupro. Conheça as histórias de algumas dessas militares e saiba como elas vivem na América Central, onde devem ficar, pelo menos até novembro, em um dos dois batalhões e uma companhia das Forças Armadas brasileiras. Lugares onde não podem andar de saia nem namorar à vista dos colegas homens.

Dançarina

Além de atender os colegas no quartel e em patrulhas na rua, a tenente-médica Natasha Rissin, 32 anos, dança, canta e faz o que mais preciso for para encantar crianças, adolescentes, jovens e adultos haitianos. Nas missões cívicas, realizadas semanalmente em escolas, creches e outras entidades, ela troca a farda por roupa de dançarina ou outro tipo de recreador. Carioca que tem Juiz de Fora (MG) como base de trabalho e moradia, não esconde a satisfação de atuar em uma missão de paz e poder ajudar a comunidade local. "Antes de vir para cá, pensei em integrar a Médicos sem Fronteiras, para trabalhar em algum ponto de conflito ou miséria no mundo", conta. Para manter a vaidade feminina em um país tão carente, ela e as colegas se ajudam. "A diferença aqui é que não temos salão, a gente traz tudo do Brasil", explica. Ela ainda tem a sorte de ter o marido por perto. O também tenente e médico Maurício Augusto Lopes, 31, de Goiânia, trabalha, come e dorme em outro batalhão do Exército, em Porto Príncipe. Por isso, ambos só se veem e namoram nos dias de folga, fora da base militar.


Candanga

Mônica Rocha Alves nasceu e foi criada em Planaltina. Solteira, mora na cidade mais antiga do Distrito Federal com os parentes. Há quatro anos no Exército, serve em um dos batalhões do Setor Militar Urbano (SMU) da capital. Mas, aos 30 anos, a sargento e técnica em enfermagem trocou a terra natal pela terra arrasada do Haiti. "Era uma experiência que queria muito passar. De imediato, tive total apoio da família", conta a morena, alta, cabelos pretos longos e sorriso fácil. Ela não se arrepende nem um pouco de abrir mão temporariamente do conforto de casa e de uma cidade como Brasília. "O lado humanitário da missão é muito bonito. Sei que estou prestando um serviço a quem realmente precisa", ressalta. Sobre a convivência com tantos homens em um quartel, ela diz ter "se adaptado ao meio".

Filho adiado

A sargento e técnica em enfermagem Priscila Gabriele Souza Silva, 30 anos, é outra que pode contar com companheiro por perto, mesmo estando no Haiti. O marido, o sargento Cássio Roberto Ceciliano, de mesma idade, também faz parte da missão. Eles começaram o relacionamento em Cristalina (GO), cidade do Entorno distante 132km de Brasília, onde servem e moram. Adiaram o projeto de ter filhos várias vezes, justamente por causa do rumo que decidiram tomar na vida militar. Após a temporada no Haiti, o casal planeja participar de uma missão na selva amazônica e fazer o longo e pesado curso de paraquedista do Exército. "Com um filho, tudo isso se torna quase impossível", pondera Priscila, carioca de Duque de Caxias. No entanto, como todas as militares no Haiti, ela tem o instinto da maternidade aflorado no contato com tanta criança carente. "Elas nos admiram, gostam de nos tocar e de serem tocadas", observa a sargento, que participa de brincadeiras com a garotada sobrevivente do terremoto nas atividades cívicas do batalhão. Já no marido, em seis meses de Haiti, só tocou uma vez dentro da base militar: durante as fotos para o Correio, sob autorização e o olhar de um coronel.

Peso extra

Quando partem para alguma missão na rua, os militares levam equipamentos de segurança que podem chegar a pesar 20kg. Peso extra que qualquer um sente, principalmente sob o constante calor, que diariamente ultrapassa os 30;C. Para uma mulher, a carga pode ser ainda mais cruel. Ainda mais aquelas de estatura menor, como a tenente Paula Gibim Pacheco. Carioca, lotada em unidade do Exército em Boa Vista (RR), a médica de 25 anos mede 1,55m e pesa 55kg. Mas nada a desanima quando recebe a missão de acompanhar os colegas homens em uma operação de risco. "Aqui, alio duas experiências: a profissional, servindo em uma situação real; e a de vida, conhecendo um país tão pobre e trabalhando com a comunidade", comenta ela, namorada de um médico também militar, que mora e trabalha no Brasil.