Quando se fala de irmãos mais velhos que ajudam na educação dos caçulas, logo se pensa naquela escadinha de idades ; uma turma de crianças traquinas chefiada por um líder. Essa imagem já não corresponde à realidade, visto que as famílias modernas não são tão numerosas. Ainda assim, ocorre de os pais precisarem de uma força do primogênito.
Esse é o caso de Yago Henrique Soares, 18 anos, responsável por levar e buscar os irmãos na escola e na natação. Como os pais são muito ocupados, o estudante de engenharia civil assumiu o transporte diário de Lucas Felipe, 9, e Beatriz Felipe, 6. ;Isso não atrapalha em nada minha rotina. Eu estudo de manhã e, por isso, a questão dos horários é tranquila para mim;, afirma Yago. Além disso, o garoto às vezes cozinha para os irmãos e, nos fins de semana, leva-os para passear no cinema ou no parque.
A psicóloga Letícia Lovato Dellazza-na explica que a situação de cuidado entre irmãos pode ocorrer de duas formas: a formal e a informal. ;No primeiro caso, os mais velhos são responsáveis pelo cuidado dos mais novos, executando tarefas que normalmente seriam dos progenitores, tais como alimentar, vestir, dar banho, levar ao colégio.; No segundo, os mais velhos somente auxiliam seus pais a cuidarem dos irmãos em atividades específicas da rotina familiar. ;Nesses casos, há a figura clara de um cuidador adulto. O irmão cuidador auxilia em algumas tarefas;, afirma.
O cuidado informal é representado por Sammya de Lavor. A estudante de direito de 19 anos saiu da casa dos pais quando tinha seis e foi morar com os três irmãos mais velhos. ;A gente morava em Picos, no interior do Piauí, e fomos, os quatro, estudar em Teresina.; Como irmãos normais, havia brigas, mas nada que fugisse do controle. ;Lógico que os mais velhos tentavam mandar no resto de nós, mas podíamos sempre recorrer a nossos pais;, conta. Onze anos mais tarde, Sammya passou do papel de cuidada para o de cuidadora, quando ela e seu irmão mais novo, que tinha 10 anos, começaram a dividir um apartamento.
Quando o cuidado formal extrapola as capacidades psicológica e econômica do tutor, há consequências negativas, como defasagem escolar e prejuízo do lazer. ;A defasagem acontece porque muitas vezes esses cuidadores têm que faltar aulas para cuidar dos irmãos. Sua atribuição principal na família é cuidar e não ir à escola;, analisa Letícia Dellazzana, a partir de dados coletados em sua tese de doutorado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). ;Os que vivenciam essa situação passam pelo período da adolescência de uma maneira muito diferente do que aquela que se aprende nos livros de psicologia;, complementa.
Trabalhando com famílias de baixa renda, a psicóloga teve um choque. ;Eu sabia que o cuidado de irmãos mais velhos por irmãos mais novos acontecia, mas não imaginava que adolescentes de 12, 13 anos ou até crianças mais novas ficassem envolvidos com atividades domésticas complexas, como cozinhar em fogão à lenha, por exemplo.; Outro aspecto que chamou sua atenção foi a carência generalizada de estudos sobre o temática. ;Embora essa seja a realidada de muitas crianças e adolescentes no Brasil, elas ainda são praticamente invisíveis aos olhos de grande parte da sociedade e dos pesquisadores da área;, afirma.
Quando tinha apenas 10 anos, a aposentada Elza Nogueira Cardoso, 67, precisou cuidar dos irmãos mais novos, devido à morte de sua mãe. A caçula da família tinha apenas dois meses. O pai trabalhava na roça, por isso saía de casa de madrugada e só voltava à noite, participando da vida familiar somente nos fins de semana. ;Éramos só eu e Deus;, conta Elza.
;Não tive infância, não tive boneca para brincar. Na verdade, minha boneca era minha irmã mais nova;, revela. As renúncias da aposentada não pararam por aí. Elza conta que só conheceu vida social anos mais tarde. ;Eu nunca tinha ido a bailes nem visto um homem dançar com uma mulher, até eu ficar maior.; Hoje, Elza tem 15 filhos. Dez, frutos de seu casamento, e outros cinco, presentes de seus pais. ;Os sacrifícios valeram a pena, porque fiz para os meus irmãos. Não foi tempo perdido, pelo contrário, ganhei muito.;
Unidos na adversidade
Arlete Lemes Silva, 67, tem uma história de vida que parece saída de um filme. Aos 12 anos, seu pai, político em Mato Grosso, foi cassado e fugiu. Passou 11 anos vivendo com índios e sem dar notícia. A mãe ficou instável emocionalmente e sem condições de cuidar das crianças. Ela e o irmão mais velho, de 13 anos na época, assumiram o papel de mãe e pai das três irmãs mais novas. ;Eu era a mãe delas e ele, o pai de nós quatro;, conta. Como se pode imaginar, a vida deles não foi fácil. Em busca de emprego, saíram do estado de origem e vieram para Brasília. Na capital, cada um foi para uma casa de família diferente, e Arlete ficou com a mãe, de quem cuidou até seu falecimento, dois anos atrás. Mesmo separados, sempre davam um jeito de se encontrar, fato que manteve a família unida.
Usando o que aprenderam com a mãe, antes dos problemas emocionais, Arlete e o irmão conseguiram criar bem as meninas mais novas. ;Aprendemos com nossa mãe a respeitar e zelar uns pelos outros;, conta. O irmão mais velho deixou para se casar mais tarde, há apenas 10 anos. Arlete hoje é faturista de uma clínica e retomou os estudos. Está cursando faculdade de administração hospitalar. As três irmãs mais novas estudaram e têm empregos estáveis. A família criou um blog para compartilhar as experiências de vida. Além disso, investiu em um micro-ônibus para viajarem juntos. Nele, aparecem os dizeres: ;Sou feliz porque estou entre parentes;.