Jornal Correio Braziliense

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Envelhecer, um direito universal

A série de reportagens Longevidade: para todos? mostrará como o aumento da expectativa de vida beneficia também portadores de doenças genéticas. Eles estão vivendo mais, graças aos avanços científicos e a novas drogas, mas há um longo caminho a vencer

A suprema lei dos homens determina: ;A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem a redução do risco de doença e de outros agravos e o acesso universal e igualitário a ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação;. Assim diz a Constituição Federal, em seus artigos 196 e 198. Mas a lei soberana da natureza teima em contradizer o que deseja a racionalidade humana. Nem todas as doenças têm cura e a seleção natural da espécie se encarrega de manter vivos, pelo menos por mais tempo, aqueles que forem perfeitamente saudáveis.

O embate entre longevidade e doenças genéticas tem sido travado há séculos. Se alguns erros do organismo insistem em interromper a vida de quem, inexplicavelmente, nasce com algum ;defeito de fábrica;, médicos e pesquisadores estão debruçados há anos em microscópios para entender esse emaranhado incontável de células, o funcionamento dos genes, que carregam o segredo da vida, e como controlá-los no caso de apresentarem as anomalias que provocam tantas doenças.

Tal dedicação tem aumentado a chance de vida dos pacientes que, ao primeiro choro, já começam uma batalha para se manterem vivos, dia após dia. Novos exames, medicamentos, diagnósticos precoces e acesso a informações têm garantido uma vida mais longa e melhor a portadores de algumas doenças genéticas complicadas ou raras. Segundo dados da OMS, cerca de 5% dos nascidos vivos apresentam algum tipo de alteração genética, mais ou menos grave. O problema é agravado pela quantidade de variações que elas apresentam.

O geneticista Salmo Raskin, o único médico brasileiro a participar do projeto Genoma e diretor do Centro de Aconselhamento e Laboratório Genetika, em Curitiba, as patologias que alteram os genes chegam a quase 15 mil. O número de pessoas que convivem com elas aqui no Brasil, porém, é uma incógnita. Estima-se milhões delas. A Revista foi conhecer de perto a realidade de quem briga todos os dias com os comandos do seu corpo. Portadores de síndromes crônicas, progressivas e degenerativas que não perdem a esperança de que amanhã surja um novo medicamento que lhes garanta a vida, além de famílias que, com alegria, veem seus parentes sobreviverem às piores estatísticas. Também foram ouvidos especialistas, que contam como a evolução da medicina genética aumentou as chances dos pacientes de ter garantido um direito básico: o de envelhecer.

Hoje, você lê a primeira matéria de uma série de reportagens que reconta esses caminhos de muitas vitórias, como é o caso da síndrome de Down. ;A expectativa de vida deixou de ser de 5 anos, como no início do século passado, e hoje permite as pessoas com a alteração cromossômica chegue aos 70 anos, quase o mesmo tempo concedido a uma pessoa comum. A média de vida do brasileiro é de 73 anos;, afirma o pediatra Dennis Alexander Burns, um dos coordenadores do Grupo Brasileiro de estudos e Pesquisas sobre Síndrome de Down (GBEPSD) e diretor da Sociedade Brasileira de Pediatria.
No entanto, o caminho para novas histórias com final feliz é longo. Faltam médicos especializados, atendimento, pesquisas e informações sobre muitas patologias, especialmente as raras. Entenda o quão longo é esse desafio brasileiro.

Novo cenário
Impiedosas, as doenças genéticas interromperam muitas vidas em décadas passadas. Elas são causadas por mutações dentro de um único gene, formado por uma sequência de moléculas que carregam todas as informações de um indivíduo. Um conteúdo herdado dos pais, com suas qualidades e seus erros de programação. Podem ainda ser resultado de alterações estruturais ou numéricas em algum dos 23 pares de cromossomos. O equívoco provoca síndromes e graves problemas de saúde. Por último, fatores ambientais e mutações em genes variados também causam, em certos casos, um comprometimento irreversível na saúde.

Milhões de nascidos vivos apresentam alguma anomalia genética. O problema é entender como ela ocorre e a forma de tratá-la. Isso porque o organismo humano tem 50 trilhões de células e dentro de cada uma delas está um pedacinho do manual de instruções do corpo. Se você não sabe onde se encontra o defeito, como seria possível consertá-lo? Por isso, por muito tempo não havia tratamento para as patologias genéticas. Os que sobreviviam por mais tempo eram escondidos em casa, esperando a pane do organismo doente.

;Há 10, 15 anos, as doenças genéticas não tinham tratamento. Atualmente, esse panorama mudou bastante. Com o avanço da engenharia genética, da medicina molecular e das tecnologias de manipulação genética, podemos entender melhor essas patologias e buscar tratamentos;, afirma o médico geneticista Roberto Giugliani, professor do Departamento de Genética da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRFS).

Um marco na empreitada de decodificar os códigos humanos foi justamente o projeto Genoma, que surgiu com a pretensão de sequenciar o DNA humano. Foram 13 anos até concluir a tarefa de mapear os 30 mil genes que fazem o homem ser o que é. Atualmente, essa preciosa informação não soluciona o problema das doenças genéticas, mas dá pistas para o futuro.

Os anos passaram. E agora?
Todos os cuidados e conhecimentos sobre a síndrome de Down aumentaram, de fato, a expectativa de vida dos portadores. Com essa boa notícia, vem a preocupação. A pessoa com a alteração cromossômica tem envelhecimento mais acelerado e, aos 40 anos, já começa a dar sinais que só apareceriam muito mais tarde em quem não tem o problema. ;A perda da função cerebral é mais intensa na síndrome de Down. As alterações renais, intestinais, visuais e a osteoporose são mais frequentes e precoces. Isso tudo é novidade para nós;, comenta o médico geriatra Einstein Camargo, do Centro de Medicina do Idoso do Hospital Univesitário de Brasília.

Pesquisa desenvolvida pela médica pós-graduada em geriatria Virgínia Satuf aponta justamente os aspectos de envelhecimento de quem tem alteração cromossômica. Ela conclui que eles têm mais chance de desenvolver, ainda na idade adulta, quadros de hipotireoidismo (40%), complicações cardíacas (46% a 57%), diabetes, obesidade, convulsões, depressão (33%), além de sofrerem perda auditiva, que pode afetar 70% dos adultos a partir de 39 anos. ;Saber a incidência dessas doenças ajuda a antecipar o tratamento e evitar complicações futuras. O que importa nesses casos é mais a saúde preventiva que qualquer outra coisa;, diz a médica. ;Com a atenção médica melhorada, aumenta-se a longevidade desses pacientes;, acrescenta Virgínia.

A dica é manter uma vida saudável. Atividades físicas adequadas às limitações dessas pessoas são importantes para evitar a osteoporose e o ganho de peso. Dieta adequada evita as doenças do coração e as consultas periódicas ao oftalmologista e ao endocrinologista ajudam a prevenir complicações comuns em idosos.

Menos preconceito

Hoje, os médicos estão preparados para identificar uma criança com o distúrbio apenas na análise clínica. A confirmação seria com o exame de cariótipo, que mostra todos os cromossomos e suas irregularidades. Em menos de uma semana, a família tem o teste de confirmação nas mãos. Uma agilidade que salva muitas vidas, já que os cuidados com a saúde e o estímulo ao desenvolvimento cognitivo da criança iniciam-se logo após o nascimento. Muito diferente do que ocorria décadas passadas. A corretora de seguros Eulinda Maria Moura, 65 anos, demorou quase quatro anos para ter a confirmação de que seu filho tinha Down. ;Não se fez exames, não se falou nada. Alguns diziam que ele tinha a síndrome, outros não;, relembra. ;Ainda me disseram: você pode gastar todo o dinheiro do mundo que nunca terá seu filho normal;, comenta, sentida

Cláudio Moura, hoje tem 39 anos. Ele, de fato, tem os cromossomos alterados. Por isso mesmo, na época do nascimento, foi chamado de mongol, inclusive por alguns médicos. Ainda que exista uma razão que explique o termo (é uma referência ao povo mongol, considerado há menos de dois séculos, por alguns cientistas asiáticos, como tendo um atraso mental), a nomenclatura é carregada de peso e preconceito.

Eulinda assistiu a cenas de rejeição da parte dos outros em relação a seu filho ser diferente. ;Ele chegava para brincar no parquinho e ouvia as mães dizerem às outras crianças: ;Não chega perto porque esse menino é doente;;, lamenta. Naquela época, era mais difícil conseguir escolas. Elas até existiam, mas Cláudio não se adaptou e estudou até a quarta série. Foi quando a família decidiu investir nos esportes. O menino foi campeão de ginástica olímpica no início dos anos 1990. Trouxe medalhas, inclusive, de competições nos Estados Unidos.

Chegou a trabalhar como office boy, mas a mãe preferiu tê-lo por perto. ;Talvez seja um erro meu, mas onde eu vou, ele vai;, diz Eulinda, superprotetora. Hoje, ele frequenta a Apae. É tido pelas professoras como excelente dançarinho e ator. Apesar da dificuldade em falar, o rapaz interpreta muito bem nas apresentações de teatro feitas pelo grupo. Claúdio também sabe manejar com presteza o tear. Das suas mãos surgem belos tapetes e jogos de mesa coloridos. ;Quero um tear na minha casa;, comenta esse quase artesão.

Ele gosta do que faz e se mostra orgulhoso ao se lembrar das façanhas de atleta. Aos 39 anos, pensa em se casar com Carolzinha, uma jovem também sindrômica que estuda com ele na Apae/DF. É a primeira namorada dele. Os dois estão sempre grudadinhos e aos beijos, entusiasmados, nos intervalos. ;Tem vezes até que a gente separa os dois porque eles querem namorar durante os ensaios;, brinca a professora de teatro e dança da Apae/DF, Wal Ribeiro. Quando perguntado onde morariam, Cláudio não responde. Só ri e diz como um adolescente apaixonado, sem saber do futuro. ;Podia ser logo.;

Irmão, mas um pouco filho
Uma das maiores angústias de quem acompanha os longos anos do filho com Down é justamente ir embora antes e deixá-los sozinhos. Aí fica a dúvida: ;Quem vai cuidar deles?; Por sentir que os alunos estavam envelhecendo e as famílias sofrendo com as incertezas, a Apae/DF investiu em um programa para preparar irmãos, que vão receber esses parentes na falta dos pais. A instituição organizou, em 2010, o primeiro encontro com os familiares. ;A ideia era mostrar como vão ter se preparar para assumir essa responsabilidade;, explica Diva Marinho, presidente a Apae/DF.

E eles foram em peso. Mais de 100 familiares participaram dessa reunião. Sinal de que muitos reconhecem que não podem desamparar o parente na falta dos principais cuidadores. O militar Aderico Mattioli foi um que viu a vida mudar há dois anos, quando a mãe faleceu e seu irmão Hugo, 53 anos, foi morar com ele. Até então, o contato entre os dois era só ;nos bons momentos;, como define Mattioli. A mãe e o irmão dele moravam no interior de Minas. Ela era dedicada aos cuidados do filho, tanto que fundou uma Apae na cidade em que vivia.

Quando ela se foi, o militar sabia que precisava ajudar e trouxe Hugo para viver em Brasília com ele e a mulher. No começo, Hugo sentiu, mas logo foi integrado à Apae de Brasília e se adaptou. A família de Aderico é que teve de se organizar. Hoje, quando saem, Hugo vai junto e, se ele quer ficar, precisa de alguém em casa para fazer companhia, já que ele é mudo e não tem tanta independência.

Condição financeira ajuda nessas horas. Consultas, vans para levar e buscar Hugo, passeios. Tudo isso custa caro, mas garante a saúde, o conforto e a felicidade de quem envelhece com Down. Aderico pode pagar. Sorte de Hugo, que também tem uma pensão e pode ajudar nos custos. Sorte também de ter sido acolhido por uma família tão carinhosa. Afinal, todos acabam envolvidos. ;Eu viajo muito a trabalho e, se não fosse minha esposa, as coisas teriam sido mais difíceis. Ela cuida mais dele do que eu;, orgulha-se Aderico.
Cuidado de sobra também recebe Rita de Cássia, 54 anos. Ela é a aluna mais velha da Apae e veio para Brasília há nove anos, com o pai, quando a mãe morreu. A primogênita da família de 11 irmãos, a advogada Nicola Motta, foi quem assumiu a tarefa de zelar pelos dois e os trouxe do Rio de Janeiro para morar com ela na capital. Dois anos depois, elas perderam o pai e, agora, uma conta com a companhia da outra. Nicola chama Rita de ;menina;. Trata aquela senhora espevitada como se fosse filha. ;Quando a gente vai ao shopping, peço a mão dela, senão ela me enrola e some em questão de segundos;, comenta à advogada, referindo-se à irmã.

Rita é mesmo cheia de energia. Gosta de conversar. Vaidosa, pinta cabelo e faz a unha. Frequenta o shopping e adora os sobrinhos. Todos a paparicam. Nicola cuida dela com a ternura e a rigidez de uma mãe. Contratou motorista de confiança para levá-la à Apae. Tem medo que ela ande sozinha. Se precisa sair, deixa o lanche preparado para Rita não ter de se aventurar no fogão. Na agenda de compromissos dessa advogada da União, estão as consultas periódicas da irmã mais nova. A alimentação é regrada. Para garantir a saúde da caçula, a norma é comer bem e de maneira saudável.

Rita fala em casar e ter filhos. Gosta de olhar os moços bonitos. Nicola se preocupa com a ingenuidade dela. Por isso, não descuida. Muitos pais e parentes têm o mesmo receio. Como qualquer pessoa, eles adoram namorar. Podem se apaixonar, sofrer por amor e ter relações íntimas. Mas a família, muitas vezes, não permite. Afinal, como muitos deles não têm autonomia, são os pais e irmãos que precisam promover os encontros. Aí, a maioria deixa a ideia de lado.

Talvez Rita não realize seu sonho de ter uma família criada por ela, mas é uma vitoriosa. Chegou aos 54 anos com muita saúde e cheia de alegria. Contrariou as más previsões feitas para seu futuro, há mais de meio século. ;Quando ela nasceu, os médicos disseram pra minha mãe: ;Não se preocupe com a menina. Com essa patologia, ela não dura muito tempo;;, conta Nicola.

Leia na edição impressa a reportagem completa.

Leia nas próximas semanas
Como as pesquisas podem salvar as vidas de quem têm algum problema genético, a briga das famílias para garantir, na Justiça, o tratamento dos filhos, o drama de quem convive com males desconhecidos ou pouco compreendidos pela ciência. Entenda também como a falta de informação compromete a qualidade de vida dessas pessoas