Jornal Correio Braziliense

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Cicatrizes difíceis de curar

Ter o corpo queimado é uma das maiores dores pela qual o ser humano pode passar, tanto física quanto emocional. A Revista ouviu pacientes que com muita força, persistência e, sobretudo, paciência, superaram o sofrimento. E descobriu os tratamentos mais avançados

Acompanhar a rotina de pacientes queimados é chegar muito perto de situações extremas de dor, medo e angústia. Luta pela sobrevivência. E também de superação. A maioria das queimaduras é causada pelo fogo e seu poder dilacerador. Para trás, as chamas deixam um rastro de ardor que beira ao insuportável e marcas na pele muitas vezes indeléveis.
Para sempre, as cicatrizes podem deformar rostos e corpos. Elas serão a lembrança física de momentos de desespero ou situações de violência. ;Quem sofreu uma grande queimadura jamais será o mesmo. Passou por dúvidas, sofrimento;, garante a médica Maria Thereza Piccolo, uma das chefes do Instituto Nelson Piccolo, hospital especializado em atendimento a queimados.

A maioria das vítimas de queimaduras muito graves é obrigada a lutar bravamente pela vida. Conquistado esse primeiro desafio, tem que aprender a conviver com a nova aparência e com a morte simbólica do antigo corpo. Alguns encontram mais forças na reabilitação, que é difícil para todos. Outros tentam desistir. Acham complicado demais conviver com a dor. Por isso, precisam ser amparados por uma equipe de médicos e especialistas para ajudá-los a aceitar a própria imagem e as limitações físicas que podem surgir depois de um acidente.
Nessa batalha, contam ainda com os avanços da medicina, que reparam cicatrizes, devolvem movimentos e aceleram o processo de tratamento. Com as feridas físicas fechadas, os pacientes precisam curar as que deixaram marcas emocionais e as que ainda serão abertas por causa dos estigmas, preconceitos e rejeições que encontrarão pele frente. Uma recuperação que pode levar anos, mas é possível, sim, ter um belo final feliz.

O terceiro andar
Em Brasília, quem sofre queimadura tem destino certo: o terceiro andar do Hospital Regional da Asa Norte (Hran). Ali está instalada a Unidade de Queimados, que atende pelo SUS e é a única no Centro-Oeste considerada um Centro de Atendimento de Queimados de Alta Complexidade pelo Ministério da Saúde. Ao todo, no país, 38 hospitais merecem tal classificação.

A unidade recebe diariamente pacientes com diferentes tipos de queimaduras. Mais ou menos complexas. Algumas têm tratamento ambulatorial, com medicação, orientação e se curam com o tempo. Outras são graves, extensas. Precisam de internação, uma série de procedimentos cirúrgicos e anos de reabilitação.

No dia em que a equipe da Revista visitou o andar do hospital destinado à internação de queimados graves, 12 dos 16 leitos disponíveis estavam ocupados. O que levou aquelas pessoas a pararem naquele lugar eram histórias variadas. Havia crianças com braços queimados por causa de um descuido com panelas de água fervente. Outro garoto, com 10 anos, estava com o rosto inteiro sem a pele. A aparência muito vermelha, associada ao brilho das pomadas de tratamento, davam a impressão de que o pequeno sentia muita dor. O menino tinha uma expressão assustada, mal conseguia piscar os olhos por causa da ferida. Não falava nem demonstrava que desejava fazê-lo. A mãe, ao lado, agradecia a Deus o fato de ter o filho vivo, acidentado ao colocar fogo em uma lata que continha resto de querosene. Apesar da aparência, ele logo se recuperaria. Sua queimadura foi de 1; grau e a pele se recomporia normalmente. Fisicamente, tudo como antes.

É mais comum do que se imagina ter meninos e meninas no hospital com a pele destruída pelo fogo. Segundo Mário Frattini, chefe da Unidade de Queimados do Hran, 35% das vítimas de queimaduras são crianças com menos de 5 anos. As causas são variadas. Descuidos na cozinha, choques elétricos, brincadeiras com fogo. ;Cerca de 90% dos casos de queimaduras são por negligência ou imperícia de alguém: seja do paciente ou de outra pessoa;, acrescenta o médico.

Jovens e adultos, entre 20 e 30 anos, também se ferem por causa de descuido. Eles representam 15% dos internados graves. A manipulação inadequada de líquidos inflamáveis, especialmente álcool líquido, é uma das grandes ameaças para essa faixa etária. Muitos se queimam ao acender churrasqueiras ou soltar fogos de artifícios. Dormir alcoolizado com cigarro na boca também provoca acidentes. Ou ainda beber demais durante a festa e cair em cima de uma churrasqueira, como aconteceu com uma jovem paciente, grávida, que precisou ser internada.

Desequilíbrios emocionais e relações violentas também não só dilaceram a alma como queimam o corpo. Em média, 4% dos queimados atearam fogo em si mesmos ; Ou estavam sob efeito de drogas ou o desespero foi causado por algum transtorno psicológico. Uma senhora internada em estado grave queimou o corpo na tentativa de salvar o filho drogado que quis dar fim à própria vida ardendo em chamas. Ele morreu. Ela sentia as dores físicas e as da perda.

Não só ela. Há outros casos de autoextermínio. ;A maioria das mulheres que tentam se matar com fogo é por causa de histórias de amor malsucedidas. Isso tem um simbolismo muito grande. É como se elas quisessem destruir o corpo que não é objeto de desejo do outro;, analisa Tereza Helena Matos, psicóloga da Unidade de Queimados do Hran.

Sem falar nas tentativas de homicídios. Mais uma vez, a deformidade provocada pelo fogo ou agentes abrasivos e corrosivos como ácidos é representativa. Ao tentar agredir uma outra pessoa com materiais tão destrutivos, o objetivo é mesmo o de deixar uma ferida. Para sempre. No caso dos crimes passionais, é como se a cicatriz deixada pelo fogo fosse impedir que a pessoa tivesse qualquer relacionamento futuro. Seria sua penitência até o fim da vida. ;O fogo tem esse simbolismo muito grande, de destruir tudo, de não deixar nenhum vestígio;, comenta a psicóloga Fernanda Juliano, que atende no Hospital Nelson Piccolo de Goiânia o caso de uma criança que sobreviveu a uma tentativa do próprio pai se matar e matar os dois filhos queimados. O pai morreu. O irmão também. O garoto sobrevive com muito machucados. Por muitas vezes deixa claro que não sabe se quer continuar nessa luta.

Acidentes com diesel, raios em regiões descampadas, fiações clandestinas, uso descuidado de vela em casa e choques elétricos fecham a lista de causas de queimaduras que comprometem a vida de mais de um milhão de pessoas todos os anos no Brasil. Segundo dados da Sociedade Brasileira de Queimaduras, a cada ano, em média, são internadas 150 mil pessoas com queimaduras muito graves em todo país. Só no Hran são internados 250 pacientes durante o ano. Entre eles, 60% são homens. Cerca de 35% da queimaduras são causada por líquidos inflamáveis, sendo 20% pelo álcool líquido. ;Desses, 85% poderiam ser evitados;, avalia Mário Frattini.

Um novo corpo
Luciana Souza, 24 anos, era um bebê de 11 meses quando, inocente, colocou a mão em uma banheira de água fervente. Claro, não se lembra de nada, mas contam que desmaiou na hora, tamanha a dor. Moradora de um pequeno município no interior da Bahia, onde até hoje não tem luz nem água encanada, a cidade mais próxima para ter socorro era Bom Jesus da Lapa. Sem atendimento adequado e orientação, sua pequena mão não teve chances de se recuperar. Cresceu com dedos colados, envergados.

A jovem perdeu os movimento dos dedos e foi vítima da preconceituosa avaliação alheia. ;Me chamavam de aleijada. Tinha quem não quisesse fazer trabalho comigo na escola. O preconceito diminuiu um pouco depois que a professora me fez explicar o problema na sala de aula, na frente de todos;, conta. O sonho dela passou a ser ;ver a mão aberta;. Sem recursos para custear a cirurgia, veio morar com a irmã em Brasília quando descobriu que o hospital Nelson Piccolo faz parte do Núcleo de Proteção aos Queimados, que oferece cirurgias reconstrutoras gratuitas, graças a doações e trabalho voluntário de médicos e profissionais da saúde. Enfrentou a fila, hoje com 1.300 pessoas na espera, e conseguiu ser operada em outubro do ano passado.

Com ajuda de pinos e grampos ; e depois do corta e descola de pele e ossos ;, viu a mão ganhar novas formas. De lá para cá foram mais duas cirurgias de reconstrução. Emociona-se quando exibe a mão, ainda em recuperação. Hoje, já consegue ver os dedos, as unhas, que antes não cresciam , mas ;só ardiam e sangravam;. Agora, sonha com o dia que vai vê-las pintadas de esmalte. Faz fisioterapia três vezes por semana para ganhar flexibilidade e força nos dedos e aguarda mais uma operação para desentortar o dedo mindinho. Para Luciana, isso é o de menos. ;O que mais quero agora é voltar a estudar e a trabalhar;, conta sorridente.

A vida contada no relógio
O primeiro desafio é salvar a vida da vítima. E precisa ser rápido. Como maior órgão do corpo humano, a pele funciona como barreira das agressões externas e protege o organismo. Sem ela, aumenta consideravelmente o risco de infecções, perda de líquidos e outras substâncias vitais. Crianças com mais 10% do corpo afetado e adultos com mais de 20% já são considerados grandes queimados. O quadro é mais ou menos grave dependendo da profundidade da queimadura. A de terceiro grau é a mais perigosa. Destrói as camadas mais profundas da pele e deixa o paciente mais exposto a complicações.

;Há um risco de morte iminente devido à velocidade de perda de líquido. Por isso, precisamos agir rápido, caso contrário a pessoa entra em colapso;, explica José Adorno, cirurgião plástico da Unidade de Queimados do Hran. O paciente precisa ser hidratado com soro. Para manter a vida dele, começa uma batalha contra o tempo. As 48 primeiras horas são decisivas. ;Com a queimadura, você tem uma destruição de células e tecidos que causam uma série de desequilíbrios no organismo. Isso provoca uma reação inflamatória grande. Para poupar o cérebro e o coração, pode ocorrer uma insuficiência renal aguda e os pulmões se encherem de água;, explica o médico Mário Frattini.

Uma equipe de clínicos, pediatras, anestesistas, cirurgiões e enfermeiros se empenha em estabilizar a condição do queimado. Feito isso, é hora de fechar a ferida. É preciso acabar com a dor. Medicamentos antibióticos ajudam nessa tarefa, mas o processo de cicatrização é sinônimo de sofrimento físico. Isso porque a ferida precisa ser limpa e retirada a pele necrosada. O processo dói. E muito. Não é incomum ouvir gritos nos corredores do hospital durante a limpeza, que se torna periódica. É o chamado debridamento.

;Antes imaginava-se que não deveria mexer na ferida e nem podia abafá-la. Hoje se sabe que é preciso evitar a formação da casca. Se o local está úmido, facilita a migração das novas células, responsáveis pela regeneração da pele;, explica a média Thereza Piccolo, especialista no tratamento de queimados. Por isso, os queimados precisam ser enfaixados e as cascas formadas sobre as feridas retiradas constantemente. O processo pode durar dolorosos dias.

A nova pele
Imagine uma pele queimada. Ela está morta e deve ser descartada. Se comprometeu apenas a epiderme, a camada mais superficial, regenera-se com o tempo. O problema é quando afeta camadas mais profundas, como a epiderme, destruindo vasos sanguíneos e terminações nervosas. Nesses casos, a pele não se regenera sozinha. Daí a importância dos avanços da medicina e seus substitutos de pele. ;Há 50 anos, quem queimasse de 40% a 50% do corpo estaria morto. Hoje, conseguimos recuperar lesões de até 85% de comprometimento. O nosso grande desafio agora é conseguir fechar o paciente o mais cedo possível;, alerta Adorno.

Após o quinto dia de tratamento, começam as infecções e, com isso, mais uma vez o perigo da morte. Cobrir a ferida é essencial e nenhum substituto é melhor para a pele que a própria pele do paciente. Por isso, são feitos os enxertos. Retira-se camadas de pele não comprometidas da barriga, da coxa e da cabeça e coloca-se os retalhos nas áreas queimadas. Isso significa mais cirurgias e mais cicatrizes. Mas é a solução.

Os enxertos são sequenciais. A cada 15 dias, em média, retira-se a pele das áreas doadoras. Enquanto espera, a ferida precisa estar protegida pelos substitutos temporários de pele, os chamados curativos biológicos, que melhoram a condição do paciente até ele receber os pedaços da própria pele. Hoje, estão disponíveis algumas opções: a pele de cadáver, a de rã ou a sintética. A de cadáver ainda não é uma rara realidade no Brasil. O mais famoso Banco de Tecidos Humanos foi inaugurado em 2005, na Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre. Mas eles ainda não conseguem atender à demanda de queimados no país. Faltam doadores. Em 2008, foram apenas 11, no ano passado o número praticamente dobrou. A expectativa é de que em 2011 eles consigam pelo menos 30 doações.

Médicos afirmam que a dificuldade em conseguir família que doe a pele de seu parente morto é o medo de ter o corpo da pessoa machucado. Pura falta de informação. ;Retira-se somente uma camada fina de pele na coxa e na parte posterior do tórax. Depois coloca-se um curativo, sem desfigurar o cadáver;, explica o cirurgião plástico Alfredo Gragnani Filho, professor de cirurgia plástica da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo e coordenador técnico da Unidade de Tratamento de Queimaduras da Unifesp.

A pele de rã é usada no Hospital Nelson Piccolo, centro de referência em atendimento aos queimados em Goiânia desde a década de 1970 e que abriu suas portas em Brasília em 2008. Quem olha o curativo feito com a pele do réptil estranha a cor e a textura cobrindo uma parte do corpo humano. Mas é temporário. Depois de alguns dias, com a ferida mais amadurecida, o curativo é retirado e substituído pelo enxerto de pele de gente.

Se a camada mais profunda da pele é destruída, não adianta usar uma camada fina de pele para cicatrizar o machucado. Se não tem superfície de contato, onde o enxerto vai irá aderir? ;De nada adianta colocar a epiderme sobre carne viva. Nesse caso é preciso ter uma matriz dérmica, que substitua a camada mais profunda da pele que foi queimada;, explica o cirurgião David de Souza Gomez, chefe do Serviço de Queimaduras e diretor do Serviço de Cirurgia Plástica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP.

A matriz dérmica, a qual o médico se refere, é importada e muito cara. É a chamada pele artificial. Funciona mais ou menos assim: trata-se de uma película de colágeno natural, derivada do tendão de porcos. Ela tem a textura de uma esponja, coberta com um filme de silicone. Pequenos retalhos são implantados na ferida e após uma semana, há uma infiltração de células reconstrutoras da pele e capilares sanguíneos, que passam pelos buraquinhos da esponja. Começa então a formação de uma nova derme. Depois, é só tirar o filme de silicone externo e realizar um enxerto cutâneo bem fino para cobrir a ferida de vez.

O problema são as cifras do tratamento. Um retângulo da pele artificial, de medidas modestas, de 10x12 cm pode custar 13 mil reais. Não está acessível a maioria dos acidentados, em geral, pessoas de baixa renda.

;O corpo queimado também pode ser belo;
Aceitar o próprio corpo depois de sofrer uma queimadura exige equilíbrio. Cada personagem de um acidente com fogo busca mecanismos muito próprios para aceitar a nova imagem. O dançarino Giovane Aguiar, 40 anos, encontrou na dança uma forma de exibir seu tronco marcado sem receios. Quando tinha 7 anos, foi se livrar de uma caixa de marimbondos ateando fogo nos insetos. Uma rajada de vento mudou o rumo do fogo e transformou para sempre a história do garoto. Cerca de 40% do seu corpo foi queimado. Ele passou mais de um mês internado no Hospital de Base, naquela época o único local preparado para cuidar desse tipo de ferimento.

Daquele tempo, só tem lembranças doloridas. ;O tratamento doía demais. A gente tinha que entrar em uma banheira para limpar o machucado. Uma vez arranquei todas as cascas com a mão para não precisar tomar aquele banho;, lembra. Para aumentar o sofrimento, teve de ficar isolado, por causa do risco das infecções, e ver a família por mais de 47 dias através de um vidro.

No corpo, as cicatrizes ficaram. A pele mais enrijecida, no entanto, não impede em nada os movimentos livres e flexíveis de um dançarino. Justamente isso ajudou Giovane a aceitar sua imagem. ;Na adolescência, a queimadura me descolou do coletivo. Não me reconhecia. Segui caminhos diferentes das outras pessoas da minha idade. Estava procurando resposta para minha vida. Tudo isso tem a ver com o acidente;, conta. ;Tinha uma solidão muito grande dentro de mim. Não atribuía minha dor ao fogo, mas às pessoas. Como não me abria muito, a dança me conectava com os outros.;

Em 1996, ele resolveu dividir sua experiência com outros que padeciam do mesmo sofrimento. No Hran, coordenou a Oficina de Contato e Improvisação, um projeto de reabilitação para pessoas queimadas. Era uma maneira de entrar em contato com a própria ferida, exibi-la e aceitá-la. O momento de se tocar e tocar o corpo marcado do outro. Mostrar àquele grupo de pessoas que era possível retomar a vida. ;Quem sofre uma queimadura sofre uma agressão e não está aberta para o mundo. As pessoas chegavam para os encontros usando golas altas, blusas de mangas compridas. Algumas nunca tinham experimentado um contato afetivo;, comenta. Depois da oficina, descobriam que a cicatriz também podia ter sua estética própria. ;As pessoas nunca imaginavam que um corpo queimado também pudesse ter a sua beleza.;

Cuidando das marcas
A alta do hospital e a volta para casa pode ser um árduo recomeço. As cicatrizes provocadas pela queimadura mudam a vida para sempre. Não apenas porque diante do espelho se vê um corpo diferente, mas porque elas causam limitações físicas e emocionais. O tratamento clínico de uma queimadura exige sessões de terapia ocupacional e fisioterapia ao longo de meses. Tudo para que a pele não grude, enrugue, impeça os movimentos, cause problemas de crescimento nas crianças. A pele cicatrizada não tem a mesma flexibilidade de uma normal.

O ambulatório do Hran atende, todas as terças-feiras, a uma fila de pacientes que foram acompanhar o processo de cicatrização. Muitos têm que fazer inúmeras cirurgias para descolar a pele, liberar os movimentos ou permitir o crescimento do corpo. O cirurgião José Adorno, por exemplo, para a entrevista para receber uma adolescente. Queimada na região do tórax, ela foi à consulta avaliar o expansor colocado debaixo da pele, na região do colo. No caso dela, a técnica vai, literalmente, esticar o tecido sadio e permitir o crescimento dos seios, comprometido pela rigidez da cicatriz de queimadura.

Para atenuar as cicatrizes, que tanto estigmatizam, a médica Thereza Piccolo alerta que é preciso disciplina. ;Quando você tem uma lesão, milhares de sistemas são ativados. A cicatriz vai acontecer com ou sem sua intervenção. Por isso, o ideal é você provocar a desativação gradual desses sistemas e conduzir a movimentação das células de cicatrização;, explica. Assim, a cicatriz que se forma será mais suave, mais uniforme. Para tanto, o paciente terá de usar, por meses, malha compressora de látex com elastano, roupas com silicone, além de passar por sessões de massagens. Também é preciso se proteger contra os raios de sol e hidratar muito a pele. O problema é que nem todos têm dinheiro ou persistência para seguir as indicações.

O processo é demorado. Exige paciência. Persistência. O jovem Alisson Barbosa, 13 anos, há pelo menos 2 anos não sabe o que é brincar na rua, andar de bicicleta, jogar bola com os amigos. Desde 2008, quando se queimou ao tentar derreter um fio de cobre, não pode usar outra roupa que não um macacão branco de mangas longas e pernas compridas. O rosto também fica todo coberto, com capuz e uma malha compressora. A indumentária é uma das formas de protegê-lo do sol e tentar atenuar a aparência da enormes cicatrizes que têm nas coxas, no rosto e nas costas. Ele usava álcool para fazer o fio queimar. Foi quando tudo explodiu. ;Ardia demais. Só pensava em entrar debaixo do chuveiro. Foi quando me olhei no espelho e fiquei paralisado. Não me reconhecia;, diz o garoto, com uma maturidade surpreendente para a idade.

A partir desse dia, Alisson nunca mais veria seu rosto como antes. A roupa, que lhe rendia piadas na rua, já não precisa mais ser usada, mas ainda não pode tirar a máscara, que só deixa os olhos à mostra. Fez uma cirurgia recente para colocar pele nova no lugar. Vai ter que esperar mais um tempo. No começo, os amigos zombavam. Não entendiam porque ele se vestia daquele jeito. ;Antes, eu queria voltar a ter minha aparência normal, tinha medo de as pessoas não gostarem de mim assim. Mas, depois, conheci tantos casos piores que o meu no hospital que me conformei;, diz o garoto que, quando soube que ia dar a entrevista a um jornal, fez um pedido. ;Todo mundo vai ler? Coloca aí que as crianças não devem brincar com álcool. É muito perigoso.;

Ele ainda tenta se recuperar das sequelas deixadas pelo fogo. O pulmão e a traqueia ficaram comprometidos. Alisson respira e fala com dificuldade por causa da traqueostomia. O pele do pescoço ficou rígida demais e retrai os movimentos. Sente dor por causa da última cirurgia. Também não pode voltar à escola. A professora vai até a casa dele graças a um projeto de atendimento domiciliar aos queimados em Goiânia. Só não perdeu a alegria de viver. ;Desde pequeno, nunca gostei de ficar triste;, ensina.

A servidora pública aposentada Eride Ioshie Hokumura também não se abateu durante a cicatrização das feridas nas pernas, pé e colo ; resultado da explosão de um botijão de gás na noite de Natal. ;Sempre falei para minha família, para minhas amigas: ;vou voltar a ser como era;;, conta. Dona de uma fé e um autocontrole singular, ela relembra que, apesar da dor e do sofrimento do tratamento, em nenhum momento se abateu. O acidente aconteceu no mesmo ano que Alisson se queimou. Só agora Eride se livrou das roupas, luvas de moletom brancas e da máscara no rosto. ;Nem me importava. Ia para todos os lugares daquele jeito;, conta.

Para ela, mais do que chamar atenção pelas roupas, o importante era recuperar a pele queimada. Vaidosa, queria ficar sem as cicatrizes. Hoje, quem a vê não acredita que teve 54% do corpo queimado, passou por inúmeras cirurgias, teve complicações, ficou internada por dias. O rosto tem pele alva, sem manchas, nem rugas, que seriam bem aceitas para seus 64 anos. A cicatriz do braço é clara. Só reparando muito para notar uma suave diferença de textura na pele. Pés e pernas foram os locais mais comprometidos. Eles receberam enxerto de pele da cabeça, por isso apresenta uma leve diferença de cor onde os retalhos foram aplicados. Nada demais para quem quase perdeu a vida. ;Mas tenho certeza de que vai clarear mais.;

A confiança e cuidados com a cicatriz diminuíram muito o trauma físico de Eride. Cuidadosa, ela fazia massagem e fisioterapia para não comprometer os movimentos; fugia do sol e nunca dispensou os cremes e protetores indicados para seu caso. ;As pessoas precisam entender que tudo se supera. Quando me queimei, eu mesma chamei os bombeiros, entrei no chuveiro e via minha pele do braço soltar os pedaços. Ainda assim, tinha certeza de que ficaria boa;, relembra.

Se Eride que apagar qualquer vestígio da queimadura, ela usa maquiagem especial. Daquelas de cinema, que não saem na água, não causa danos a pele e tem duração de muitas horas. Não só ela, mas outras mulheres encontram nos cosméticos uma maneira de se olharem diante do espelho e recuperar a autoestima. O Núcleo de Proteção aos Queimados, em Goiânia, por exemplo desenvolveu o Projeto Thez, que oferece oficinas de maquiagens às pacientes e as ensina a cobrir com pós e bases a ferida que dilacera o amor próprio. ;É impressionante ver como elas mudam a relação com o corpo, com o parceiro depois que conseguem diminuir a cicatriz;, avalia Rosa Serafim, uma das coordenadoras do grupo.

;Tive que amadurecer;
Uma visita despretensiosa a um prédio em construção, apenas para mostrar a vista da cidade a uma amiga que morava fora, e Eliseu Egewarth, 16 anos, nunca mais seria o mesmo. Do acidente, que aconteceu em 2005, não se lembra de muita coisa. Só tem noção de ter tomado um choque muito forte e acordar no hospital. Naquela época, a família morava em Fonte Boa, no interior do Amazonas, onde só se chega de barco ou de avião. A mãe desesperou-se ao ver o braço do menino com aparência de ;plástico derretido;. Correram para Manaus. O menino ficou 10 dias na UTI.
O choque atravessou o corpo em diagonal. Queimou o braço direito e saiu no pé esquerdo. Por sorte, o menino sobreviveu. As sequelas, porém, foram inevitáveis. Cicatrizes na perna, um dedo do pé amputado e o braço perdido. Eliseu não reclama do destino. Diz apenas que teve que se readaptar a fazer as coisas com uma mão só. Reaprendeu a andar de bicicleta com um braço, a escrever e comer com a mão esquerda. Quando está de folga, joga tênis com o irmão. De resto, é tudo rotina de um típico adolescente. A mãe dele, Ana França, se preocupa com seu emocional. O menino dá um banho de maturidade. Diz ser feliz assim e não se sente pior que ninguém por ter sido amputado. ;Tive que amadurecer mais cedo e aceitar que ia perder o braço;, conta o adolescente com simpatia e tranquilidade.

A aceitação nem sempre fácil
Episódios de tristeza e depressão são comuns em quem tem o corpo queimado. Acompanhamento psicológico e até psiquiátrico se torna necessário na maioria dos casos. A psicóloga Fernanda Juliano, do grupo Nelson Piccolo, afirma que nem sempre a aceitação é fácil. ;Eles se culpam pelo que aconteceu. Querem um motivo que justifique a queimadura. Muitos acreditam que estão sendo punidos.; Ela diz que o objetivo das consultas é diminuir o sentimento de penalização e oferecer instrumentos para a retomada da nova vida. ;Muitos usam a cicatriz como muletas para seus problemas.;

Fernanda acrescenta que homens e mulheres enxergam as marcas na pele de maneira diferente. Elas, como a destruição da autoestima, do amor próprio e um repelente ao amor alheio. Já eles se preocupam com a volta ao trabalho. Se não há impedimento físico causado pela ferida, há o preconceito de ter uma aparência diferente. Isso amedronta na hora de disputar um emprego.

Culpa e revolta são sentimentos que dominam pessoas dilaceradas e mutiladas pelo fogo. Se o paciente é criança, os pais se penitenciam. Acham que podiam ter evitado o acidente. Se sentem responsáveis, e a sociedade reforça a cobrança. ;Como deixaram aquilo acontecer com uma criança tão pequena?;, julgam. Por isso a família também necessita de suporte emocional. Precisa prender a lidar com a nova fisionomia daquele parente e com as complicações que ele possa vir a ter. A cicatriz muitas vezes causa espanto e repulsa em quem a enxerga apenas como um problema estético. ;A deformidade assusta qualquer pessoa. Trabalhamos com o paciente para aprender a lidar com a ignorância dos outros;, comenta Fernanda.

No consultório da psicóloga Tereza Helena Matos, responsável pelos atendimentos no Hran, passam muitas histórias de dor e recomeço. Um pai leva a filha de 3 anos para a consulta psicológica. A menina tem o rosto coberto de cicatrizes, como se fossem bolhas. Ela desenha, enquanto Tereza conversa com o pai. Ele é o que mais precisa de alento para conviver com seus fantasmas. Se sente responsável pelo que aconteceu com a menina. Foi fazer uma ligação direta no carro e o veículo explodiu. A criança estava presa no cinto e se queimou muito antes de ser resgatada.

A psicóloga também se depara com casos de negligência doméstica, crianças com dificuldades de voltar para a escola, adolescentes com distúrbios de autoimagem. ;A queimadura provoca um desconhecimento da imagem corporal. Mexe com a beleza, com a estética. O culto ao narcisismo é muito grande e isso transforma os queimados em um exército de excluídos;, afirma Tereza.

A adolescente Alinéia Mota, 17 anos, tem os olhos verdes, e os cílios enormes. Um rosto de boneca. Mas nem sempre se sentiu segura, bonita. Sofreu muitas vezes o preconceito por ter uma cicatriz na coxa, outra no couro cabeludo (que impede o crescimento do cabelo na parte lateral da cabeça) e por não ter um braço. A mutilação foi consequência de uma queimadura que sofreu quando tinha um mês de vida. De origem simples, morava em uma casa de palha no interior do Maranhão. Sozinha em casa com uma outra criança, teve sua vida transformada para sempre quando uma vela caiu na rede em que dormia. Pegou fogo em tudo, mas ela sobreviveu.

Alinéia perdeu as contas de quantas cirurgias já vez. Nunca se conheceu com outra aparência. Diz que não quer colocar prótese e se aceita como é, mas já teve medo de não namorar, de não ter amigos. Certa vez até quis abandonar a escola. ;Uma menina tropeçou em mim e disse barbaridades porque eu não tinha um braço. Foi muito marcante;, relembra com mágoa. ;Não gosto que me vejam como coitadinha. Você não pode definir uma pessoa pela aparência dela.;

Às vezes, adolescentes são cruéis com comentários e avaliações. Ela conta que superou os preconceitos ao se relacionar com pessoas mais velhas, ;que realmente gostava de mim;. Já teve namorados, tem amigos e agora investe nos esportes. Alinéia treina atletismo na UnB. O próximo objetivo é estudar psicologia na mesma universidade e ;ensinar as pessoas minha lição de vida;.

O alto custo do tratamento
O tratamento de queimaduras é caro e muito longo. Em 2000, o Ministério da Saúde criou uma portaria para normatizar o atendimento a queimados nos centros de referência no país. Em Brasília, o atendimento no Hran é custeado pela Secretaria de Saúde do Distrito Federal, com verba repassada pelo SUS. A burocracia e o limite de verba, no entanto, muitas vezes atrasa o tratamento. Há filas para cirurgias reconstrutoras e, muitas vezes, o paciente espera pela malha compressora (essencial para evitar a deformação das cicatrizes) e dos expansores (importantes especialmente para pacientes em fase de crescimento, que precisam expandir a pele).

Para ajudar os pacientes, a Associação dos Portadores de Sequelas de Queimaduras (Aposeq), que funciona no Hran, acaba de ceder à Secretaria de Saúde do DF máquinas de costura e mobiliários (doados à Associação em 2007) para que sejam confeccionadas as malhas compressoras. Muitos pacientes reclamam da demora em recebê-las e, quando recebem, no caso das crianças, às vezes, nem serve mais. Um costureiro já foi treinado e, com o apoio do Hran, espera-se que nos próximos dias sejam confeccionadas e distribuídas as malhas para quem não pode pagar por elas.

A Aposeq oferece ainda filtro solar (com fator de proteção acima de 30), e óleo hidratante aos pacientes mais humildes, além de ajudar com as passagens para que consigam ir ao hospital fazer o tratamento ambulatorial. A Aposeq trabalha com doações. Quem quiser ajudar é só ligar para 3325 4226.

Chance de reconstruir a aparência
Livrar-se das cicatrizes é o sonho de muitos pacientes queimados. Os avanços da medicina, das cirurgias e dos tratamentos de queimaduras já possibilitam a realização desse desejo. A jovem Ivana Indiara de Souza, 29 anos, há 20 se dedica a tratar das cicatrizes que marcaram seu tórax até a altura do queixo. Quando tinha 9 anos, foi colocar fogo em uma lata de cera e a mistura explodiu. O corpo ficou marcado, deixou uma enorme cicatriz, que impediu o crescimento dos seus seios. ;Quando criança, não me importava, colocava biquíni. Na adolescência, comecei a namorar e sentia vergonha do meu corpo. Não tinha coragem de mostrá-lo;, conta.

A primeira fase do tratamento levou quase um ano para recompor a pele. Depois começou a etapa de reconstrução. Ela queria seios e uma pele sem marcas. Para isso, se submeteu a técnica de expansão de tecidos. A ideia é aproveitar a capacidade da pele de se expandir, como acontece na gravidez, e usar o excedente para produzir retalhos. Para conseguir tal façanha, são implantadas, por meio de um cirurgia, uma bolha de silicone debaixo da pele sã, ao lado cicatriz.

;Conectada a uma válvula, a bolha vai sendo expandida, em geral, durante três a seis meses. Quando a capacidade do expansor é atingida, ele é retirado e o retalho de pele que se formou pode ser usado para substituir uma parte da cicatriz. Depois de três meses, a operação pode ser repetida. No final, sobra apenas o sinal da linha de sutura;, explica Thereza Piccolo.

Ivana chegou a usar sete expansores de uma só vez. Além de incômodos, eles resultam uma aparência no mínimo curiosa aos olhos de quem desconhece o tratamento. O paciente leva consigo, debaixo da pele, enormes bolas, em diferentes partes do corpo. Mas a moça nem se importava. Se esse era o preço para ter uma nova pele, estava disposta a pagá-lo. ;Andava no ônibus com aquilo no corpo e as pessoas se afastavam, saíam de perto. Eu achava bom porque deixavam o lugar vago para eu me sentar;, brinca.

Ao todo foram 29 cirurgias, incluindo a de reconstrução da mama. Hoje, Ivana aceita bem o corpo. Se sente muito feminina. Das cicatrizes, só restaram as emendas dos enxertos. ;Enquanto puder fazer cirurgias para melhorar e aumentar minha autoestima, vou fazer. A gente se sente tão bem, tão maravilhosa que o resultado não é 99% é 110%;, avalia a moça, que está grávida de oito meses.