Jornal Correio Braziliense

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A ioga em xeque

Livro recém-publicado nos EUA tem dado o que falar. O autor, iogue há 40 anos, usa a ciência para atestar que a prática pode ser perigosa. Médicos concordam que há um certo risco, mas ressaltam também os benefícios da atividade física


Em 1973 uma mulher saudável, na época com 28 anos, praticava seus exercícios diários de yoga quando sentiu uma forte e súbita dor de cabeça. Não sentia o lado direito do corpo, seu braço e perna esquerdos mal obedeciam aos seus comandos e os olhos se viravam involuntariamente para a esquerda. Além disso, a pálpebra inferior de um deles estava inchada. Foi levada às pressas para o hospital com sintomas da síndrome de Horner, uma paralisia ocular causada por uma lesão no sistema nervoso. Os médicos então descobriram que sua artéria vertebral esquerda, que irriga o cérebro e passa entre as duas primeiras vértebras cervicais, havia afunilado e se deslocado consideravelmente. No momento do acidente, ela estava em uma posição da yoga conhecida como ;ponte;, em que o iogue, como é chamado o praticante, deita com as costas no chão e em seguida equilibra-se apenas com as mãos e pés, formando um arco com as costas. Em uma das variações, a cabeça vai ao chão e substitui as mãos no equilíbrio. Enquanto fazia isso e no momento exato que antecedeu a forte dor de cabeça, perdeu o equilíbrio e, de impulso, curvou a cabeça para trás com força. Dois anos de reabilitação passaram-se para que ela conseguisse andar novamente, ainda assim muito devagar. Os olhos, no entanto, ainda apresentavam sinais da síndrome e o braço esquerdo perdia-se nos comandos.

A história é um dos casos relatados no recém-lançado livro The science of yoga, ainda sem tradução para o português, do jornalista norte-americano William J. Broad. Ele, que trabalha para o New York Times, é jornalista científico, praticante de yoga há mais de 40 anos e fez sua carreira escrevendo sobre armas nucleares e segurança nacional. Mas resolveu debruçar-se sobre a atividade que o desperta todas as manhãs desde os tempos da faculdade e foi buscar na ciência, campo com o qual tem anos de intimidade, evidências e desmentidos sobre algumas verdades absolutas que se construíram sobre a prática desde que ela se popularizou no ocidente. Além de curiosidades como a sua origem ; que não é espiritual, como se acredita, mas nasceu de cultos sexuais ;, o jornalista descobriu, por exemplo, que entre suas muitas vantagens moram perigos como o de ruptura dos pulmões, deslocamento das juntas e mesmo acidentes vasculares cerebrais, como o caso da jovem dos anos 1970 e outros muitos contados no livro.

Foram cinco anos de pesquisas e entrevistas com médicos, instrutores e iogues. Broad não deixou de lado a prática, que ele ainda avalia como positiva mesmo quando se pesa prós e contras, mas repensou sua rotina de exercícios. ;Eu mudei de ideia sobre a yoga. Ela não é completamente segura. Na verdade, é bem perigosa;, disse à Revista. O livro mal foi lançado e já rendeu polêmica. Contrariados, iogues enviaram cartas revoltadas a Broad e aos jornais, além de discursos inflamados acusando-o de sensacionalista que alimentam fóruns de discussão na internet. Mas se incomoda, ele diz, é porque as pessoas sabem que o que ele defende faz algum sentido. ;A ciência é toda sobre verdades. E a verdade às vezes dói. Eu não me importo com o que as pessoas pensam. A yoga faz circular muito dinheiro e dizer que ela faz mal fere os interesses de muita gente. Fazer dinheiro não é uma coisa ruim, desde que você seja completamente honesto com as pessoas;, sublinha o jornalista.

Entre as evidências encontradas por Broad, uma em especial explica o acidente que abre esta reportagem. Um ano antes, em 1972, o neurofisiologista da Universidade de Oxford W. Rithcie Russell publicou um artigo no The British Medical Journal argumentando que algumas posturas da yoga podiam estar relacionadas a casos de derrames em jovens saudáveis, mesmo que os casos fossem relativamente raros. Segundo Russell, as lesões podiam ser causadas não apenas por traumas de cabeça, mas também por movimentos bruscos ou hiperflexões do pescoço, presentes em algumas das posições da atividade ; um iogue intermediário, ele relata, consegue girar facilmente seu pescoço 90 graus, quase o dobro dos 50 de um não praticante.

Isso acontece porque as artérias carótidas, que irrigam o cérebro e passam pelo pescoço, podem vir a se romper em um movimento brusco, o que levaria à formação de um trombo que, por sua vez, ocasionaria um acidente vascular. ;Outra situação é quando a pessoa já tem arteriosclerose, que são placas de gordura nas paredes dos vasos. Se a placa estiver instável, ela pode se soltar com a movimentação e entupir uma artéria de calibre menor, o que levaria a um AVC;, explica o neurologista Lili Min, professor da Faculdade de Medicina da Unicamp. É claro, no entanto, que nem todo mundo está sujeito a acidentes graves durante a prática da yoga e que tal tipo de fatalidade também não é nenhuma exclusividade dela. De maneira geral, qualquer atividade física que exija movimentação de cabeça expões seus praticantes aos mesmos riscos. A notícia ruim é que não existe nenhum tipo de teste que qualifique alguém como mais ou menos predisposto a sofrer um AVC durante um exercício de yoga. ;Por isso o alerta é para que o praticante seja mais cauteloso com algumas posições e tome cuidado com as torções cervicais. Isso, no entanto, não quer dizer que outras posições não possam ser feitas, tampouco desmerece os benefícios da prática;, pondera o especialista.


Sem dores
As lesões cerebrais são o maior risco dos iogues, mas os perigos tangem também ossos e ligamentos. Há alguns anos, enquanto praticava yoga, o instrutor Helton Azevedo ;deu um jeito na coluna;. Tentava avançar na dificuldade do exercício desrespeitando os limites do próprio corpo. Hoje, como instrutor, a orientação que dá aos seus alunos é para que eles trabalhem no limite do conforto. ;Muita gente chega nas aulas e olha para os lados, se compara com os outros, quer forçar a barra. A yoga é muito mais sobre concentração do que sobre conseguir encostar a mão no pé;, diz o professor. ;Se você tem pouca flexibilidade, mas durante o exercício está concentrado no seu corpo e na sua respiração, seu exercício é melhor do que o da pessoa que encosta o peito no joelho e está com a cabeça em outro lugar;, sublinha.

A yoga, de fato, exige flexibilidade e força muscular. Como o corpo trabalha no repouso ; os iogues ficam durante minutos parados na mesma posição ;, a atividade sobrecarrega tendões, músculos e articulações. ;Para você manter algumas posições, precisa de uma estrutura muscular muito resistente. Se o instrutor não conhece muito bem os limites do seu aluno, pode causar uma lesão. A intensidade do exercício deve vir aos poucos;, frisa a fisiatra Pérola Plapler, do Hospital das Clínicas, em São Paulo. Em The science of yoga, William Broad narra o caso de Glenn Black, um instrutor que acabou num centro cirúrgico para corrigir uma lesão na coluna. Black conta que a injúria ; estenose espinhal, quando os espaços na espinha se estreitam e os nervos ficam pressionados, o que causa dores excruciantes ;, foi resultado de quatro décadas de torções e flexões com as costas. Sem cirurgia a que se submeteu, em alguns anos Black provavelmente ficaria incapaz de andar.

Depois dos joelhos, a coluna é a estrutura mais exposta a lesões na prática de yoga. As hiperflexões, quando o iogue curva-se para frente, e as hiperextensões, quando a flexão é para trás, como na ponte, são críticas e podem levar a danos em longo prazo, segundo o ortopedista Marcelo Cavalheiro, do Hospital Albert Einstein, onde atende alguns pacientes lesionados durante a yoga. ;Se você estende muito a coluna e ainda coloca o peso do seu corpo sobre ela, a coloca sob estresse. Se faz isso quatro, cinco vezes por semana, corre o risco de ir parar em um consultório médico;, avisa o especialista. Entre as consequências, estão estiramento ligamentar, hérnia de disco, cervicalgia, dorsalgia e lombalgia, as últimas três inflamações em diferentes regiões da coluna. ;No caso das inflamações, repouso e antiinflamatório resolvem. Mas casos como hérnias de disco podem acabar até em cirurgia, dependendo da intensidade da lesão;, avisa.

Ainda mais frequentes que pacientes com problemas de coluna, diz a experiência do ortopedista do Einstein, são lesões nos joelhos. A maior parte das posturas sobrecarregam a patela ; o osso que articula com o fêmur e permite a movimentação do joelho. Esse osso, por sua vez, é protegido por uma cartilagem de superfície lisa. Se desgastada, a cartilagem inflama e o iogue passa a sentir dores que beiram o insuportável. A situação fica pior quando o praticante já tem alguma condição limitante, como a síndrome fêmuro-patelar, quando há algum tipo de desalinhamento ou desequilíbrio na articulação e que, por sinal, é bastante comum entre a população. A posição de lótus, por exemplo, onde o iogue senta com a coluna ereta e as pernas dobradas, apoiadas uma sobre a outra, exige, além de flexibilidade, joelhos perfeitos dos praticantes.

Prevenção
Mas a verdade é que a melhor forma de prevenir-se de lesões é mesmo ficar no limite do conforto. E ele, quem pode delimitar, é o próprio aluno. ;O objetivo nunca pode ser encostar o pé na cabeça. A yoga não é isso. O objetivo vai além e muita gente tem dificuldade de entender que yoga não é um esporte competitivo;, diz Paula Medeiros, há dez anos instrutora de yoga. Uma boa medida, segundo o ortopedista Marcelo Cavalheiro, é a dor. ;É preciso respeitar a dor e parar no momento em que ela vem;, ele avisa. É o que faz a iogue Tainah Lobo, 26 anos. Com seis meses de aulas, alguns movimentos permanecem um desafio. Em outros, já evoluiu e venceu algumas dificuldades. ;Mas se incomoda, não faço. A dor não pode aparecer. O exercício precisa ser confortável;, ela conta, orientada pelo professor, Helton Azevedo.

A polêmica em torno do livro de Broad deve continuar ainda pelos próximos meses, quando a publicação começa a chegar a outros países. A versão em português está confirmada, mas por enquanto sem data para o lançamento. Enquanto isso, iogues e especialistas devem continuar se enfrentando sobre algumas questões. ;Eu amo a yoga, mas quanto do que sabemos sobre ela é verdade e quanto disso é falácia? Foi por isso que eu escrevi o livro, e eu espero que ele ajude as pessoas do mesmo jeito que me ajudou;, diz o autor. ;Espero que elas façam uma yoga melhor e que sejam melhores instrutoras delas mesmas. Mas, no final das contas, a yoga continua sendo ótima;, continua. E mesmo médicos, embora reconheçam os risco da yoga, ponderam também seus benefícios. ;Os riscos são os mesmos de qualquer outra atividade física. A yoga é muito boa e eu, inclusive, indico. O segredo é respeitar as limitações do corpo;, avisa Cavalheiro.