Jornal Correio Braziliense

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A peleja do dia a dia

O trabalho é uma constância na história da humanidade. Afinal, sempre foi preciso zelar pelo pão nosso. Essas relações milenares, porém, vêm sofrendo mudanças no rastro das inovações tecnológicas

Até na mitologia trabalho é sinônimo de coisa custosa. Os gregos antigos, para quem só o ócio era digno, forjaram a narrativa de Sísifo. Bom de lábia, esse humano desaforado não tinha pudor em enganar os deuses. Seu castigo? A penosa tarefa de rolar um pedregulho montanha acima diariamente. Na manhã seguinte, a bendita pedra sempre voltava ao ponto de partida, não importava o quanto ele se esforçasse. Moral da história: os mortais não gozam da liberdade dos deuses ; eles têm mais é que se conformar com os afezeres repetitivos. E pronto.

O trabalho tal qual o conhecemos ; livre e assalariado ; é fruto da modernidade e, desde sempre, um objeto de disputa. Direitos e deveres de patrões e empregados são, até hoje, negociados à exaustão. Nos últimos anos, porém, essas relações vêm experimentando uma acelerada mudança cujo principal vetor é a tecnologia. Ela permite, por exemplo, que certas metas sejam cumpridas à distância, sem a presença física do contratado. A noção de expediente também foi relativizada: dependendo da natureza da profissão, sequer existe carga horária semanal.

Sem os grilhões do espaço e do tempo, estaríamos nós, Sísifos contemporâneos, enfim libertos da maldição da rotina? Ainda é cedo para comemorar, dizem os especialistas, pois a crescente flexibilidade do trabalho tem efeitos nem sempre positivos na esfera do lazer. O risco é tornar-se um profissional full-time, sempre disponível e sempre solicitado. Quase um escravo do "sistema".

Perigos à parte, a Revista mostra o exemplo de pessoas que criaram sua própria jornada, muito mais arejada, como a dos empresários "sem-teto" Gustavo Lucas e Marcela Nunes. Ou a do produtor cultural Manu Santos, regulada por outra lógica que não a dos ponteiros do relógio.

Escritório sem paredes
;Preciso de um ritmo; E meu ritmo é outro;, pensou o designer Gustavo ;Footloose; Lucas, 32 anos, há pouco mais de um ano. Sem tempo para almoçar, ele experimentava uma jornada estressante de até 10 horas diárias de trabalho, sem se dar conta de que a gastrite era uma constante no seu cotidiano. ;Também torcia o pé vez ou outra, inexplicavelmente. Torci meus pés diversas vezes num período de dois anos;, lembra. O dia a dia desgastante na área de comunicação e direção de arte de uma grande empresa ficou para trás.

Marcela Nunes, 28 anos, também tomou a mesma decisão. A jornalista desistiu da carreira para se dedicar ao design e ainda abdicou do bom salário que recebia em um órgão internacional porque já não tinha mais tempo para a filha adolescente, nem autonomia sobre a vida particular. Apesar de trabalhar em casa, ficava presa à jornada do chefe. ;Se ele estava na China, trabalhava no horário da China. Se estivesse em Nova York (EUA) ou na Europa, lá estava eu: produzindo em outro fuso horário.;

Ambos profissionais encontraram-se num caminho de mudanças e assumiram o papel de protagonistas em um novo ambiente de trabalho. Sócios desde fevereiro passado, os designers atendem grandes e pequenas empresas no primeiro espaço de coworking da capital, situado no Mercado Cobogó (705 Norte). Ao pé da letra, o termo em inglês significa trabalhar junto. Na prática, o espaço ; sem divisórias, com internet sem fio, onde os custos e recursos são rateados por outros profissionais autônomos ; propõe uma rede de contatos entre jovens empreendedores.

No novo escritório, eles compartilham informações e contatos e, o melhor de tudo, não precisam bater ponto, nem cumprir um horário das 8h às 18h. ;Grandes empresas já estão vendo que as pessoas que trabalham das oito ao meio-dia e das duas às seis da tarde estão procrastinando tarefas;, acredita Gustavo. Para o designer, mesmo que hoje ele trabalhe a mesma quantidade de horas, o tempo de que dispõe não é pré-determinado para a realização de tarefas. Todos os momentos de criação e de pausa tornaram-se prazerosos.

Quando os sócios precisam de fôlego para um novo projeto, já que nem tudo são flores, eles também se presenteiam com o ócio criativo. ;Chamamos de day off. Nele vamos à Água Mineral, ao Pontão no Lago Sul ou a qualquer outro lugar onde possamos nos desligar um pouco do estresse, recarregarmos as baterias e, o que ocorre muitas vezes, damos espaço para a mente pensar em soluções criativas;, explica Marcelo, satisfeito com uma nova forma de encarar o trabalho.

Para quem teve a oportunidade de mudar a rotina laboral, fica a lição da importância de cuidar de si mesmo. Hoje, Marcela tem mais tempo para ficar com a família. ;Minha filha tem 14 anos e quero passar mais tempo com ela. Trabalhando aqui, posso levá-la e buscá-la na escola, na aula de inglês e em outros compromissos. Também tenho tempo para fazer as compras no mercado e cuidar da minha casa;, alegra-se a designer.

Ser o próprio patrão
Às 6h30, o empresário Edmir Carvalho Cavalcanti, 39 anos, checa os e-mails no computador que esteve ligado a noite inteira. Em seguida, despacha relatórios, se arruma e sai de casa com os filhos ; um de quatro e outro de oito anos ; para deixá-los no colégio. O trajeto leva 20 minutos. De lá, segue para um espaço que aglomera academia, restaurante e café com internet sem fio. Faz uma aula de tênis, toma banho e já está pronto para resolver pendências do escritório ali mesmo, enquanto toma um cafezinho.

;Dá até para fazer uma videoconferência daqui, com meu notebook;, exalta o empresário, cujo escritório físico é mantido por uma mera formalidade. Economista de formação, ele desenvolve softwares para fundos de pensão e para as áreas jurídica e de saúde. Há três anos, ele não precisa apertar a mão de clientes para fechar um negócio.

Enquanto é entrevistado pela Revista, resolve uma pendência com um cliente que está nos Estados Unidos. Ao mesmo tempo, está na internet com outro cliente da Asa Sul, um no final da Asa Norte, outro no Lago Sul e mais um em São Paulo. "Por conta dessa comunicação virtual, meu dia passa a ter mais horas. Não pego trânsito, não deixo de encontrar meus filhos e almoçar em casa, porque consegui organizar meu tempo", conta.

Se por um lado, Edmir otimiza suas tarefas, por outro, percebe que trabalha talvez mais do que deveria. ;Sei que trabalho muito, até porque o que faço exige estar conectado 24 horas. E também, quando se é dono de um negócio, é você quem toma as decisões.; Estica de um lado, puxa do outro, e a mesma tecnologia que permite ao empresários alternar escritório e espaços wi-fi acaba com a noção de carga horária fechada.

A íntegra desta matéria pode ser lida na edição 297 da Revista do Correio.