Aos 70 anos, Maria Alice Vergueiro virou a musa da geração da internet. Protagonista de o Tapa na Pantera, o primeiro vídeo brasileiro que fez sucesso no YouTube, ficou conhecida nacionalmente em uma velocidade nunca vista. Nesses cinco anos de fama cibernética, sua vida mudou bastante. Maria Alice enfrentou um câncer na garganta e agora lida com o Parkinson, que acabou por colocá-la em uma cadeira de rodas. Com a atuação, aprendeu a lidar com os percalços. ;Foi por causa de uma peça que eu consegui lidar com a palavra ;câncer;, por exemplo;, contou à Revista.
Maria Alice morou em Brasília nos últimos três meses por causa da peça As três velhas em que atua e dirige. O espetáculo conta a história de duas marquesas decadentes e octogenárias: Melissa (Luciano Chirolli) e Graça (Pascoal da Conceição). Elas vivem isoladas em uma mansão em ruínas, devastadas pela fome e pelo abandono, sempre vigiadas pela criada Garga (Maria Alice Vergueiro). A peça mistura riso e tragédia em um gênero inesperado, batizado pelo próprio Jodorowsky de melodrama grotesco.
Hoje é a última apresentação da peça na cidade. Ela vai embora amanhã totalmente apaixonada por Brasília. Agora, planeja os próximos passos com o grupo de teatro Pândega, que criou há três anos. Ela reuniu atores de todas as gerações no novo projeto. A fase é perfeita para aliar a sua vasta história no teatro nacional com a geração YouTube. Nesta entrevista, falou sobre como o Tapa na Pantera mudou a sua vida, como não se adaptou ao estilo Rede Globo e como seleciona atores pela internet. Além disso, mostra-se uma defensora ferrenha da reformulação dos direitos autorais por conta da propagação de conteúdo na internet. Fala de tudo um pouco e decreta: ;Eu não sou celebridade;.
Como é a relação do público brasiliense com a peça As três velhas?
Essa é a minha primeira temporada em Brasília, mas eu já estive aqui outras vezes. Estou gostando muito. E estou sentindo que é recíproco: Brasília está gostando de mim (risos). Há um tipo de público que se entrega antes da piada. Antes de começar, ele taxa a peça de comédia besteirol e o riso fica instantâneo. Esse público nem sempre chega ao fim no mesmo ritmo: começa rindo e, no fim, vai ficando mais sério. Mas eu gosto mais do público que você ganha desde o início. É isso que eu estou sentindo em Brasília. Vocês são difíceis de começar a fazer rir. Você trava uma batalha: será que estou agradando? Mas Brasília tem um público novo e exigente. Aqui é mais desafiante. O público lota, mas não vai rindo fácil. Quando você chega no fim e vê a plateia de pé, pensa: ;É desse público que eu gosto. O público que eu conquisto;.
Essa difícil entrega dá um ritmo diferente à peça?
Claro. O espetáculo teatral só acontece quando existe uma interação com o público. Não é igual à televisão, que, quando você assiste, o programa já foi gravado. Então você pode desligar, assistir de pijama e conversar com a pessoa do seu lado. O teatro é um ritual. Quem vai ao teatro se predispõe a assistir a um espetáculo. Uma coisa é ver o Thiago Lacerda na televisão, outra coisa é vê-lo ao vivo.
De todos os tipos de interpretação, o teatro é o seu favorito?
Olha, cinema não tive muita oportunidade de fazer. Eu acho que seria conquistada pelo cinema. Mas tive poucos convites para trabalhar nessa área. Vejo o cinema como uma arte industrializada. Ela tem que contar com o fenômeno de lucro. Não sou celebridade ainda. Eu sou atriz de curtas metragens, de alunos que saem da escola. Todos me querem (risos).
Quem sabe depois do sucesso da peça você não é chamada para um filme?
Eu adoraria fazer um filme depois da peça. Mas aí eu preciso saber quem vai dirigir, qual o enredo, porque eu me influencio muito com a turma. Eu ia fazer um filme recentemente que tem uma história engraçada. O diretor, Roberto Moreira, me queria para o papel de uma síndica maconheira. Depois do sucesso do Tapa na pantera surgiram vários convites para eu fazer a mesma personagem. Eu disse que ia fazer, porque eu fumei ;(ela quer dizer filmei) (risos). Mas eu fumei mesmo(risos). Minha participação era curta e fiquei apenas cinco dias filmando. Roberto foi lá em casa um dia, muito tempo depois, assim que tinha terminado o longa. Ele me disse que não ia poder me colocar no filme: ;Você vai ter que me perdoar, mas durante a montagem, quando chegava na sua parte, todo mundo caía na gargalhada. Com a sua participação, virou outro filme;. Mas não sei como seria uma síndica maconheira que não faz aquelas estripulias que eu fiz. Foi aí que eu percebi que eu tinha que ser cúmplice do diretor antes de o filme começar. Tenho que entrar na direção e saber o que ele quer do filme. Ele me pagou um cachê legal, mas não apareci no filme; Mas isso não acontece só no cinema.
Já aconteceu na televisão também?
Sim. Eu fiz uma participação especial naquela minissérie da Globo Afinal, o que querem as mulheres?. Fui para o Rio de Janeiro, filmamos a cena, foi perfeito. Só que, na hora de assistir na televisão à série, descobri que a minha personagem tinha caído. Colocaram a Eliane Giardini no meu lugar. Não sei por que me tiraram. Acho que chamei muita atenção, mas eles não me falaram isso. Eles não me falaram nada (risos)! Não me pediram nem desculpas. Mas eu nem sei se precisava. Pagaram o meu cachê e tal.
Mas por que você aparece tanto na câmera? Essa característica é bem aceita no teatro?
A linguagem é diferente. Na televisão, quanto menos melhor. Mas eu chamo muita atenção no teatro também. É difícil eu entrar em uma personagem naturalista. Se tivesse que interpretar uma mulher tomando café em um restaurante, teria que olhar para um lado e para o outro. Mas eu não faço isso. Não é porque eu não queira. Não dá. Quando falam gravando, eu faço uma pose e faço uma expressão marcante. Ainda faço uma pausa enorme. Na televisão, é tudo rápido e eu faço no tempo do teatro. Outra coisa: eu gosto de me meter muito na história. Quando vejo, já estou dando conselho para o diretor. Aí já quero fazer outro filme. E o cara já acha que está na hora de eu ir embora. É sem querer, eu quero colaborar. Mas ele se sente ofendido (risos). Sou mais de teatro de grupo, onde essa característica não atrapalha.
Como essa característica te ajudou na direção da peça As três velhas?
Nessa peça, eu colaborei. Todo mundo meio que dirigiu. Como estou dentro da história, fica muito difícil sair e ver o todo. Preciso interagir com os colegas. Descobri a personagem interagindo. Meus colegas, tanto de fora quanto de dentro do palco, me davam alguma dica. Não tinha essa: o diretor fala e a última palavra é dele. Nós fomos descobrimos um método juntos. De uma forma meio empírica.
Como você está dando conta da rotina de quatro a seis apresentações por semana?
Isso de a gente ficar cansada é uma coisa relativa. Às vezes, termino o espetáculo animada. Até gosto de fazer o segundo espetáculo. Pode ser que eu sinta, às vezes, na hora de cantar (a gente canta no espetáculo), me falta um pouco de fôlego. Mas eu também tenho que me cuidar mais, fazer umas inalações e tomar cuidado com a voz. Afinal, não tenho 20 anos, embora pareça (risos). Eu me estimulo porque o teatro me estimula. Toda vez que termino de fazer a peça, a equipe chega perto de mim e me dá a ideia se foi ou não bom.
Sempre que te mencionam em algum artigo, escrevem: Maria Alice Vergueiro, a Tapa na Pantera. O vídeo te marcou como marcou uma geração?
Não me dei conta logo no início. Eu não tinha computador e nunca imaginei que saberia o que era YouTube. Para mim, foi como o meu avô recebendo a notícia que o rádio tinha chegado. Lembro que saí gritando: ;O rádio chegou, vovô!’. Ele me dizia: ;Larga de besteira, onde já se viu que o que se fala aqui, se escuta lá;. O computador para mim era um pouco isso. O celular já estava difícil para mim, não que hoje seja fácil. Mas eu não me dei muito conta do que seria. Me falavam: ;Mil pessoas te viram de ontem para hoje;. Achei estranho, embora tenha achado interessante o trabalho, mas acho que já fiz coisas mais interessantes.
O vídeo te abriu portas?
Acho que sim. Vocês chegaram até a mim não por causa da peça As três velhas, mas por causa do Tapa na Pantera. É normal isso. Ao lado disso, surgiu uma abordagem na rua muito legal. As pessoas não me puxam na rua como se eu fosse a Marília Pêra ou a Fernanda Montenegro. Ficam perto de mim rindo, demoram para falar comigo. Sempre falam: ;Você não é do Tapa na Pantera?;. E riem. Tenho a impressão que pegam uma cumplicidade comigo. É como se eu tivesse revelado uma coisa que uma avó não pudesse falar.
Isso é por causa da plataforma do vídeo ser a internet ou por conta do texto em si?
A cumplicidade é por conta do vídeo caseiro, como se fosse videocassetada. Ele tinha essa narrativa. Era uma coisa de brincadeira em casa. De repente, surgi com uma proposta em que as pessoas ficavam entre achar que era de verdade e achar que era uma atriz. A frase no início, ;isso é uma obra de ficção;, causava essa confusão. Acho que foi mais aí que pegou a moçada. As pessoas queriam saber se tinham me pegado no flagra. Acho que tem uma coisa dessa avó ser mais jovem do que muito jovem. Porque ser jovem é você estar disponível para uma mudança.
A sua família aceitou com a mesma cumplicidade o vídeo?
A minha netinha na época estava com 10 anos. Ela, então, escutava essas risadinhas ocultas. E ficava perguntando: ;O que é essa pantera, vovó?;. Eu não pude falar porque meu filho não me permitiu. Ele não queria ainda abordar o assunto de drogas com ela. Mas agora ela tem 15 anos e sabe o que é a pantera. Outra dia ela chegou para mim e disse que ganhou R$ 50 de um colega porque ele não acreditou que a Tapa na Pantera era avó dela (risos). Agora virou piada.
Os cineastas jovens são sempre encantados com o seu trabalho. Você também gosta de trabalhar com diretores mais jovens?
Adoro! A faixa etária que está fazendo o primeiro filme tem um frescor. O talento é bruto. Às vezes, nem tem muito talento, mas a vontade de fazer é enorme. Eles têm um respeito por mim. Eles, por exemplo, nunca me tirariam de um projeto, como aconteceu com a Globo. Acho que eles me dão valor. Ou também pode ser a hipótese de que eles não me pagam nada (risos). Não cobro cachê dessa turma saindo da escola. Tem essa história também que eu não vou colocar banca como o Fagundes. Até porque eu acho que o Fagundes nunca aceitaria fazer isso. Mas, se aceitasse, eles ficaram com medo de dirigir uma pessoa famosa. Eu gosto de estar com os jovens.
Ainda existem papéis interessantes para as mulheres na faixa dos 70 anos?
Há grandes septuagenárias, mas são papéis mais escolhidos. Como aquele filme feito para a Betty Davis em que a personagem era cadeirante. Existem grandes papéis e até mais fortes. Uma mulher com a minha idade que faz um papel escrito para ela, se ela estiver com saúde ; como estou ;, para meter bronca pode ser mais original que as mocinhas todas. Elas também se generalizam e ficam parecidas entre elas. Para você ser uma personagem velha, você tem que ser a velha. Você não pode ser qualquer velha, mesmo que você seja catadora de lixo. Para criar um tipo, tem que ser mais forte do que ser só uma cara bonitinha. Mas tem caras bonitinhas que são excelentes atrizes. A idade de uma senhora está muito ligada à saúde dela. É no olhar que está a juventude, no sorriso também, mas sobretudo no olhar. Muitas vezes você vê aquele olhar cansado, você tem a impressão que a pessoa está morrendo. Mas tem muita velhinha sirigaita por aí, que está em todas.
Com a sua experiência na internet, mudou a sua percepção sobre o mercado de atuação?
O mercado está de mudança. Agora, tudo é acessível a todos. Não adianta você ter uma briga dizendo que pode defender os direitos autorais na internet. É inclusive uma coisa careta. Você quer que as pessoas conheçam o que você faz. Não para você ser póstuma. Então, essa forma de você ser acessível com um blog, YouTube é muito interessante. Isso muda completamente. Você não precisa fazer um teste com atores, você olha no YouTube e já vê se vale a pena chamar o ator ou não. Anda mais depressa. É uma excelente fonte de recursos. É uma plataforma completamente democrática. É uma escola. Se você fizer vídeos e colocar no YouTube, é uma autoescola. Você não precisa gastar uma grana em uma escola. Você não fica dependente do professor. Você mesmo vai começar a treinar.
Essa mudança já aconteceu ou ainda estamos no processo?
Tá difícil. Pois está surgindo uma corrente contrária, que acha que isso perde a qualidade, que você tem que cobrar os seus direitos autorais. Você faz uma coisa e não pode copiar para outro lugar. Está se discutindo muito sobre direitos autorais. E muito é por causa do YouTube e da internet. Como se prende a pirataria? Quando eu vou comprar um DVD, cobram R$ 40 e você tira uma cópia de graça. É continuar na hipocrisia. Se você faz um CD, não é mais interessante ganhar dinheiro fazendo um show? Você quer que, quando as pessoas forem ao show, já conheçam as suas músicas. Isso é o creative commons, direitos autorais liberados. Tem gente que chama isso de pirataria. Imagina! É bobagem ser contra, pois é impossível brecar.
As três velhas
Direção: Maria Alice Vergueiro para texto de Alejandro Jodorowsky. Com Maria Alice Vergueiro, Luciano Chirolli e Pascoal da Conceição. Última apresentação hoje, às 20h, no Centro Cultural Banco do Brasil (SCES, Trecho 2, Conjunto 22, telefone: 3310-7087). Ingressos: R$ 15 e R$ 7,50 (meia). Não recomendada para menores de 16 anos.