Jornal Correio Braziliense

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Vida longa à música

Em bate-papo informal com o Correio, Ricardo Silveira fala sobre seu novo trabalho, sua relação com a arte e sobre as parcerias de ontem e de hoje


Você está morando no Rio?

Estou. Eu continuo viajando bastante, né? Mas moro no Rio.

Até amanhã foi lançado primeiro lá fora? Foi um projeto desenhado para o mercardo estrangeiro?
Primeiro lá. Eu fiz esse disco a partir da gravadora que tem lançado meus dicos lá fora, a Adventure music, que é um selo de Nova York. Diferentemente do Noite clara (de 2003, o primeiro lançado pela Adventure), que saiu primeiro no Brasil. A partir desse disco, os meus projetos têm funcionado assim. O Outro Rio (2008) e aquele com o Luiz Avellar (Ricardo Silveira e Luiz Avellar ao vivo tocam Milton, de 2004) foram assim.

Aí você excursiona por lá?
Excursionar nem sempre, mas eu toco em alguns lugares, principalmente na Califórnia.

Lá tem um público mais cativo?
Não é só a questão de ser um público mais cativo. Como nos últimos anos (no exterior) eu morava lá, deixei alguns instrumentos e acabo indo mais para lá. Quando vou, me programo para fazer as coisas. Recentemente, estive em Nova York tocando como o projeto Ouro Negro, no Jazz at Lincoln Center (cuja programação é dirigida por Wynton Marsalis), aí me deu saudades demais. Na realidade, a minha carreira, digamos assim, começou profissionalmente tocando com Herbie Mann lá em Nova York, no final dos anos 1970. Apesar que a minha carteira de músico eu tirei para tocar com o Márcio Montarroyos, enquanto estava de férias no Brasil.

É verdade que o Bill Frisell foi um dos seus incentivadores no começo?
É. Com o Bill foi o seguinte: ele tinha estudado lá (na Berklee College of Music) e tinha parado. Quando eu cheguei, ele tinha voltado para terminar. E a gente se conheceu ali. Eu cheguei para ele um dia e falei: ;Pô, vamos tocar juntos. Você quer me dar aula?;. Ele falou: ;vamos tocar juntos;. Então a gente tocava juntos de vez em quando. Eu ia na casa dele, ele ia na minha. E aí ele começou a me indicar como sub dele, principalmente numa banda de música latina e foi superlegal a experiência. Engraçado você perguntar dele porque eu estava agora mesmo; Estou fazendo um disco em parceria com o Vinicius Cantuária. E o Vinicius está, neste momento, excursionando com o Bill Frisell em função do disco que eles fizeram juntos (Lágrimas mexicanas). Em 2009, em função dessa minha relação antiga com o Bill, fui curador de alguns shows em Portugal, na Casa da Música, no Porto, e tive oportunidade de tocar com o Bill depois de muitos anos. Eu convidei ele e o Vinicius e eu fui com o (baterista) Robertinho Silva e o (violocelista Jacques) Morelenbaum. (Isso ocorreu em 18 de janeiro de 2009)

Por que rever seu repertório no Até amanhã?
Foi um pouco porque eu me dei conta que muitos desses temas eu sempre toco. Ia fazer 25 anos do meu primeiro disco quando eu tive a ideia. Acabou que saiu um pouco depois. É uma maneira de dar vida longa às músicas. Talvez de buscar nas músicas a essência delas, além dos arranjos ; apesar de que os arranjos são bastante importantes nesse disco. E eu comecei a prestar atenção, de um tempo pra cá, que os compositores fazem isso: tocam as músicas deles. Como o meu trabalho, nos meus discos, foi principalmente autoral, eu achei que era uma boa. E a experiência de ter tocado na orquestra Ouro Negro, com a música do Moacyr Santos, foi muito interessante para mim. Como não toco um instrumento sinfônico, o mais próximo de tocar em uma orquestra é quando você toca nma big-band ou coisa parecida. Eventualmente pode ter alguma coisa com orquestra. Quando eu tocava com Milton Nascimento, nos anos 1980, fizemos um show na Apoteose (que, aliás, foi o primeiro show na Praça da Apoteose), que era com orquestra. E essa experiência foi bacana. Mas, no caso do Até amanhã, eu queria fazer com metais. Já tinha feito isso antes, mas nunca tinha feito um disco só assim. A ideia foi essa. O que abre para mim, de repente, a ideia que eu posso continuar regravando algumas das músicas que eu fiz ao longo dos anos. Eu já toquei com tanta gente, mas quando você pega os compositores ; num show do João Bosco ou do Milton Nascimento, Ivan Lins ou Gilberto Gil ;, eventualmente eles vão tocar coisas antigas;

Você faz alguma distinção entre o seu lado compositor e o seu lado instrumentista?
Sinceramente, não sei. Nunca pensei sobre isso. Mas eu acho que comecei a compor um pouco tocar. Comecei a compor pensando em fazer um grupo para tocar aquelas músicas. Hoje em dia tenho pensado nisso: em compor mais. Mas o meu trabalho de composição, em princípio, era direcionado para o meu trabalho mesmo. Quero fazer um disco, então vou compor para o disco. E, como músico, eu já fiz tantas coisas diferentes ; e continuo fazendo. Eu gosto desse equilíbrio: fazer as minhas coisas e tocar com os outros. A ideia de que a gente continua melhorando, ou seja, a nossa relação com a música pode continuar melhorando... Eu não sei se eu quero usar a palavra ;paixão;, mas é aquela coisa de gostar. Porque, se você não gostar muito, você não vai fazer, não vai entrar nessa história. E o fato de que isso é uma coisa que pode durar é muito legal. Eu tenho citado o exemplo do meu amigo John Pisano, que é um guitarrista que tem uns 78 anos. E toda a terça-feira, ele tem a Guitar Night ; ele é um cara que foi do Tijuana Brass, bem-sucedido, mas gosta de tocar toda a semana. Ele carrega o amplificadorzinho dele e a guitarra e não gosta muito que os outros ajudem. Acho muito legal. Ele faz o que realmente gosta. E isso faz a gente melhorar, né?

Pisano é um dos grandes...
Um cara que sempre viveu de música, que esteve nos momentos em que a indústria fonográfica estava bombando. Ele gravava com todo mundo.

Você também gravou com muita gente. Faltou alguém?
Não sei. Com certeza. Já fiz muita coisa, mas... Acho que mudou um pouco isso, né? Peguei uma época, no Rio, por exemplo, na década de 1980, no final do anos 1970, tinha semanas que tinha três sessões por dia, saia de estúdio e ia para outro. E, hoje em dia, as pessoas são mais autossuficientes. Mudou, né? Mas, ainda assim, a gente continua fazendo as coisas. É aquela velha história: um disco de ouro hoje é 50 mil cópias...

Por que você escolheu o repertório do Milton para o disco com o Luiz Avellar?
Aquilo foi um convite para um projeto. Na época o curador era o Marco Pereira. Esse projeto aconteceu durante alguns anos. O Paulo Moura e o Maurício Einhorn fizeram o K-Ximbinho, também virou disco. Eram dois músicos homenageando um compositor. O Marco Pereira, quando me convidou, já sugeriu isso, sabendo da minha relação com o Luiz e da nossa relação com o Milton. Tanto que foi uma coisa muito natural. Encontrei com o Luiz, a gente começou a tocar e a coisa fluiu. A gente ia lembrando do tempo que tocava com o Milton e as adaptações foram surgindo muito naturalmente. Foi muito fácil de fazer esse projeto.

Você é ligado em equipamento? É um aficionado?
Eu gosto sim. Não sei se sou aficionado, mas eu gosto. Eu tenho uma 335 Gibson, uma 175 Gibson, uma (Fender) Strato antiga. E, recentemente, estava usando uma guitarra do Zaganini, que eu gosto muito, lá de São Paulo. Tenho também duas PRS que surpreenderam, boas guitarras.

Hoje você tem colaboradores constantes ou a banda de apoio muda?

Ultimamente tem o pessoal que gravou o CD, o (baterista) André Tandeta e o (contrabaixista) Romulo Gomes. Eles tem sido mais frequentes. Ontem, por exemplo, o baixista foi Lescowich. O Nema, também de Brasília, às vezes eu toco com ele.

E o Vittor Santos?
Ele é uma figura. Por conta de nossas conversas na viagem do Ouro Negro, eu acabei decidindo estudar com o Vittor. Porque quando eu estudei música era muito novo. Aprendi muita coisa muito rápido, era muita informação. Digeri, fui assimilando essas coisas na prática. É legal rever depois de ter tido a experiência com elas. Hoje em dia, a gente tem uma certa intimidade com algumas dessas coisas. Para poder avançar. De certa forma, tem até a coisa de rever o repertório.

O seu lado arranjador;
Engraçado que muitas coisas já estavam lá no começo, mas a maneira como a gente olha para a mesma coisa muda.

Como é que está o Rio, musicalmente?
As coisas são cíclicas. O difícil de encontrar são lugares concebidos, com acústica, para estimular. O que mudou hoje em dia é que, para trabalhar, você que saber dos projetos, dos editais. Aí você vai viajar. Você tem que conhecer esses caminhos, mas nem sempre é fácil e simples. E aí as coisas acontecem, porque tem orçamento, esse tipo de coisa. Na década de 1980, por exemplo, meus discos tocavam no rádio. As pessoas se identificam, as pessoas querem ir lá ver. De que maneira, você se conecta com o público?

O pessoal te procura pela internet?

Com certeza. Por exemplo, eu fiquei amigo de um compositor indiano. Produzi duas músicas para o disco dele. E toco algumas coisas que ele me manda para trilhas de filmes para Bollywood, porque ele conhecia meus discos. E acabamos ficando amigos. Entre outras coisas, ele me deu de presente a minha Gibson 175. Tem umas coisas que acontecem totalmente diferentes. O nome dele é Sandeep Chowta. Numa dessas tem participação do David Bruzin e do Dori Caymmi. Mas o contato com o público... As pessoas me perguntam ;Você acha que é difícil a música instrumental no Brasil. Música instrumental é uma coisa muita vaga. O que tem são intérpretes instrumentistas. Se você os coloca no rádio; Historicamente, você pode ver. Waldir Azevedo era superconhecido. O K-Ximbinho, quem me disse isso foi o Paulo Moura, era um sucesso. Quando você tira o contato, é mais difícil nesse sentido de popularizar o intérprete, o intrumentista. Quando você tocava nos shows do Parque da Catacumba tinham mais de 5 mil pessoas. Mas tinha divulgação. Aquele negócio do artista ir aonde o povo está., legal, mas para isso você precisa dos projetos de incentivo.

O violão brasileiro é visto como uma escola para o mundo, mas fala-se muito pouco da guitarra. Mas tem você, o Hélio Delmiro, Heraldo do Monte, o Toninho Horta, tem o Zé Menezes ; e, antes de todos eles, o Garoto já tocava guitarra. A guitarra brasileira tem linguagem própria, também é uma escola?
No Brasil, a gente separa o violão da guitarra, mas na realidade nunca me preocupei muito com isso. Eu adoro a música brasileira. Mas não tenho essa preocupação: acho que a música é música. A gente acaba falando com o nosso sotaque, mesmo que a gente fale outras linguas. O músico brasileiro tem uma identidade muito forte. O instrumento é a maneira de pensar, além da composição. O instrumento também tem as suas características e a sua história. E talvez a guitarra tenha uma coisa mais internacional, em princípio. Mas o violão é uma guitarra também. Por exemplo, eu via Pepeu tocando nos Novos Baianos, trazendo a influência da guitarra elétrica, mas o som daquele grupo era brasileiro. Acho que a maneira como toco nesse disco pode ter a sonoridade da guitarra elétrica jazzística, mas a articulação é brasileira.

Nós tivemos aquela coisa da passeata contra a guitarra;
Já tinha guitarra na música brasileira. Outro dia, curiosamente, ouvi o primeiro disco do João Donato, que é produzido pelo Tom Jobim, e tinha uma guitarra ali. Se você amplifica o violão, já vira uma guitarra. O violão elétrico era isso. Naquela época, a música vinha com uma atitude também. O Jimi Hendrix tinha uma coisa cultural além da música. A guitarra da passeata acho que era uma coisa associada a barulho.