Jornal Correio Braziliense

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À moda de Deus

Empresárias e estilistas atentas às dificuldades que as evangélicas têm em encontrar roupas que sigam os preceitos religiosos investem em um novo filão: a confecção de peças recatadas, mas que seguem a tendência fashion

O Brasil é o maior país católico no mundo. Mas há quatro décadas esse número vem diminuindo. Segundo um estudo conjunto da Universidade Federais de São Paulo (Unifesp) e da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), entre 1991 e 2006, a quantidade de católicos caiu de 83,8% para 68%, e a de evangélicos subiu de 9% para 24%. O crescimento da população evangélica tem transformado culturalmente o Brasil. Além de cantores evangélicos dominando as paradas musicais, esse aumento tem afetado a indústria da moda.

A maioria das congregações e igrejas evangélicas tem códigos de vestimenta. Tanto para os cultos quanto para o dia a dia. As mulheres são as principais afetadas. Elas não podem ;se vestir como homens;. Ou seja, nada de calças. E também não devem usar roupas provocantes. Por isso, adotam saias abaixo do joelho e evitam camisas sem mangas. Algumas congregações mais tradicionais só permitem às fiéis vestirem saias longas e camisas de manga comprida. Essas restrições acabaram criando um vácuo na moda brasileira. Onde essas evangélicas vão encontrar roupas?

;É muito complicado. Quando encontramos uma camisa sem decote, ela é sem manga. Quando tem manga, ela tem decote;, conta Márcia Cabral, dona de uma loja especializada em moda evangélica de Brasília. Por isso, depois de anos mandando fazer a suas roupas em costureiras, resolveu abrir, em Taguatinga, uma butique voltada para as fiéis evangélicas. Ela entrou em contato com confecções em Goiânia e em São Paulo que fabricam, principalmente, saias adequadas para quem segue os preceitos religiosos.

A empresária conta que colocar o nome Moda Evangélica na loja acabou atraindo compradores de três estilos. O primeiro formado por fiéis, que, assim como ela, têm dificuldade em encontrar roupas nos shoppings. Outro grupo é de curiosos que entram no local atraídos pelo letreiro. ;Muita gente nem sabe o que é moda evangélica, entra para descobrir e acaba saindo com algumas peças.; Por último, aquelas mulheres que não são evangélicas, mas têm dificuldade de encontrar roupas mais arrumadas para trabalhar.

Como Márcia, outras empreendedoras têm criado lojas especializadas. Todos os estados do Brasil contam com pelo menos um representante de vendas. Essa abrangência de público acaba aumentando o número de marcas e confecções de moda evangélica no país. Os grandes polos são Paraná e São Paulo ; na região do Brás. Mato Grosso e Goiânia também vêm crescendo aos poucos. São ao todo 20 empresas e sempre aparece uma nova no mercado. Todas com a saia abaixo do joelho como carro-chefe.

Qual é a diferença?
Moda Gospel: camisas, anéis e casacos têm dizeres religiosos. Normalmente, são ligados a algum grupo gospel. Não necessariamente fabricados por confecções evangélicas.
Moda Evangélica
: estilo de roupa que as fiéis evangélicas usam. São saias abaixo do joelho, camisas mais comportadas e vestidos longos.

As tendências segundo a doutrina
;Quem disse que as evangélicas não podem ser modernas?;, indaga Márcia Cabral, dona de uma loja especializada em moda evangélica de Brasília. ;Por conta do cabelo e das saias, antigamente, as pessoas olhavam para a gente e sabiam qual religião praticávamos. Hoje, passamos mais desapercebidas na rua.; Marta e outras empresárias creditam essas mudanças às próprias mulheres. Elas começaram a buscar peças mais interessantes e joviais.

;As evangélicas mais jovens não querem se vestir como suas mães. Elas não querem usar uma roupa que as envelheça. Faltava roupa bonita para elas;, explica Carolina Sampaio, estilista da marca Kabene, especializada em moda evangélica. Vendo essa abertura no mercado, Carolina foi estudar moda no Senai e se pós-graduou na Faculdade Santa Marcelina. Tomou conta da confecção dos pais, contratou mais duas estilistas e montou uma equipe de estilo. De três em três meses, lança uma coleção, seguindo o molde do calendário oficial da moda brasileira ; verão, alto inverno, inverno e alto verão.

Assim como a Kabene, outras confecções tomaram a mesma atitude: formaram equipes para criar produtos ligados ao universo da moda evangélica. Elas ficam de olho nas principais passarelas. As estilistas adaptam as tendências da temporada à doutrina evangélica e lançam essas peças no mercado. Estampas como o xadrez e o floral, que dominaram as duas últimas estações, entram com facilidade na coleção. Os modelos de saia da temporada são adaptados ao comprimento ideal e as cavas dos decotes, diminuídas. Ficam de fora, entretanto, estampas mais agressivas ; como caveiras ; e representativas de outras religiões ; como o hindu e o budismo.

Outra grande investida das marcas é no mundo virtual. As redes sociais são a maneira de entrar em contato com os evangélicos mais jovens. A marca Raje, por exemplo, tem comunidades no Facebook, Youtube, Orkut e Twitter. Cada uma delas com cerca de mil seguidores. ;Nós sentimos o crescimento da empresa, junto com o aumento do número de participantes das mídias sociais;, conta Cintia Silva gerente de marketing da Raje. Mas a grande diferença da grife é o blog alimentando pela equipe de estilo. A estilista e a consultora pegam fotos de referências de celebridades e de passarela e explicam como adaptá-las ao universo religioso.

As it-girls
Algumas evangélicas famosas se tornaram exemplo de estilo dentro da comunidade e também para mulheres que não seguem os preceitos religiosos.

A moça dos vestidos
Marta Amaral sempre gostou de vestidos coloridos. Desde criança. Mas foi só adulta, depois de se casar e de criar os dois filhos que ela conseguiu realizar o seu desejo: um vestido novo e colorido para cada dia do ano. A dona de casa tem mais de 300 modelos em seu armário. Todos são longos e de manga comprida para obedecer a doutrina religiosa imposta por sua Igreja. Marta é fiel da Igreja no Brasil e tem que manter sempre os braços e o colo cobertos. A pernas devem ser tampadas por saias longas.

Por conta da limitação de peças que pode usar, Marta sempre teve dificuldade de encontrar roupa nos shoppings. Como sempre gostou de se vestir bem, resolveu brincar de estilista e começou a mandar confeccionar vestidos coloridos e superestampados. A dona de casa gosta de fazer modelos de saia godê ; rodada e volumosa ;, brincar com o arremate do tronco do vestido e adora cintos de gorgurão das mais diversas cores para combinar com as roupas. Cada modelo leva pelo menos 3 metros de tecido ; os mais elaborados podem consumir até 7 metros.

Marta não é designer, mas é ela quem idealiza todos os modelos. De vez em quando, paga uma estilista para passar para o papel todas as suas ideias e manda executá-las há 20 anos na mesma costureira. Suas referências são as mais diversas. Em uma pasta, guarda recortes de fotos de celebridades que saíram em revista de fofocas. Às vezes, seleciona apenas detalhes de desfiles. Sua próxima inspiração é um dos vestidos que a atriz Emily Blunt usou no filme A jovem rainha Vitória.

Mas, atualmente, a grande paixão de Marta são os vestidos de prenda ; traje típico do Sul do país. Há um ano, ela foi a uma feira especializada e se apaixonou pelas roupas. Comprou um modelo todo bordado e, depois, mandou fazer alguns parecidos. Teve, entretanto, que adaptar a manga de babados dos vestidos, pois, quando levantava os braços no culto, ela caía e os braços apareciam. Outra peça que Marta sempre quis ter foi uma camisa japonesa. Mas só encontrava de manga curta, por isso ela mandou alongá-las e arrematou com o punho do mesmo tecido.

Suas criações lhe dão tanto orgulho que Marta tem todas elas registradas. Ela veste as roupas e o marido a fotografa. A locação é sempre um dos cômodos coloridos que o casal mora. Ela já encheu uma prateleira inteira de álbuns. Alias, há vários resquícios dos vestidos pela casa. O armário, onde eles ficam dobrados nas prateleiras e organizados por tonalidades, ficou pequeno. Marta teve que guardá-los em caixas de papel especialmente decoradas, que ficam no quarto e em alguns pontos da sala.

Durante algum tempo, eram os próprios tecidos que ficavam espalhados. Ela já chegou a ter a banheira inteira lotada de pedaços de panos para fazer novos modelos. Marta adora comprá-los. Seu local favorito para adquiri-los é o Taguacenter, onde quase todas as vendedoras já a conhecem. Sempre que vai lá, sai com diversas opções de estampas. Ultimamente, tem gostado do Oxford. Mas está preocupada. Deixou na costureira quatro vestidos. Um é marrom e ela não para de pensar: ;Será que não vai ficar muito sem graça?;

ENTREVISTA // Chrisi Karvonides
Moda religiosa na TV
Está certo que os preceitos religiosos das igreja mormón e evangélica são bem diferentes. Mas ambas as religiões têm códigos de vestimenta muito parecidos. Suas seguidoras precisam usar saias abaixo do joelho, camisas de manga e sem decote. Em comunidades mais rígidas ; nas duas religiões ;, as mulheres só podem adotar vestidos longos e camisas de manga comprida. Durante cinco temporadas, a série de TV da HBO Big Love ; que terminou no início deste ano ; mexeu com as opiniões que as pessoas tinham sobre a sociedade mormón. Principalmente, a parte da igreja que pratica a poligamia.

Para explicar o que é a religião mormón e os seus preceitos, a série conta a história dos Henrickson, uma família polígama moderna e urbana composta pelo marido Bill (Bill Paxton) e por suas três mulheres, Barb (Jeanne Tripplehorn), Nicki (Chlo; Sevigny) e Margene (Ginnifer Goodwin ). Elas moram em casas separadas, mas dividem o jardim ; e as refeições ; e a criação dos noves filhos de Bill. Ao longo das temporadas, as roupas das três viraram protagonistas do programa.

Principalmente as de Nicki, personagem estrelada por Chlo; Sevigny ; atriz que é ícone de estilo. Ela era a religiosa mais fervorosa entre as três e, por isso, escondia o vício por compras. Ao longo do programa, Nicki acumulou uma dívida de US$ 60 mil e entrou em crise com a fé, até que na última temporada fez uma mudança total no guarda-roupa. A Revista conversou com a figurinista Chrisi Karvonides, que contou a dificuldade de fazer pesquisa em uma sociedade tão fechada, a implicância das atrizes com as roupas sem cintura, como a moda absorveu as roupas das personagens e a polêmica ao mostrar roupas secretas, que são sagradas para os mormóns.

Como você fez a pesquisa para montar o figurino da série?
Há duas comunidades mórmons vizinhas em Utah ; estado americano com o maior número de fiéis da igreja nos Estados Unidos. A primeira é formada por mórmons não polígamos, que vivem em ambientes urbanos. Eles têm um código de vestimenta muito rígido, mas permitem que as mulheres usem camisas de manga curta e saias abaixo do joelho. A segunda vive escondida em uma comunidade polígama fundamentalista. Esse segundo tipo usa vestidos longos, de manga comprida, sem decote e penteados com topetes enormes. Inicialmente, foram dois meses de pesquisa. Comecei a coleta de dados com vídeos e imagens que achei no Google. Ainda li um monte de livros sobre o assunto. Como estava pesquisando as comunidades polígamas de Utah, fui lá conhecer as pessoas que viviam como os personagens da série. Mas eu só conheci um morador. As outras pessoas com quem conversei eram mórmons que viviam em centros urbanos e não eram polígamos.

Como você traduziu os diferentes aspectos da doutrina mórmon para as personagens?
A personagem Barb foi criada como uma mórmon tradicional. Essas mulheres são incentivadas a se vestirem sem ostentação e de maneira conservadora. O mórmon urbano usa por baixo da roupa o garment sagrado ; espécie de macacão acima do joelho e com manga curtinha. É por isso que a Barb adota manga curta, sem decote, e saias na altura do joelho. A personagem Nicki cresceu em uma comunidade polígama fundamentalista. O código de vestimenta deles foi criado por Brigham Young, um dos líderes mórmons polígamo. Tradicionalmente, de 1840 até 2000, ele mandou as mulheres se vestirem de maneira antiquada, com vestidos de algodão florido, como os colonos norte-americanos no século 19. Em 2001, quando Warren Jeffs virou líder das comunidades polígamas em Utah, ele proibiu esses vestidos floridos e obrigou a adoção de vestidos monocolores de poliéster. A razão pela qual as mulheres usam esses vestidos é que o garment sagrado vai até os punhos e o tornozelo. Já Margene não foi criada em um ambiente religioso. Não havia no script descrição nenhuma do que ela usava. Apenas que ela se vestia de maneira mais provocante. Como era muito nova, a personagem abusava dos decotes e das saias curtas. Isso irritava muito as outras mulheres. Elas achavam desrespeitoso e inapropriado.

Quais as dificuldades de montar um figurino com um pano de fundo religioso?
Eu sabia que ia ser difícil montar o figurino para Big Love. O elenco era enorme e, no início, não existia material para fazer pesquisa, eu tinha apenas 25 imagens para trabalhar. Depois da primeira temporada, foi muito mais fácil. Foi só aí que eu descobri um erro na minha pesquisa. Eu estava usando os vestidos floridos nos personagens que moravam na comunidade polígama. Mas eles só usaram essas roupas até os anos 1990 ; a não ser a comunidade que morava no Canadá. Eu consegui imagens do que eles estavam usando nos anos 2000 depois da primeira temporada. Então foi preciso criar uma mudança na história para assimilar essa mudança na roupa da mulheres da comunidade. Colocamos essa troca no vestuário quando Roman Grant perdeu o poder da comunidade polígama para o filho Alby. Outra mudança foi quando Nicki começa a questionar a sua fé. Ela muda radicalmente o seu estilo e para de usar roupas parecidas com a das comunidades polígama. Nicki passa a usar minissaias, que ela pega da Margene. No início da quinta temporada, ela voltou a usar roupas mais conservadoras, só que parecidas como as usadas pela Barb. Era uma mistura de roupas urbanas com detalhes que remetiam ao seu passado nas comunidades polígamas.

As roupas foram desenhadas especialmente para o programa ou compradas em lojas?
Foi uma combinação das duas coisas. Muitas roupas da Barb foram compradas em lojas e alteradas para ficar perfeitas no corpo da Jeanne Tripplehorn. Muitas roupas de Margene foram adquiridas em lojas baratas para mostrar que ela era uma mulher mais jovem e não tinha uma fonte de renda. Mas as roupas tiveram que ser reformadas inteiramente para caber no corpo de Ginnifer Goodwin. Até porque ela gosta de roupas acinturadas e tivemos que ajeitar para ficarem perfeitas. Mas quando a personagem arrumou um emprego e começou a ganhar dinheiro, começou a comprar roupas caras. Já as da Nicki, tivemos que fazer a maioria das roupas. É muito difícil encontrar peças desse tipo. Algumas das peças eu comprei nas comunidades ortodoxas judaicas e outras em Utah. As roupas mais arrumadas variavam. Às vezes, eu achava um vestido lindo do Elie Tahari e comprava quatro iguais para adicionar mangas e aumentar a barra da saia. Já os vestidos de poliéster usados nas comunidades polígamas foram feitos pelas mulheres que fugiram dessas comunidades.

Ao montar o figurino, você adaptou a maneira como as mórmons se vestem dando uma pitada mais fashion ou você foi fiel à realidade?
Eu tentei ser o mais fiel possível à maneira como elas se vestem. Mas as atrizes odiavam as roupas. A única coisa que eu cedia era acinturar um pouco mais as peças. Tanto no corte quanto colocando cintos ou laços de fita. Às vezes, colocava golas rendadas mais bonitas e fazia as mangas menos bufantes. Assim, elas se sentiam um pouco mais sexy. Porque é difícil tentar seduzir um homem em cena quando você está usando aqueles vestidos longos combinados com tênis e meias grossas

Em uma entrevista, Chl;e Sevigny disse que não usaria nenhuma roupa de Nicki. Você acredita que alguém que não seja mormón possa usar peças do figurino de Big Love?
Eu já estive em alguns eventos onde vi meninas com 20 e poucos anos usando vestidos vintage da Laura Ashley (marca americana que faz vestidos longos e floridos), tendo como referência a personagem interpretada pela Chl;e. Nós duas achamos muito engraçado. Mas eu sei que ela nunca gostou de usar as roupas da Nicki. E nós duas debatemos várias vezes sobre como se manter fiel ao personagem. O programa não é sobre Chl;e, a fashionista, é sobre o personagem dela. Se as roupas feitas para Big Love acabaram virando moda, isso não foi intencional. O objetivo era criar roupas para que as esposas representassem bem cada personagem e o passado religioso delas. Todos as roupas foram criadas para servir a história e ao roteiro.

Você recebeu algum retorno da comunidade mórmon?
Na segunda temporada, usamos 200 figurantes para uma reunião de uma família polígama. O patriarca Roman Grant ; pai da Nicki ; requisitou que todos usassem as roupas brancas feitas para serem usadas no templo. Fizemos todos os vestidos na paleta branca. Na época, não havia muitas referências sobre essas roupas sagradas usadas nos templos. Mas um dos figurantes conhecia uma mulher que cresceu em uma comunidade polígama no Utah. Ela foi ao set no dia da gravação e chorou quando viu as roupas, pois a representação era muito fiel aos vestidos usados por sua família nos anos 1990. Outro ponto polêmico foram as cenas em que os personagens participavam de cultos secretos dos mórmons urbanos. Nessas reuniões, os mormóns usam roupas especiais, que nunca foram mostradas em público, mas, mesmo assim, representamos os garment sagrados das cerimônias secretas. Pesquisamos muito para representá-las fielmente. Não há nenhuma imagem delas. Nós tivemos de convencer uma pessoa a emprestar a roupa para eu copiá-la. Fizemos exatamente igual. É uma roupa muito estranha. As mulheres usam véu e os homens, um chapéu bufante. Recebemos muitas críticas dos mórmons de Utah. Recebi diversos e-mails, mensagens de texto e mensagens no Facebook reclamando por termos exposto essas roupas. Eles preferiam que tivéssemos feito algo falso.