Jornal Correio Braziliense

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As donas são show

Elas dominaram o palco e viraram ídolos do rap. Meninas cantam o ritmo que fala de problemas sociais, da vida em família, dos dramas e de amores. Garotas que derrubaram o mito de que só homens cantam esse estilo politizado

"Rap não é coisa para mulher." Essa é a frase que Ninne, Taty, Rayla, Lívia, Aninha e Hellen já escutaram inúmeras vezes na vida. Ouviram da boca dos pais, dos irmãos, dos produtores, dos MCs, do público e da indústria. Mas todas tomaram a mesma atitude: ignoraram o alerta. Sentaram diante de suas escrivaninhas, pegaram um caderno e escreveram em versos aquilo que as afligiam. Falaram sobre amor, relataram a violência que sofreram ; ou que alguém próximo viveu ;, defenderam a emancipação da mulher, contaram a histórias de seus filhos e também denunciaram os problemas das comunidades em que viviam ou de lugares que frequentavam. Transformaram a poesia em música e subiram ao palco. Tentaram abafar o grito do público, que insistia em dizer que ali não era o lugar delas. E só pararam quando escutaram os aplausos, que representavam o respeito pelo trabalho. Mas, até hoje, estão tentando conquistar o seu espaço. Algumas são chamadas pela alcunha de donas pelos rapazes, em referência à beleza e atitude.

A história dessas meninas é parecida com a de muitas outras espalhadas pelo país. Sempre gostaram de rap, queriam fazer melodias como trabalho, mas não se enxergavam no palco, pois não existiam muitas referências femininas no estilo musical. É claro que as rappers muito talentosas conseguiram ser reconhecidas mundo afora. Mas elas são poucas. Muito preconceito ainda precisa ser quebrado. Por isso, surgiu uma nova geração de mulheres, entre 20 e 30 anos, que se uniram e decidiram conquistar um mercado dominado pelos homens.

Um dos grandes nomes dessa nova leva é a rapper Nicki Minaj ; nascida em Trinidad e Tobago, mas criada em Nova York. As suas mixtapes ; compilação de singles ; eram bem conhecidas no mercado underground do hip hop. Em 2010, ela lançou o primeiro álbum: Pink Friday. Em um mês, ganhou o disco de platina. O sucesso dela se deu principalmente pelas letras afiadas, o ritmo acelerado e da qualidade do som. Nicki também conseguiu chamar atenção do mainstream pelo visual diferente. Fugiu de todos os estereótipos das rappers. Até então, com raras exceções, as cantoras do estilo se vestiam de forma muito masculina. Já Nicki estava muito mais parecida com as cantoras pop do momento ; Beyoncé, Katy Perry e Lady Gaga ;, do que com as MCs das paradas de sucesso, como a Missy Elliot.

Minaj destaca-se pelas perucas coloridas, as roupas rosas espalhafatosas e pelas superproduções, usadas na hora de se apresentar. Obviamente, a mudança radical no perfil das rappers causou discordância entre os admiradores do estilo. Há quem diga que Nicki Minaj se vendeu para a indústria e perdeu o efeito marginal do rap. Pois, para cair no gosto do grande público, ela acabou lançando músicas mais dançantes como Starships, além de ter escrito materiais mais leves como Pound the Alarm. A crítica aumentou ainda mais essa semana, pois ela foi confirmada como jurada do popular programa de calouros American Idol. Independentemente da revolta do público mais tradicional, ela quebrou barreiras e isso ninguém pode negar.

O espaço conquistado pela americana, abriu as portas para que outras mulheres surgissem e conquistassem um público que não gostava de rap. Minaj, por exemplo, lançou, no ano passado, um single com a Madonna e atingiu o ápice da carreira. Cantou com a estrela no intervalo do fim do campeonato de futebol americano Super Bowl ; o programa de TV mais assistido pelos americanos. Surgiram, então, novos nomes como Brianna Perry, Dominique Young Unique, Nyemiah Supreme, Kreayshaw, Iggy Azalea e a rapper do momento Azealia Banks, que toca no Brasil, em outubro, no festival Planeta Terra, em São Paulo. Todas elas são superfemininas e donas de um senso estético muito forte. São protagonistas de clipes super produzidos e figurinos impecáveis, normalmente desenhados por grandes estilistas.

No Brasil, quem puxou a nova leva de rappers brasileiras foi a brasiliense Flora Matos, atualmente uma das principais cantoras do estilo. Depois, surgiu a curitibana Karol Conká, a também brasiliense Lívia Cruz e a paulistana Lurdez da Luz. Hoje, existe uma lista enorme de rappers brasileiras que fazem sucesso. Todas elas condizentes com o novo estilo: meninas bonitas, bem vestidas e com boas letras. É a redefinição da estética do rap.

Social com batida de rap

Ninne Ribeiro é de uma família de classe média de Barreiras (BA). Foi criada para se formar em um curso superior e seguir uma carreira tradicional, como médico ou advogado, assim como os irmãos. Mas desde pequena, ela sabia que essa não era a sua vocação. "Eu gosto de tudo que é marginal", assume. A inquietação surgiu dentro dos trabalhos comunitários, dos quais participava ao lado de outros fieis da igreja evangélica, religião que seguia.

Ao se reunir com as pessoas das comunidades carentes, percebia uma vida cultural muito mais interessante do que a sua. Nos projetos sociais, os meninos cantavam rap gospel. O ritmo lhe parecia mais expressivo do que os cantos de louvor que entoava na igreja. Ninne se encantou com a mensagem que essas músicas carregavam. Passou a frequentar cada vez mais o ambiente na periferia de Barreiras, até que alguém sugeriu que ela fizesse rimas próprias. Depois de escrever os primeiros versos e transformá-los em música, ela sabia que o rap era uma coisa que queria levar a sério na vida.

O sonho só começou a virar realidade em 2007, quando se mudou para Brasília. Ela veio morar em Águas Claras com a irmã, que cursava faculdade de medicina na cidade. Por aqui, passou a frequentar festas de rap, conheceu pessoas que trabalhavam com música, até que, na cara de pau, passou a pedir a produtores de festa e de rodas de MC uma chance de cantar. "Quando via uma oportunidade, corria atrás". Ela começou a ficar conhecida na cena da cidade e até fez backing vocal para a badalada Lívia Cruz. Quando estava confiante o suficiente para assumir sua vocação de ser rapper, passou a fazer pressão para o produtor Ariel Haller trabalhar em seu primeiro CD. "Foi assim que sempre consegui o que queria".

No meio do processo, Ninne resolveu estudar moda, uma outra paixão. Precisava provar para os pais que tinha um plano B, se tudo não saísse como o planejado. Ao se formar, criou uma marca de bijuteria ; que já não existe mais ; e lançou o projeto O cabelo que Deus me deu, com a proposta de reforçar a autoestima de crianças negras, que vivem em orfanatos. "Essas minhas três atividades se complementam. O hip hop não existe sem o trabalho social e as minhas roupas são uma maneira tão prazerosa de me expressar, quanto a música", avalia.

Hoje, ela tenta balancear as três atividades. "Acredito que a moda seja o meu plano a longo prazo, caso não consiga viver de rap. Eu sei que um dia vou ficar velhinha", se diverte. Além disso, seu trabalho com as bijuterias a aproximou de outras mulheres, que normalmente não escutariam a sua música e acabaram dando uma chance à composição de Ninne. "Muitas meninas, que eram minhas clientes, passaram a ouvir o meu som porque divulgava no site da minha loja", relata.

Ano passado, lançou o primeiro single Música com Amor, que tem participação do MC RAPadura. O CD está previsto para outubro. E tem dois clipes rolando na internet. "Eu sei os meus desejos. Já chego falando o que eu quero. Vou levando a minha vida na música assim. Deu certo até agora", diz rindo, sem medo de enfrentar as barreiras que vêm por aí.

Leia a íntegra dessa matéria na edição impressa da Revista n;384