Jornal Correio Braziliense

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No lado esquerdo do peito

As festas de fim de ano são um pretexto para renovar a chama da amizade e propor encontros fora da rotina



Cinquenta e um anos abarcam, no máximo, duas gerações. Só agora, Brasília começa a ver seus primeiros filhos adultos, que formaram seus laços aqui, com amigos nascidos aqui, em um amálgama cultural que dá cara própria à cidade.
No começo, era diferente. Famílias chegavam desgarradas do núcleo original. Crianças se viam em uma realidade na qual quadras esparsas serviam para brincadeiras e as amizades se tornavam ainda mais necessárias, dada a imensidão do cerrado, que afastava a capital dos grandes centros.

Boa parte desses laços tornou-se digno de verso. Mesmo que muitos ainda enxerguem Brasília como um estação e não a parada final, as amizades permanecem. E, quando as luzes pisca-pisca se misturam às dos postes, papais-noéis pululam em janelas e amigos-ocultos promovem encontros inéditos, essas relações são reavivadas.

O fato é que, seja em reuniões anuais, em ;grupamentos de salvação; dos que não podem voltar ao estado de origem no fim do ano, ou se valendo da tecnologia das redes sociais para reencontros, os amigos dão um jeito de ficar em contato. E a magia do Natal, que, às vezes, parece firula publicitária, fica bem mais passível de crença...

Imagine viver em uma cidade que está nascendo. Em um grande campo de cimento e areia se misturam os anseios de quem veio na esperança de uma vida melhor, a revolta dos que foram obrigados a sentar praça no nascente centro urbano e a indiferença dos que a idade só faz pensar em brincadeira.

Brasília já foi um destino exótico ; até mesmo indesejado ; e muitos dos seus habitantes iniciais se aproveitavam disso para construírem sua história. ;Nosso período foi o de consolidação da cidade. Sabíamos que não éramos de Brasília. A cidade é que era nossa;, resume o professor universitário Eliton Brandão, 50 anos.

Aluno do ensino médio do Colégio Marista entre 1977 e 1979, ele se juntou a quase 100 outros em um encontro que celebrou 35 anos de amizade. A ideia surgiu de um soturno incidente. Após a morte de um amigo das famílias da professora Giselle Ottoni, 48, e da bióloga Adriana Moreira, 50, o contato entre as duas se reacendeu. ;Minha mãe a encontrou no velório e eu a procurei por telefone. Giselle me contou sobre seu encontro com amigas de primário e pensei: ;Por que não fazer isso também entre os do segundo grau?;;, recorda Adriana.

Assim nasceu um grupo de Facebook. Dele, uma primeira reunião em uma cervejaria, no qual apenas 20 pessoas compareceram. O pequeno número de participantes foi inversamente proporcional à enorme quantidade de abraços, beijos e recordações. ;Passei três horas de pé, abraçando todo mundo. O dono de lá deve ter se revoltado. Éramos 20 e gastamos apenas R$ 140. Ninguém queria saber de nada, além de relembrar nosso tempo;, conta Kátia Siqueira, outra remanescente do Marista.

O Facebook acabou se tornando uma cesta natalina de lembranças. Histórias que se encaixam bem com qualquer adolescente sendo contadas por, hoje, pais de família, detentores dos mais diversos cargos, que perdem a vergonha de lembrar que, sim, foram jovens e despreocupados com as obrigações que a vida adulta impôs.

Uma leitura rápida dos causos dá conta de caranguejos vivos soltos em sala de aula, da esperança de que o professor deixaria o mais estudioso dos alunos se sentar no fundão para passar cola, de bombas de São João na caixa de correio e de muita, muita dor de cabeça para rígidos irmãos maristas.

;Nossa amizade surgiu em uma época em que os meninos estavam se tornando homens, e as meninas, mulheres. Eram muitos projetos de vida, muitos desejos, não sabíamos direito o que iríamos nos tornar. Por isso que ela se tornou tão forte;, explica o bancário George Mello, 51 anos. As mudanças, claro, são inevitáveis. Casamentos, filhos, empregos, correria... Todo o pacote que diferencia os 17 anos dos 50, faixa na qual estão agora.

;Há sempre uma sensação inicial de que você não será reconhecido;, admite o empresário Antonio Avelar Schmidt, 50. O primeiro encontro, inclusive, teve adesivo com nome no peito, para quem ninguém tivesse de passar pelo constrangimento de não ter o rosto lembrado. Não foi necessário. Como é impossível fugir da carga afetiva em momentos como esse, os amigos de outrora se valeram de outros métodos além do físico para saber quem era quem.

;Apesar de estarmos diferentes, o olhar e o sorriso são os mesmos. Estávamos tão felizes no nosso primeiro encontro que nem perguntamos sobre a vida atual. Era a mesma coisa de 30 anos atrás;, garante Giselle. Eles acreditam que o que viveram não se repete com a juventude atual. Mesmo com as facilidades da comunicação, os adolescentes de hoje manteriam relações superficiais, se comparadas às daquela época.

;Meu filho tem amigos antigos, mas a comunidade que formávamos eu não vejo mais acontecer. Os amigos parecem ter mais mobilidade agora. Quando estudava com eles, sempre acordava com a certeza que chegaria no colégio e meus amigos estariam lá;, explica Kátia Siqueira.

O comerciante Marcelo Aranha, 49, acredita que o tamanho reduzido da cidade também garantia maior aproximação. ;Sou de Recife, morei no Rio de Janeiro e vim para Brasília. Aqui era minúsculo e o Maristão se tornava nosso ponto de encontro;, resume.
Bons companheiros (e ninguém pode negar)
Há um ditado brincalhão que diz ser impossível fazer amigos bebendo leite ; uma ode ao torpor alcoólico que se liga diretamente ao amor fraterno. Ou seja, amigo feito na mesa do boteco será para sempre. Mas, não pense que a relação se resume ao tempo que é passado no bar.

Ao nascer dessa forma, ela precisa de outros tantos motivos para ser mantida e os autointitulados Amigos do Lago Norte se dão essas razões há 35 anos. O grupo, que todos os sábados se encontra no Bar do Luizão, no comecinho do bairro, realiza anualmente uma festa de confraternização, prestigiada por todos os integrantes.

Luizão
Claro que, sendo uma reunião masculina, as piadas correm soltas. E cada um dos famosos integrantes tem sua forma de brincar com os outros. Luizão é quem agrega. Nascido Luiz Gonzaga Teixeira, é dono tanto do bar como do humor mais ácido da turma. Aos 51 anos, com uma barba grisalha e farta, ele deixa claro que hoje não considera nenhum dos mais de 100 participantes como clientes: todos são amigos. ;Lá é como nossa casa.;

Mas que eles não pensem que isso dá direito de pendurar a conta. Luizão colocou, bem à vista de quem entra, uma placa onde se lê: ;Se você bebe para esquecer, pague antes de beber; e o aviso é seguido à risca. O bar, sem luxos, é a essência do boteco. Mesas na frente, um grande balcão no qual ele recebe os amigos ; ;Se for cobrador, eu sou irmão do Luizão, viu?;, brinca ;, imagens de santos misturadas a fotos do grupo, uma televisão que poucos assistem e a cerveja sempre gelada.

Itália
Há 24 anos, o pessoal percebeu que era preciso mais que o barzinho de todos os sábados para celebrar a amizade. Foi quando surgiu a ideia de uma confraternização que juntaria todos. O problema era definir o lugar. Ninguém queria tanta gente em casa nem o trabalho de organizar o evento e de limpar a bagunça no dia seguinte. Cada um dava uma desculpa. Não fosse o empenho do Itália, provavelmente a intenção teria morrido no fundo do copo.

O professor universitário Antenor Turazzi, 59, é, como o apelido denuncia, italiano. Veio morar em Brasília com as levas iniciais e foi no Lago Norte que fez seus maiores amigos. Hoje, mesmo vivendo em Santa Catarina, faz questão não só de vir, como de participar da organização da festa anual que ajudou a criar.

;Eu transformei a festa num evento importante para a comunidade do Lago Norte. Ela demonstra nosso compromisso uns com os outros e com o bairro. Por isso, faço 1.850km só para estar aqui;, frisa. O sucesso foi inevitável. Somando-se os amigos, o clima de boteco, a cerveja gelada, as histórias de todo um ano, as mulheres em casa e o clima natalino, a aprovação era inevitável. Sim, você leu corretamente. Na festa anual dos companheiros do Lago Norte, as mulheres ficam no lar, e só aparecem para resgatar os maridos cansados da festança.

Se antes era difícil conseguir um local, agora há excesso de opções. Com a chegada de novatos à turma, todos querem demonstrar seu apreço. Isso cria, anualmente, uma ;briga; para escolher quem será o anfitrião. Este, satisfeito de poder ser reconhecido como tal, contrata serviços, arruma a casa, deixa tudo tinindo, até porque ainda há o momento mais esperado do evento: a escolha de quem vai cuidar do veado durante o ano seguinte. Quem explica a premiação é um dos fundadores da turma, o gerente de vendas Gilberto Azevedo, 56 anos.

Gilberto
Em uma conversa que se espalhou por quase uma hora, Gilberto lembra que, durante uma quermesse, ele e a mulher encontraram um veado branco de louça, com o qual presentearam um amigo. ;Compramos para brincar. Mas acabou que a peça se tornou o símbolo da turma. Todo ano, escolhemos quem vai cuidar do veado. No começo, ninguém o queria. Hoje, quem o recebe chora de feliz..; O objeto se tornou um ícone: seu portador tem a prova de que está entre os mais queridos, já que a escolha é feita por uma comissão dos mais antigos membros.

Há três anos, os mais jovens também ganharam seu emblema de amigo do Lago Norte. Outro veado de louça, dessa vez preto, deve ser guardado por um novato. Gilberto diz que toda essa brincadeira pode dar a impressão de que eles só estão juntos para festejar. Mas não é isso que acontece.

Ele mesmo conta de quando sofreu um infarto. Estava em Lisboa, voltando para o Brasil ,e acabou tendo de ficar 40 dias hospitalizado. ;Você tinha de ver minha conta de celular. Não podia atender, por ordens médicas, mas minha mulher e meu filho disseram que todos me ligaram, todos os dias.; O gerente de vendas explica que a mesa de bar dá apenas uma dimensão do relacionamento que os Amigos do Lago Norte mantém.

Por exemplo, casamentos já foram salvos graças a conversas que acontecem ali; instituições de caridade, como a Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae), são ajudadas com doações; aqueles do grupo que passam por problemas financeiros recebem apoio. ;Eu mesmo passei anos me vestindo de Papai Noel, indo deixar presentes para os filhos dos amigos. Isso aqui é a extensão da minha família.;

Luizão, sem receios, vai ainda mais longe. ;É um Natal melhor que em família, porque na família tem sempre aquele que briga, resquícios de mágoas, e aqui só vem o que é bom. Alguns estão ausentes, porque já se foram, mas eu sei que eles estão lá em cima olhando por nós.;

Ao redor das raízes
O comerciante Khaled Hussein Naser, 41 anos, nasceu no Líbano. Ao chegar no Brasil, foi viver no Paraná, onde conheceu a esposa, a dona de casa Lucimara Levandoski, 35. Os dois vieram para Brasília em 2001, e foi aqui que, finalmente, se sentiram em casa. Não que suas tradições e lembranças tenham sido esquecidas.

Ao contrário, aqui eles acharam um grupo que não só compartilhou de experiências semelhantes às deles, como faz questão de mantê-las vivas para as novas gerações. Mesmo não tendo nascido no Rio Grande do Sul, o casal é presença constante no Centro de Tradições Gaúchas (CTG), um espaço que, há 30 anos, mais que celebrar a cultura do estado, serve para unir as famílias de diversos lugares do país que se identificam com o estilo de vida dos pampas.

;Descobrir o centro foi a melhor coisa que poderia ter acontecido para a nossa relação com a cidade. Hoje, não quero mais voltar para o Sul. Aqui é minha segunda casa;, garante Lucimara. Sob a égide do espírito gaúcho, as famílias se unem semanalmente, celebram todas as festas do ano, inclusive o Natal. No 24 de dezembro, aqueles que não puderem visitar estado de origem comemorarão juntos, cada um levando um prato para montar a ceia.

O clima de festa familiar é garantido. ;Passar o Natal aqui é uma sensação fantástica porque fazemos a festa com a cara da nossa região;, afirma a relações públicas Rosângela Melo, 39 anos. Ela, que um dia pensou em desistir de viver em Brasília, tamanha era a saudade do lugar onde nasceu, agora está à vontade. Em outros tempos, não conseguia se encontrar, sentia falta dos amigos, das tradições, até descobrir o CTG na internet. ;Aqui, abrandei essa sensação. Os amigos que fiz são uma extensão das minhas origens. E pude mostrar ao meu filho de que forma eu fui educada.;

O local, uma área de 100 mil metros quadrados que chega a lembrar as imensidões sulistas, inspira as reuniões. Famílias sentam-se à mesa, enquanto uma dupla entoa músicas tradicionais. Senhoras bem vestidas abraçam os netos; maridos dividem com as mulheres o preparo das refeições; o churrasco, claro, é generoso.

;Ser gaúcho é um estado de espírito. Por isso ficamos tão amigos. Gostamos das mesmas coisas e fazemos com que todos se sintam bem recebidos, tenham ou não nascido no Rio Grande do Sul;, afirma a psicóloga Nara Lucas, 54. Khaled Hussein Naser sabe que isso é verdade. Ele diz que, por ser de outro país, já conheceu pessoas de todos os locais do mundo, mas foi com os gaúchos de Brasília que a identificação foi maior.

;Essa cultura que vivo aqui é muito parecida com a que eu tive na minha infância no Líbano. Hoje, considero os amigos daqui como minha família.; O amor fraternal é, inclusive, um dos principais pontos celebrados por quem faz parte do CTG. ;O que nos caracteriza é justamente esse núcleo familiar que cultivamos. Aqui, você encontra filhos, mães, avós, netos, pais e amigos, o que cria um aconchego grande;, diz Maria Cleuza Guerra, 75, presidente da entidade. E, assim, o estado de nascimento não serve apenas como identidade, mas como catalisador de amizades que envolvem também os que nasceram em outros lugares.