Jornal Correio Braziliense

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De prosas e navalhas

Começou com um personagem e virou um hobby. Enquanto desfia uma conversa, o ator William Ferreira adestra a tesoura e corta o cabelo dos amigos

William Ferreira abre a porta do apartamento com um sorriso. Avisa, logo na entrada, de que não se trata de um expert em fios e cortes. Ele simplesmente deu uma chance às tesouras e às navalhas que mantém minuciosamente limpas e afiadas na bolsa que carrega para lá e para cá, atendendo a pedido de amigos. No apartamento da diretora de arte Maíra Carvalho, é ele quem transforma a varanda com vista para um desfile de mangueiras num salão de beleza. No espaço, a amiga senta-se num banco azul e aguarda, pacientemente, William cortar-lhe os cachos rebeldes preservados nos últimos cinco meses.


Passatempo, o ato de cortar a cabeleira de atores, diretores, músicos, cineastas e de outros amigos de longa data nas artes, compartilha espaço com os compromissos desse ator que ainda se desdobra em diretor e cenógrafo. A faceta de cabeleireiro surgiu enquanto se preparava para rodar o curta-metragem Entre cores e navalhas, de Catarina Accioly e Iberê Carvalho. Foram seis meses de curso no Senac em 2006, período em que William aprendeu um pouco do ofício que lida com vaidade e expectativas. ;Era o mais corajoso da turma. Não tinha muita frescura não. O máximo que podia fazer era um buraco na cabeça da pessoa, mas daí o professor consertava;, brinca.

Do filme em que protagonizou o cabeleireiro Antony no Salão Esperança, William guarda boas lembranças. ;Acho que foi a partir daí que comecei essa história.; Leonino, presta atenção na juba dos outros e gosta de ; já que longa cabeleira dos tempos de faculdade se foi ; repicar, encurtar ou desigualar um visual caretinha. O resultado agradou um amigo que falou para outro que comentou com outro e por aí passeia a fama. Graças à ;propaganda boca a boca;, ele já foi recepcionado por uma fila de mulheres ávidas por uma catarse capilar. ;Mas não dá para levar isso a sério. É mais uma brincadeira que qualquer outra coisa;, avisa, enquanto corta o cabelo de Maíra.

Os homens também aguardam na lista de espera fictícia do ator/cabeleireiro. ;Só que os homens dão pitaco. Somos mais enjoados para cortar cabelo que mulher. Homem pede para fazer isso, aquilo; e fica de olho para o cabelo não ficar tão curto;, observa. Entre uma prosa, regada ou não por uma cervejinha, William mergulha no tempo. Não vale ter pressa. O tempo para finalizar o corte é outro; Minutos que se desenrolam em ideias, projetos ou mesmo em um troca-troca de figurinhas durante a sessão.

Tem épocas no ano em que o telefone não para de tocar. São amigos que gostariam não só de dar um trato no visual, como também de se desnudar de um personagem. ;Isso aconteceu com o Kael Studart (protagonista da peça Fragmentos de sonhos do Menino da Lua) após uma temporada do espetáculo;, recorda. O ofício extra também atende demandas próprias. É ele mesmo quem corta os cabelos brancos que mantém desde os 30 e poucos anos. A tesoura vira protagonista assim que ele sai do papel de vilão, médico, marido, pai ou qualquer outro personagem de teatro, cinema e TV. ;Me dá uma aliviada. Vontade de deixar crescer a próxima história.;

Enquanto William relembra momentos importantes na carreira, como a peça e o curta-metragem Obscena Senhora D, e anima-se com a temporada nacional do espetáculo O cabaré das donzelas inocentes, ele mantém a atenção aos cachos negros da diretora de arte. Cuidadoso quanto aos últimos retoques, pede a ela mais dois minutos. ;Tenho um certo desapego com meu cabelo. É o William quem fala: ;Seu cabelo está horrível;. Daí vejo que é hora de mudar. Ele corta meu cabelo há cinco anos;, orgulha-se Maíra.

Mais uma aparada aqui, navalha na parte de trás; Ela vira a cabeça para frente, para o lado; ;Isso. Agora sim: tá pronta;, avisa o ator, após 40 minutos. Maíra levanta-se do banco, sacode a roupa e diz: ;Posso sair para qualquer compromisso sem nem mesmo olhar no espelho como fiquei. Confio no William;, afirma. Perfeccionista, ele se antecipa. Nunca se sabe. Caso a amiga mude de ideia, ;tem garantia;. ;E se achar que fiz algo estranho, você volta;, completa. Mas esse já é mote para outro roteiro, outro corte, outra história.

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