Belo Horizonte ; Martha Medeiros fez o mundo vestir o Brasil. E seus vestidos de renda artesanal nunca precisaram de uma passarela para ganhar o destaque que alcançaram. Europeias, orientais e agora norte-americanas desfilam nos mais finos eventos o trabalho feito pelas rendeiras em comunidades nordestinas. Recentemente, a estilista alagoana apresentou sua moda festa aos compradores da badalada Bergdorf Goodman, endereço certo das bem-nascidas de Nova York, e passou a dividir espaço com grifes como Elie Saab e Marchesa. Mas a estreia em semanas de moda ocorreu só no mês passado, no Minas Trend Preview, a convite de Teresa Santos, curadora do evento e amiga ; por isso a sua presença no line-up. ;O que a gente faz não é moda. Minha cliente usa da moda o que ela quer. O resto ela joga fora;, justifica. ;Faço vestidos para serem lindos sempre.; Mas, ainda que não reconheça, há quem diga que foi ela a primeira a somar moda ao trabalho que antes era vendido apenas na forma de toalhas a turistas, e que hoje veste noivas em vestidos nos quais mais de 300 artesãs trabalham.
As rendas de Martha estão penduradas em araras de 20 pontos de venda espalhados pelo Brasil, incluindo suas lojas próprias em São Paulo e Maceió, na multimarcas onde tudo começou, quando se refugiava pelas comunidades de rendeiras para não encarar o caos da época de liquidações. O olhar treinado para a moda veio da avó, professora de artes. ;Ela me dizia que podia faltar comida em casa, mas nunca flores frescas.; Já a habilidade foi treinada ainda nas bonecas, quando abriu uma butique de roupas em miniatura no Bloco A da 308 Sul, nos tempos em que morou na capital. Na véspera de apresentar sua coleção no evento mineiro, ela recebeu a Revista para uma conversa.
Você morou em Brasília bastante tempo?
Dos 10 aos 15 anos completos. Eu costurava para boneca. Meu pai era síndico do Bloco A da 308 Sul porque ele trabalhava na Câmara dos Deputados, e aquele bloco era da Câmara. Ele foi transferido de Maceió. O prédio tinha duas casas de zelador, mas só um zelador. Por isso, a outra casa ficava fechada. Então eu pedi para usar e montar um negócio ali. Eu estudava na 108, na Escola Parque, e, à tarde, as meninas, vizinhas das quadras, levavam suas bonecas Suzi para a gente fazer modelos exclusivos para elas. Eu costurava e vendia os vestidos. Mas era baratinho. Só dava para comprar cartão postal com o que eu ganhava. Eu comprava e escrevia para minhas amigas de Maceió. Contava que estava com meu negócio próprio e que já estava estabilizada (risos).
Mas foi daí que você pegou gosto por costurar?
Na verdade, eu sou neta de uma professora de artes. E minha avó sempre foi uma mulher à frente do seu tempo. Ela me falava que roupa de boneca tinha que ser que nem roupa de gente. Minhas amigas pegavam um pedaço de pano, faziam dois buracos para os braços e a roupa estava pronta. Minha avó dizia que roupa de boneca tinha que ter gola, bolso faca, bainha italiana. As laterais de listra tinham que bater. Nunca consegui comprar uma blusa que as listras não batessem. Ela que me ensinava isso. Eram as bonecas mais bem-vestidas que você pode imaginar.
Mas ainda não fazia roupas para gente?
Ainda não. A primeira roupa que fiz para mim foi quando eu era adolescente. Minha maior preocupação era que roupa eu usaria no sábado à noite. Então, em vez de comprar, eu fazia. Toda semana era um modelo novo. Ou eu comprava alguma coisa, mas modificava tudo. Pendurava uma renda, um bordado, fazia uma pintura, alguma coisa.
E a renda? Como ela foi virar sua marca-registrada?
A renda veio muitos anos depois, quando fui montar uma loja multimarca. Chamava-se Martha Boutique. E eu sempre detestei liquidação. Na época de liquidação eu saía da loja, porque era um monte de gente. Então eu ia para as comunidades próximas a Maceió que faziam renda. Eu preferia ficar lá. Toda dona de multimarca sabe que uma das grandes dificuldades é, quando vira a coleção, você ter tendência nova na loja. Todo mundo está com desejo de comprar uma coisa nova, mas ainda não veio. As fábricas mandam aos pouquinhos e as clientes ficam enlouquecidas. Então eu ia para as comunidades já sabendo a cor que estaria na moda e fazia as rendas no shape e nos tons da nova coleção. E aí eu levava as rendas para a loja e eram as primeiras peças que vendia.
Você foi para Nova York em fevereiro desfilar sua coleção na Bergdorf Goodman. Como foi?
Eu jamais imaginava a Bergdorf Goodman querendo ver uma coleção minha. Eu não conhecia ninguém. Foram eles que nos procuraram. Alugamos um espaço, camareiras, manequins e tínhamos um tempo cronometrado. Eram 45 minutos. No fim das contas, eles ficaram quase três horas com a gente. Fiquei muito feliz. Eles compraram uma quantidade pequena e outra para ser recebida só em setembro. Mas com 25 dias já mandaram outro pedido. Eles compraram 37 peças, das 40 que apresentamos.
Qual é o caminho para fazer a moda brasileira ser aceita lá fora? Seguir o padrão internacional ou ter um diferencial que identifique o Brasil na roupa, que aposte em um DNA forte?
É muito difícil uma marca que não tenha um diferencial fazer sucesso lá for a porque não temos preço competitivo. Nossos impostos são muito altos. Com um produto diferenciado, você consegue ter um valor agregado, e aí é possível. A coisa número um é você ter algo diferente. Por isso o Oskar (Metsavaht, da Osklen) está aí. O que eles querem é o nosso estilo de vida. Isso eles querem talvez até mais do que a roupa. Então, quando você consegue passar isso na roupa, o sucesso vem. Hoje, as pessoas preferem uma experiência a um objeto. Elas selecionam melhor com o que gastar. Por isso a gente ganha, porque vamos na contramão. A nossa moda é mais slow fashion. Ela não tem pressa de ser usada.
Menos tendência, você quer dizer?
Eu, por exemplo, quando faço um vestido, tento fazer algo lindo e que vai continuar sendo lindo para sempre. Então quando eu vejo coisas lindas, eu penso ;isso nasceu para ser lindo;. Hoje, amanhã, não interessa. Uma roupa tem que ser linda para sempre.
Quantas artesãs você tem hoje trabalhando com você?
São 300, mas eu quero aumentar aos poucos. Quando comecei, todas as minhas rendeiras tinham mais de 70 anos. Eu trabalho dia e noite para que não deixem esse trabalho acabar. Estamos trabalhando para abrir escolas de renda na zona rural, na região do São Francisco, onde a gente faz as rendas. E eu tenho pessoas que me ajudam em todas as áreas, mas no contato com a rendeiras não. Eu gosto. Todo mês eu ando mil quilômetros para ir e mil para voltar. Nunca passo menos do que oito, 10 dias com elas. Saio do mapa.
Um vestido de noiva, por exemplo, demora quanto tempo para ficar pronto?
Um vestido todo em renda eu não consigo fazer em menos de 10 meses. Isso se for uma renda rápida. Já um mais trabalhado, acima de 14 meses. E a gente faz assim: se uma noiva ama orquídea, eu faço o vestido dela inteiro de orquídeas. Eu posso fazer o desenho da renda no que a pessoa quiser ou gostar. Tem que se planejar. É até uma boa desculpa para falar para o seu namorado que o seu vestido demora para ficar pronto e marcar logo a data; (risos). Tem vestidos que eu consigo fazer só dois por ano.
Por que você nunca havia desfilado em uma semana de moda antes?
Eu não sou muito de desfile. É que eu acho que a minha roupa não é muito de moda. A minha cliente usa da moda o que ela quer. O resto ela joga fora.
Mas você acha que não existe tendência no que você faz?
Eu acho que existem desejos coletivos. O mundo está com vontade de consumir cores mais claras, tecidos mais confortáveis. Temos que acompanhar isso. Mas é sempre renda, porque é o que eu amo. Nos 15 looks, deve ter 30 centímetros de tecido e o resto é renda. E no ano que vem é renda, e no outro também será; Nosso ritmo é outro. A gente muda de coleção, os desejos e as proporções devem ser respeitados, mas a velocidade é diferente. Eu digo que a gente não troca de coleção. Nós vamos agregando novos modelos. Tem vestidos que eu fiz há quatro anos e que eu vendo até hoje.