A cantora canadense Alanis Morissette vive numa corda bamba em relação ao seu vegetarianismo. Define-se vegan (que não consome nenhum derivado de origem animal), mas já foi fotografada comendo hambúrguer e vai a churrascarias. Aqui pertinho, em Brazlândia, existe outra Alanis Morissete, bem mais coerente. Aos nove anos, a estudante nunca comeu carne vermelha. E, mesmo tendo de repetir continuamente para os coleguinhas seu motivo ; ;Tenho pena dos animais; ;, ela não sente vontade de mudar. ;Já nem me importo deles perguntarem, porque sei que é gostoso o que como;, conta.
Alanis faz parte de um grupo cada vez maior de crianças que nascem em famílias vegetarianas e são criadas seguindo os costumes alimentares dos pais. ;Minhas filhas nunca tiveram contato com carne porque eu não comi nem durante a gestação. Agora, já tenho uma neta de dois anos que não come;, afirma a professora Amélia Barbosa Pinheiro, 50 anos. A filha, a também professora Samita Barbosa, de 20 anos, mãe da pequena Luíza, brinca que sempre foi um perrengue ir à festas infantis. ;A gente sempre gritava ;Mãe, tem carne nisso;;, relembra. O questionamento que persegue muitos pais que gostariam de tirar a carne da dieta dos filhos é: uma criança pode crescer de forma saudável sem carne vermelha?
De acordo com os especialistas, sim. Onívoro, o ser humano come de tudo e tem à sua disposição itens de várias fontes para suprir suas premências nutricionais. Entretanto, os grupos se dividem quando questionados sobre a necessidade de proteína animal na alimentação. Para a presidente da Sociedade Brasileira de Pediatria ; Seccional Brasília, Vera Lúcia Bezerra, dependendo da idade, a criança precisa de uma fonte que venha dos animais. ;Há determinados aminoácidos indispensáveis para o desenvolvimento que só podem ser conseguidos a partir deles. Não é preciso comer a carne vermelha, mas não se pode deixar de ingerir leite, ovos e peixe.; Vera Lúcia afirma que quanto maior o tempo que a criança passe sem ingerir essas fontes de proteína animal, maiores os danos. ;Elas podem ter problemas de pele e até mesmo neurológicos, com falhas no desenvolvimento. O indivíduo adulto pode ficar sem a proteína animal, as crianças não;, completa.
Já o nutrólogo Eric Slywitch garante que é possível que os pequenos não se alimentem de nenhum derivado animal e, mesmo assim, assegurem todos os nutrientes, inclusive os protéicos. O especialista diz que não há nenhum aminoácido que não possa ser encontrado nos vegetais. ;O que acontece é que muitos pais não têm hábitos adequados, mesmo os vegetarianos.
É preciso orientação médica, seja para uma criança vegetariana ou não;, observa. Eric explica que, ao não ter contato com carne vermelha durante a vida inteira, além do menor risco de obesidade, as crianças se tornarão adultos com menos tendência a desenvolver problemas cardiovasculares. Os pais encontram outras vantagens, além das que envolvem a saúde imediata.
Experiência positiva
Adair de Areda Vasconcelos, educador de 53 anos e pai de Alanis, disse que, desde criança, já pensava no sofrimento dos animais como um motivo para torná-lo vegetariano. ;Fui criado na roça e meu pai pedia ajuda para segurarmos os porcos para que eles os matassem.; Ele acredita que o sofrimento infligido ao animal fica na sua carne e, já que as crianças vegetarianas não a comem, seriam mais tranquilas. ;Ela está livre desse alimento que a puxa para esse lado mais agressivo.;
Outra filha de Adair, Joice de Freitas, 21 anos, está grávida de sete meses e também nunca experimentou carne. Para a jovem, o que falta às pessoas ;carnívoras; é um bom cozinheiro. ;Todos ainda se espantam e ficam naquela de dizer que não sei o que estou perdendo. Quem não conhece, continuará tendo essa ideia. Meu filho vai passar por isso, mas comendo muito bem.;
A questão ;social; também é um problema para os filhos de vegetarianos. Amélia Barbosa Pinheiro já chegou a ouvir de vários professores que ela estava errada em não dar carne para as filhas. ;Minha filha ouviu do pediatra no pré-natal que ela tinha de comer carne senão minha neta nasceria com problemas. Só que eu as tive sem comê-la. Ainda há muito preconceito;, reclama.
A presidente da Sociedade Vegetariana Brasileira (SVB), Marly Winckler, acredita que o lobby da indústria da carne é que incita essa ideia de que o ser humano depende dela. ;As pessoas são criadas pensando que comer carne é um direito, quando, na verdade, é uma escolha.; Ela explica que há uma preocupação da SVB em fazer trabalhos de conscientização nas escolas, não só para maior aceitação das crianças de famílias vegetarianas. ;Queremos também mostrar aos que comem animais as implicações da alimentação deles. Achamos que esse debate tem que chegar na sala de aula;, incita. Em parceria com a a Secretaria do Verde e Meio Ambiente (SVMA) da prefeitura de São Paulo, a SVB lançou o projeto Segunda Sem Carne.
Três mil escolas da rede municipal paulistana adotarão, durante as segundas-feiras, um cardápio vegetariano. A campanha existe em vários países ; na Inglaterra, o ex-beatle Paul McCartney é quem lidera os esforços ; e tenta, justamente, alertar sobre os riscos ambientais da produção de carne. Mas, claro, essa é uma escolha individual. ;A decisão de comer ou não carne é deles. Inclusive uma filha mais velha, quando foi morar sozinha, sentiu que queria experimentar. E nós a respeitamos. Aqui nada é imposto;, afirma a funcionária pública Shirlene Caldete Barreira de Areda, 51 anos e mãe de Alanis.
Aos pais que não são vegetarianos, mas esperam que seus filhos comam mais vegetais, a experiência dos que não se alimentam de carne rende dicas. A nutricionista Soraya Vydia explica que o mais importante é cativar a criança com alimentos saborosos, deixando que ela faça parte do processo de escolha, sem imposições. ;O ideal é transmtir o que é mais saudável com leveza para criança, pois em geral ela gosta de aprender a fazer alguns pratos.;
Aos vegetarianos que temem que seus pequenos sejam influenciados pelos colegas da escola, Soraya aponta que compartilhar é a melhor escolha. ;A criança pode levar o lanche saudável para escola e partilhar de vez em quando com os outros. Assim vai se fazendo uma ;contaminação; positiva no sentido de expandir o universo alimentar da comunidade;, finaliza.
Apesar de os adeptos do vegetarianismo sustentarem os benefícios da opção mesmo para os filhos, as sociedades médicas são reticentes. O presidente da Associação Brasileira de Nutrologia (ABRAN), Durval Ribas Filho, discorda da possibilidade de uma criança não comer carne. Para o médico, além da carne ter proteínas de alto valor nutritivo que não podem ser encontradas em vegetais, ela garante vitamina B12. Muitos optam pela reposição do nutriente de forma injetável, o que não é recomendado para as crianças. "O ser humano tem de comer carne, pelo menos, até os 15 anos", acredita.
A presidente do departamento de nutrologia da Sociedade Brasileira de Pediatria, Virgínia Weffort, também é contra não fornecer carne e derivados aos menores. Segundo ela, o ferro e o zinco, indispensáveis, podem ser encontrados mais facilmente nesses alimentos. "Eles vão proteger a criança contra a anemia e dar mais imunidade. Sem a carne, ela vai ter que tomar remédios para suprir essa carência e isso não é bom." Virgínia acredita que todos os tipos de alimentos devem ser oferecidos aos pequenos. Apenas quando adultos é que eles devem escolher a melhor dieta a seguir.