Mas o quão profundo é o abismo que separa o pai ansioso por laços afetivos daquele que se abstém desse contato, ainda que pague pensão alimentícia? Em abril deste ano, o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) tomou uma decisão que aumentou o volume dessa discussão. Acusado de abandono afetivo, um homem foi condenado a pagar R$ 200 mil à filha, como indenização pelos anos em que não cumpriu o papel de pai. Magoada, a autora da ação alegou que o motivo de ter levado a questão à justiça foi o tratamento diferenciado que recebeu de seu progenitor, em comparação aos irmãos, frutos de um segundo casamento do pai. Tal sentença não apenas suscita a polêmica sobre uma possível ;monetarização; do amor, mas leva a outras questões: qual é hoje o papel do pai? Qual a importância da paternidade para o crescimento saudável de uma criança e para a formação de um adulto?
A Revista do Correio procurou pesquisas e ouviu especialistas na área jurídica e psicossocial para refletir sobre a importância do afeto paterno nos dias atuais. As opiniões nem sempre coincidem, mas de modo geral convergem para um fato: sim, filhos com a figura paterna presente têm mais chances de terem um desenvolvimento saudável e uma vida afetiva bem-sucedida. Também é verdade que os pais estão procurando ter um novo tipo de relação com a prole, apesar de ainda haver um número absurdo de crianças registradas sem o nome paterno. Entenda por que essa aparente contradição é mais uma etapa no longo processo de mudança em direção a uma paternidade consciente.
Choque de gerações
Matheus e Tiago ; de 6 e 2 anos, respectivamente ; são criados com fartura de carinhos, beijos e abraços. Eles nem imaginam que o pai, hoje com 50 anos, teve uma infância bem diferente da deles. Criado no interior de São Paulo, o administrador de empresas Ademir Maranho veio de uma família em que os pais não tiveram acesso a conhecimentos acadêmicos. ;Meu pai teve que trabalhar na lavoura, não teve como estudar;, explica. Quando a vida ficou um pouco menos apertada, o clã migrou para a capital paulista. O pai passou a ser sapateiro, enquanto a mãe arrumou um emprego fora de casa. Ademir passava os dias com a avó.
Ter comida na mesa, dinheiro para pagar as contas, roupas para vestir e, se tudo desse certo, alguma reserva financeira para eventualidades era a prioridade absoluta dos donos da casa. ;O toque e o afeto existiam, mas de uma forma bem rude;, relembra Ademir. A hierarquia também era cuidadosamente delineada: brincar na rua, tudo bem. Chegar em casa depois do pai, jamais. ;Quando ele chegava do trabalho, dava um assobio no portão;, descreve. ;Tínhamos que voltar correndo porque entrar em casa depois dele era complicado.;
Ainda que demonstrações mais efusivas de afeto fossem escassas, o pai de Ademir prezava pela companhia dos familiares. As constantes visitas a primos, avós e demais parentes eram obrigatórias. ;Ele reclamava bastante quando não era visitado por esses mesmos parentes;, completa. ;Era tudo muito família. Isso, para ele, era precioso.;
O único momento em que os dois ficavam juntos de verdade era na pescaria ; atividade que faz parte da rotina de Ademir até hoje. Nessas ocasiões, o silêncio para não espantar os peixes servia também como uma espécie de contrato velado entre os dois: nada precisaria ser dito ou feito, apenas a presença de ambos era suficiente. A agitação da adolescência, contudo, quebrou a tranquilidade. Ademir enveredou por movimentos estudantis, grupos da igreja e outras distrações que acabaram fazendo com que o tão esmerado convívio com a família fosse deixado de lado. O pai morreu em decorrência de um enfisema pulmonar após a emocionante partida da Copa do Mundo de 1986, em que o Brasil foi eliminado pela equipe francesa nas quartas-de-final.
O jeito contido e reservado do pai não causou mágoas. A afetividade daquele que foi criado em um ambiente hostil, em que a prioridade era sobreviver, foi demonstrada de maneira igualmente discreta. ;Ele sempre usou chapéu. Na minha formatura, ele queria um chapéu novo, então, rodamos por São Caetano do Sul, São Bernardo e São Paulo atrás de um, mas não encontramos.; A odisseia, embora fracassada, representou um dos momentos mais marcantes para Ademir. ;Ele acabou indo com o velho mesmo, mas significou muito para mim o fato dele querer ir bem arrumado.;
Várias sentenças e uma história
Rodrigo da Cunha Pereira, presidente do Instituto Brasileiro de Direito da Família e o primeiro advogado a entrar com o pedido de indenização por abandono afetivo no país, diz que há três fortes argumentos contra esse tipo de ação. O primeiro diz respeito à tentativa de ;obrigar; um indivíduo a amar outro, por meio da coação jurídica. O segundo é a ;monetarização; do afeto: é possível estipular um valor que pague o abandono? A terceira ressalva é o resultado de tal iniciativa, uma vez que uma ação como essa pode acabar definitivamente com qualquer possibilidade de aproximação entre pais e filhos. Para Pereira, contudo, o que está em jogo não é o sentimento de afeto, mas as obrigações de todo homem que se torna pai. ;Claro que não se pode forçar ninguém a ter apreço por outra pessoa, mas ser pai é cuidar, zelar, impor limites. O pai que não faz isso tem que ser responsabilizado;, defende.
Pereira ressalta que não se deve confundir um processo como esse com a banalização do abandono em qualquer tipo de relação. ;Quando um filho vai à justiça, é porque passou a vida inteira mendigando o amor do pai;, comenta. ;É claro que sofrimento e dor fazem parte da vida, mas é diferente com o abandono. Nesses casos, o Estado deve entrar no meio.; Luciano Lima Figueiredo, advogado especialista em direito da família e mestre em Direito Privado pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), diz que a tese de abandono afetivo não é algo totalmente novo. Até então, contudo, ele diz que o poder judiciário era reticente. ;Agora, a decisão do STJ mostra que ele abraçou a tese;, comenta.
Assim como Rodrigo, ele diz que um dos maiores argumentos contrários à medida é a confusão que se faz pela possibilidade de indenização por pura ausência de afeto, em qualquer situação. ;É impossível indenizar o abandono afetivo. Se assim fosse, as pessoas poderiam mover ações por término de namoro longo;, exemplifica. Mesmo com o apoio financeiro dado pelo pai, o advogado salienta que um dos principais motivos para a condenação foi de questão moral. ;O provimento material envolve tudo o que é necessário para uma vida digna, como vestuário, lazer e manutenção da vida social;, completa.
Por analogia, o advogado diz que não acompanhar o desenvolvimento intelectual do filho e deixar de prestar assistência em períodos complicados da vida poderia até mesmo ser comparado ao crime de abandono de incapaz. O problema é que não há ainda critérios para definir exatamente o que é o abandono afetivo. ;Não existem leis no Brasil que tragam os requisitos necessários para verificar essa questão;, reforça. Na falta de diretrizes específicas, o desfecho de cada caso fica a cargo do juiz ; que analisará todos os aspectos envolvidos em cada situação, como provas de que o pai foi mesmo negligente ou se ele está sendo vítima de uma mãe rancorosa e pouco honesta.
Leia a íntegra desta reportagem na edição n;368 da Revista do Correio.