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Seria o batom a nova boneca?

Com pouca idade e estilo de gente grande, as meninas trocam brinquedo por maquiagem e mandam no próprio guarda-roupa. Mães se assustam com o excesso de vaidade e especialistas falam sobre os limites dessa %u201Cbrincadeira%u201D

Por Carolina Samorano//Especial para o Correio


O despertador toca às seis da manhã convocando para o dever, que começa às sete em ponto. Lutando contra o sono, ela se arrasta até o espelho para confirmar o que já desconfiava: tantas tarefas por dia e poucas horas de sono lhe causaram terríveis bolsas e olheiras, que só mesmo um bom corretivo dá conta de amenizar. Ignora os berros que vêm da cozinha chamando para o café-da-manhã, com pão quentinho e leite com chocolate, e dá início ao ritual obrigatório de todas as manhãs. Abre o estojo de maquiagem, disfarça as olheiras, devolve o corado ao rosto com um blush rosado e ressalta o sorriso com o brilho labial favorito. Por último, penteia os cabelos e escolhe um adereço charmoso. Pronto. Agora sim pode encarar o dia.

O ritual acima tem, aos poucos, invadido a rotina de milhares de lares onde vivem meninas. Paletes de sombras, esmaltes, blushes, pincéis e palavras desconhecidas até para algumas mulheres já crescidinhas, como bronzer (ou pó bronzeador, para as menos íntimas) passaram a fazer parte do vocabulário de pequenas que mal dão conta de pronunciar o próprio nome. Todos esses itens pularam da prateleira mais alta para a mais baixa nos supermercados e lojas de cosméticos e se juntaram a ursinhos de pelúcia, bonecas, jogos de tabuleiro e gadgets tecnológicos. Sim, elas tem nécessaires cheias de maquiagem, pintam as unhas e não deixam de encher o guarda-roupa com peças que fariam inveja mesmo aos mais antenados fashionistas. Nada passa despercebido por essa geração que dribla pais, dermatologistas e pedagogos preocupados com os desdobramentos de tanta vaidade no futuro.

Enquanto ele não chega, elas não só aprendem como ensinam no portal de vídeos YouTube dicas de maquiagens úteis para pessoas com o dobro, o triplo ou o quádruplo da idade delas. Além disso, desfilam por aí com roupas que são sonhos de consumo de gente grande. Duvida?

Duas penteadeiras, seis sombras, algumas escovas de cabelo, muitos esmaltes -- quase todos cor-de-rosa -- e um batom em formato de morango dividem o espaço com algumas bonecas Barbie espalhadas pela sala e quarto. Nicole Khouri tem só 3 anos, pouco tamanho e vaidade de gente grande. Muito maior até que a da mãe, Neuza Khouri, 41, que desde a gravidez deixou um pouco esquecida a nécessaire de maquiagem. ;Não sei da onde ela tirou isso. É uma coisa dela mesmo, acho;, palpita a mãe.

Nicole recebeu a reportagem de pulseiras, meias, sapatos e esmalte cor-de-rosa, tudo para combinar com o vestido de babados escolhido para a fotografia. ;Pegou essa mania de combinar agora. Tudo tem que ser da mesma cor e do mesmo tom, senão não combina;, diverte-se Neuza.

O guarda-roupa, aliás, está às tampas com vestidos de princesa, bem rodados. ;Não dá para escolher roupa para ela. Ela chega na loja apontando o que quer e, quando cisma, é impossível não trazer o vestido para casa;, conta Neuza, por sorte dona de uma loja de roupas infantis. Incontáveis vezes a mãe chegou a levar o vestido e, depois, às escondidas, devolvê-lo à loja. ;Uma vez devolvi três vezes o mesmo vestido. Na terceira, ele ficou;, lembra. Com estilo já bem definido, a pequena só aprova os modelos compridos, quase no pé, nem que para isso tenha que levar para casa peças dois ou três números maiores que o seu manequim. Shorts e camisetas, nem pensar. Além dos vestidos, ela ostenta uma paixão comum a muitas mulheres já bem crescidas: sapatos. ;É impressionante. Ela pega um catálogo de roupas para olhar e vai direto no pé. Vive me pedindo sapato;, ri a mãe.

Enquanto Neuza fala sobre a vaidade da filha, Nicole compara o esmalte pink, do qual está orgulhosa, com o da mãe, que é vermelho. Insatisfeita, passa uma camada de glitter azul por cima. Depois, cisma em pintar as unhas da babá, trabalho que faz pacientemente e, quando termina, ensina que ela precisa ficar com as mãos imóveis para a pintura não borrar.

Quando sai de casa, Nicole preocupa-se em pegar a bolsa e o batom. Neuza admite que não é fácil controlar a pequena. ;Quem segura? A mãe que souber a receita por favor me passe!”, brinca. Ainda assim, ela acredita que seja cedo para maiores preocupações com uma vaidade exagerada. ;Eu não acho que tenha nada em demasia, por enquanto. É fase. Daqui a pouco ela esquece os esmaltes e acha outra coisa;, acredita.

O camarim está lotado. Mães, crianças, cabeleireiros, maquiadores e organizadores se espremem entre cadeiras e vestidos rodados. A duras penas, tentam se entender em meio à ensurdecedora sinfonia de secadores de cabelos, sprays fixadores, risadas, chororôs das pequenas e de mães tensas que se tentam alisar os cachinhos ou cachear fios lisos. Quando o apresentador anuncia o início do evento, a agitação aumenta. Uma a uma, elas entram no palco para desfilar a beleza ainda prematura, vestidas com roupas de gala, típicas e, em alguns casos, biquínis coloridos, justos e brilhantes.
Apesar da pouca idade, um olhar um tanto desatento poderia levar à conclusão de que as pequenas ali presentes passam ilesas pela cruel fase da troca dos dentes de leites ; as janelinhas deixadas por eles são geralmente substituídas por próteses removíveis. As mais prevenidas posam para fotos e fazem graça diante dos jurados munidas de unhas postiças, saltos e até corpos bronzeados artificialmente.

Tudo isso está nos documentários, livros e filmes, críticos da tal cultura da beleza que leva crianças que mal sabem caminhar numa passarela a disputarem uma coroa de miss, muitas vezes empurradas pelas próprias mães. No entanto, por mais tentador e, por que não, divertido que pareça a ideia, especialistas preocupados alertam que empurrar as pequenas tão precocemente para um mundo em que só a aparência importa pode trazer danos. ;O que esperar do futuro de uma criança que cresce com a ideia de que sua beleza ou a falta dela é o que há de mais importante? Elas acham que se não estiverem nos padrões de beleza, não serão ninguém, de modo que aquilo que forma o caráter fica muito prejudicado;, analisa a psicóloga Patrícia Spada, da pediatria do hospital universitário da Universidade Federal de São Paulo.

Em julho passado, dezenas de meninas com idades entre 5 e 13 anos se reuniram no parque de diversões Beto Carrero World, em Balneário Camboriú, Santa Catarina. Saias rodadas, cabelos bem escovados e maquiagens impecáveis, porém, denunciavam que montanhas-russas e carrosséis estavam em segundo plano. Eram todas postulantes à faixa e à coroa de Miss Brasil Infantil 2010, a versão míni do concurso de beleza adulto. A rondoniense Amanda Gomes, 10 anos, levou o prêmio na categoria Infantil ; além desta, tem a Míni (5 a 7 anos) e a Pré-Teen (11 a 13 anos). Um mês depois, abocanhou o segundo lugar no Little Miss Nations, em Curitiba. Em pouco mais de um ano mergulhada no mundo dos concursos de beleza infantis, Amanda já coleciona quatro faixas, três de primeiro lugar e só uma de segundo.
Mãe coruja da pequena miss, Leovânia Silva diz que ajuda a filha a realizar os sonhos, mas garante que se desdobra também para não deixar o glamour tomar o lugar da escola e das brincadeiras de criança. Para começar, babyliss, unhas e dentes postiços não têm vez na produção, assim como salto alto e roupa curta. ;Ela tem a cabeça no lugar e é a melhor aluna da sala. Sabe que, no fim, é tudo uma grande brincadeira;, garante Leovânia.

Quem falou em piscina de bolinhas, mesas enfeitadas, palhaços e mágicos? Nada disso. Um novo tipo de festa de aniversário tem feito a alegria das pequenas vaidosas. O lugar da comemoração é um salão de beleza. Entre um gole e outro de refrigerante, as crianças aprendem truques de maquiagem difíceis mesmo para quem já tem intimidade com a coisa, como delinear os olhos e marcar o côncavo. Prestam a maior atenção às dicas da ;prófi; e fazem tudo com a maior facilidade. ;Pode misturar azul e branco?;, indaga uma aluna curiosa. ;E rosa e roxo?;, empolga-se outra, de pincel na mão. ;É uma festa mesmo para elas e acaba sendo terapia para a gente;, afirma a maquiadora Carol De Marchi, dona de uma loja de maquiagem no Lago Sul que, vira e mexe, recebe festinhas regadas a maquiagem.

Natália Brandão acabou de completar 9 anos e já é craque em make-up. Juntou o grupo de amigas para comemorar o aniversário num curso de automaquiagem. ;É legal e a gente brinca de maquiagem!” justificou, empolgada, a aniversariante. A mãe, Tatiana Brandão, achou que era uma forma de fugir das tradicionais festinhas. ;Tive receio de que as mães das meninas não gostassem de uma festa com maquiagem porque nem todo mundo é a favor, mas elas adoraram e as meninas se divertiram!”

Para garantir a segurança das pequenas, os produtos usados nas aulas são todos próprios para crianças e aprovados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Depois de maquiadas, o momento mais esperado: supernervosas, as meninas desfilam para as mães, enfeitadas com boás coloridos e com direito até a passarela.

A gestora hospitalar Ana Flávia Lobo, 25 anos, sempre fez questão de estimular a vaidade da filha, Maria Eduarda, 7 anos. Para ela, essa é uma forma de incentivar sua autoestima. ;Mas tudo dentro do que considero adequado para a idade. Não permito que ela use maquiagem todo dia, por exemplo. Só em ocasiões especiais e em tons bem clarinhos;, ilustra. Segundo a mãe, aos 2 anos a menina já queria usar bolsa, mesmo sem carregar nada dentro. ;Aos 3, cismou em usar blusinha com a barriga de fora. ;Eu custava a convencê-la do contrário;, lembra.

Hoje, Maria Eduarda tem a permissão de usar gloss nos lábios para ir à escola. ;Meu pai não gosta, ele nem me arruma muito. Eu falo: ;pai, eu sou menina, não posso sair assim de qualquer jeito;, e minha mãe sempre diz para eu colocar um arquinho, arrumar meu cabelo e me deixa passar brilho ou um batom rosinha.;

Para Ana Flávia, o comportamento da menina é um reflexo de seus hábitos. ;Ela vê eu me arrumando e quer fazer a mesma coisa. Quando eu saio do banho, normalmente seco a minha franja. Agora ela quer que eu seque a dela também. Eu vou negar? Claro que não, arrumo direitinho o cabelo dela;, diverte-se. Mas a mãe considera importante estabelecer limites. ;Apesar de ela pedir, jamais deixaria minha filha usar salto alto, por exemplo;, exemplifica. Algumas vezes, admite, se surpreende com o comportamento da filha. ;Agora ela inventou que não pode engordar. Quer fazer dieta. Eu falo que isso é uma bobagem, que ela não tem idade para isso.; Nessa hora, Maria Eduarda interrompe a conversa e se explica. ;Mas mãe, como eu vou poder desfilar na passarela se eu ficar gorda? Eu levo isso muito a sério!” Ana Flávia logo explica: ;Minha filha, você é linda e só precisa se preocupar em brincar. Isso é preocupação de adulto;. Ela atribui esse tipo de comportamento à influência da mídia e das outras crianças. ;A mídia vai mandando suas mensagens. Além disso, muitas vezes é complicado explicar que ela não pode usar maquiagem, esmaltes, quando a amiguinha da escola usa, por exemplo.;

Maria Clara da Costa tem 9 anos e, além de ser super alto astral e comunicativa, sempre foi vaidosa. A mãe, Walkiria, conta que a menina adora ganhar roupas, sapatos, xampus e já sabe pintar as unhas sozinha. ;Eu não sei de onde veio esse lado dela. Apesar de ser cabeleireira e maquiadora, eu não sou tão vaidosa e minha filha mais velha também é bem desligada desse tipo de coisa.; A menina tem uma coleção de esmaltes de dar inveja em qualquer adulto. A mãe conta que aos 4 anos ela já adorava se maquiar. ;Ela pegava as maquiagens da irmã mais velha e levava para a escola escondido para se pintar;, relembra.

Hoje, Maria Clara só tem permissão para usar maquiagem nas apresentações de ginástica rítmica. ;No dia a dia, só gloss e olhe lá,; alerta Walkiria. Ela conta que a filha quer tudo o que não é próprio para a idade. ;Ela insiste em pintar o cabelo. Eu explico que ainda é cedo para essas coisas, ela é muito nova. Tenho receio que ela pule a infância e deixe de aproveitar essa época tão boa e importante da vida.;

Apesar de adorar produtos de beleza, para o Dia das Crianças pediu de presente uma Barbie. ;Eu amo ir ao shopping, comprar roupa e tudo mais. Mas ainda prefiro brincar. E a Barbie que eu quero é muito chique;, descreve. Desde os 5 anos, Maria Clara faz hidratação nos cabelos. ;Às vezes, eu enfeito, boto uma faixa ou faço um rabo de cavalo, mas gosto mesmo é de deixá-lo solto. Além disso, só deixo a minha mãe cortar as pontinhas, gosto dele grande.;

Entrar no guarda-roupa de Alice Benes Andrade, 5 anos, é quase como rever os desfiles das últimas semanas de moda: tem oncinha, sobretudo, botas, diademas, bolsas, saia jeans e até uma calça saruel. Na hora de escolher os looks para as fotografias, a menina mostra que tem senso fashion. ;Rosa com rosa não, né, mãe?! Fica muito rosa!”, ensina. Pela cama, uma quantidade infinita de acessórios e peças de roupa. A nécessaire de maquiagem ; sim, ela tem uma ; não fica de lado. Brilhos labiais em todos os tons de rosa e um gloss que é pura purpurina.

De longe, a mãe, Marilene, 40, observa a menina posar para as fotos, desenvoltura lá no alto. ;Não sei de onde ela tirou esse comportamento, é o oposto de mim! Sempre fui superdesajeitada;, entrega Marilene, de cabelo preso e cara lavada. ;Outro dia, ela me disse que eu precisava ir para o Esquadrão da Moda (programa de TV exibido pelo SBT), vê se pode!”, conta.
Na hora das compras, muita negociação. ;Alice escolhe sempre as mais caras, lindas e maravilhosas! Aí eu seleciono algumas, senão vou à falência!”, diz a mãe. Dias atrás, pediu uma sandália de salto alto. Não ganhou, mas já conta com alguns deles, baixinhos, na coleção. Porém, nem sempre pode exibi-los por aí. ;Só libero de vez em quando;, explica Marilene. Passeando por uma feirinha, ela pediu um brinco de argolas grandes. O pedido também foi vetado. A mãe coloca freios na vaidade da pequena. ;Por ela, ela só usaria esmalte vermelho. Aí eu explico que ela é criança, que fica feio e que tudo tem sua hora. Ela entende numa boa.;

Com a maquiagem, é a mesma coisa. O único estojo de maquiagem ; único, porém ;completo;, como Alice faz questão de salientar ; foi presente. Por precaução, fica sob a guarda da mãe e só sai do armário em ocasiões especiais. Mesmo assim, quem comanda o pincel é Marilene. ;Eu que passo porque escolho as cores mais discretas. Se deixo, ela exagera. Vai logo na mais colorida e na mais cintilante.; Alice não deixa de cuidar da aparência nem na hora de dormir. Penteia os cachinhos cuidadosamente e pede para a mãe fazer uma trança para os cabelos não quebrarem durante a noite. ;Estou deixando crescer;, explica a pequena. Para Marilene, no entanto, todo cuidado é pouco. ;Ela já tem esse instinto. Se eu estimular, sabe-se lá onde vai parar;, pondera.

Se o excesso de vaidade é motivo de preocupação dos especialistas mesmo entre adultos, com as pequenas a coisa é ainda mais grave. Psicólogos e pedagogos defendem que maquiagem nas baixinhas é até legal, mas desde que seja encarada como uma brincadeira e que tenha acompanhamento de perto dos pais. Além disso, a maneira como a criança vai ou não levar essa vaidade para o futuro também tem muito a ver com a forma com que a família recebe esse comportamento em casa na infância, como explica a psicóloga infantil, pedagoga e professora da Universidade de Brasília Penélope Ximenes. ;Uma coisa é uma criança vaidosa cujo comportamento não é valorizado. Essa vaidade excessiva vai naturalmente sumindo. Outra é uma criança que é estimulada a se enfeitar. Nesse caso, se ela for uma menina carente de afeto, vai começar a achar que a única forma de receber atenção é pela vaidade;, alerta.

Para a psicóloga da pediatria da Unifesp, Patrícia Spada, preocupação demais com a aparência pode até mesmo ser um sintoma de algum conflito psicológico. ;A menina que vive em função de se maquiar enquanto o mais adequado para a idade dela seria brincar já revela que está passando por alguma dificuldade emocional;, afirma Spada.

Perceber a tênue linha entre a brincadeira e o exagero não parece fácil. Uma dica é observar o tempo que o ato de se embelezar ocupa na rotina da criança. ;Se a menina não sai de casa porque não acha o batom, se fica acordada até tarde mexendo na nécessaire, se vai mal na escola e se isso afeta a vida social dela, é hora de impor limites;, orienta Penélope Ximenes. E o limite, que para muitas mães é um quebra-cabeça sem encaixe, é mais simples e fácil do que pintam os pais, segundo a pedagoga. ;Diga não;, sugere. ;Tem mãe e pai que tem medo de dizer não e aí a criança cresce sem saber o que é isso. Está excessivo? Diga não e ponto;, ensina. A coisa só fica mais complicada quando o comportamento da criança é quase uma réplica da mãe ou quando, sem perceber, ela incentiva a vaidade da criança, como observa Mônica Spada. ;A mãe precisa identificar se ela não está estimulando um comportamento sem limite. Ela é a autoridade e o modelo e deve resolver o que é bom ou não para a criança.;