Jornal Correio Braziliense

Revista

Os complexos dilemas femininos

Violência doméstica, aborto e participação política são alguns dos temas recorrentes a cada campanha eleitoral. A uma semana das eleições, Dilma Roussef e Marina Silva falam sobre eles

A partir de 1; de janeiro de 2011, o Brasil entrará em uma nova fase. Independentemente de quem saia vencedor nas urnas, os 16 últimos anos tornaram o país, dentro das limitações políticas, mais democrático. Com esse avanço, os direitos da mulher tornam-se, cada vez mais, aspectos dependentes de políticas públicas, em vez de apenas tópicos defendidos por movimentos sociais. Sobretudo, diante da situação em que o país se encontra em relação a seus pares na América Latina.
De acordo com o ISO-Quito, índice que mede a igualdade das mulheres nos países latino-americanos, entre os 16 avaliados, o Brasil ocupa o 15; lugar, superando apenas a Guatemala. O índice leva em conta aspectos políticos, em relação à paridade nas decisões governamentais; econômicos, que considera as diferenças trabalhistas; e sociais, que remetem ao bem-estar da mulher. O cálculo é feito tendo como base compromissos assumidos pelos países da região durante a Conferência Regional da Mulher, realizada em 2007, em Quito, no Equador.
A Revista ouviu mulheres de diversos setores da sociedade, inclusive de entidades organizadas, para saber quais são as grandes questões femininas e quais demandam políticas públicas mais imediatas. As principais são aborto, participação política e na administração pública, e violência doméstica. As candidatas Dilma Rousseff (PT) e Marina Silva (PV) se pronunciaram sobre os temas. Até o fechamento da edição, o candidato José Serra (PSDB) não respondeu às perguntas enviadas 10 de agosto.


Participação política
De acordo com dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), 52% dos eleitores aptos a votar em 2010 são mulheres. Apesar dessa maioria, a realidade dos partidos é outra: a subrepresentação feminina nas esferas do poder ainda é um entrave para que suas bandeiras tenham maior visibilidade. A dificuldade em conseguir o mínimo de 30% de participação feminina nas coligações partidárias, como exige a Lei Eleitoral, dá, segundo os movimentos feministas, uma ideia errada sobre o desejo delas em fazer parte do universo político.
Para Fernanda Feitosa, cientista política do Centro Feminista de Estudos e Assessoria (Cfemea), o suposto desinteresse feminino em política é alardeado apenas pelo senso comum. ;A verdade é outra. Vemos nas bases dos partidos que são elas quem mais trabalham: nas associações de bairros, reuniões de pais e mestres das escolas públicas. As mulheres fazem política no dia a dia;, garante. Para que elas apareçam mais em cargos públicos, sugere Fernanda, deve haver um maior investimento na formação política. ;O governo tem que dar oportunidades para que elas cheguem aos cargos de decisão. Até porque trabalhamos com a ideia de que a política é um processo pedagógico, que você aprende fazendo, como dizia Russeau.;
Outra limitação em relação à ocupação de cargos eletivos é o fato de que isso implicaria numa terceira jornada de trabalho, já que a estrutura de gestão do lar ainda ficaria a cargo delas. ;Você pode até ver que a maioria dos parlamentares homens são casados. Entre as mulheres, a maioria é solteira, separada ou viúva. A mulher não vai ter a retaguarda do marido. Se ela se lança, além de vencer todos esses obstáculos da candidatura, ainda terá de lutar contra os que aparecem em casa;, explica.

Trabalho comunitário
A administradora hospitalar Suely Santana da Cruz, 37 anos, fala com orgulho do jardim localizado em sua quadra, no Gama. Ele foi construído graças aos esforços dela e de outras moradoras. Esse é um exemplo da tal política do dia a dia. Para Suely, a participação das mulheres nas áreas administrativas é imprescindível. Não só por conta da sensibilidade com relação aos problemas da comunidade, mas para demonstrar uma maior competitividade delas em relação aos homens. ;Os homens tem muito mais oportunidades e vantagens que as mulheres. Principalmente em questões salariais. Nós fazemos um trabalho mais detalhado, mais bem feito. É preciso visão igual para todos, sem distinção de sexo.; Ela lembra ainda que a administração local também deve estimular a participação feminina, pois ela acredita que tudo começa na comunidade. ;Isso é algo que deve ser trabalhado no próximo governo: se os novos governantes puderem fazer essa mudança, de estimular as mulheres a participarem, elas vão se destacar em projetos que não podem fazer sozinhas mas que, juntas da comunidade, podem mudar a realidade.;

Um efeito colateral
Para os movimentos sociais, a pequena participação da mulher na esfera política está diretamente ligada à sua dupla jornada de trabalho. O Comunicado Mulheres e trabalhos: avanços e continuidades, divulgado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em 2010, concluiu que a desigualdade entre homens e mulheres no mercado ainda está intimamente ligada à responsabilidade delas pelos trabalhos domésticos.
A professora Denize Formiga Menezes Castro, 46 anos, acredita que essa exigência social de arcar com os afazeres da casa atrapalha, inclusive, a educação dos filhos. ;A mulher que trabalha o dia todo tem que deixar os filhos sozinhos. Ao chegar, vai lavar roupas, cuidar da casa. Isso não deixa que ela dê uma atenção escolar para o filho, porque não sobra tempo.;
Sílvia Camurça, educadora do Instituto Feminino para a Democracia ; SOS Corpo, defende o aumento do número de creches e escolas em tempo integral, garantindo para a mulher espaços de cuidados dos filhos e, consequentemente, o tempo necessário para que ela possa cuidar da própria carreira. ;Essa política também faria avançar a democracia participativa das mulheres, fortalecendo, inclusive, os conselhos de participação popular, para que os governos não fiquem reféns das alianças eleitorais.; Sílvia afirma que esse direcionamento poderia ajudar na maior democratização do Estado que, de acordo com ela, não está acostumado à participação popular.
Para a cientista política Fernanda Feitosa, o Estado deve oferecer equipamentos sociais e urbanos, como creches, escolas de tempo integral, lavanderias, etc., para que as tarefas domésticas possam ser divididas igualmente.

Violência doméstica

A cobertura intensa da mídia ao caso Eliza Samúdio, ex-namorada do goleiro Bruno, no Flamengo, deu ainda mais evidência à importância do combate à violência contra a mulher, que já havia recebido mais destaque desde a sanção da lei Maria da Penha. De acordo com pesquisa realizada pelo Centro pelo Direito à Moradia contra Despejos (Cohre), uma em cada quatro mulheres no Brasil apanha. Para Maria José Rosado, coordenadora geral do movimento Católicas pelo Direito de Decidir, a proposição da Lei Maria da Penha já deve ser considerado um avanço. ;Por meio dela, a sociedade começou, de fato, a discutir a violência contra a mulher.;
Para as entrevistadas, o novo presidente da República precisa trabalhar para que não existam alterações na Lei Maria da Penha que diminuam seu rigor. ;No parlamento, estamos acompanhando muitos projetos que descaracterizam a Lei Maria da Penha. Por vivermos em uma sociedade patriarcal, é a Lei que cumpre o papel do Estado em tutelar o elo mais fraco, que na violência doméstica é a mulher. Por uma questão de força física e dependência emocional;, afirma Fernanda Feitosa. Uma das grandes reclamações das mulheres é que as delegacias das mulheres não conseguem dar o apoio necessário.
A enfermeira Shirley de Fátima Dias Pereira, 35 anos, diz que falta um trabalho para as que procuram ajuda que vá além da denúncia. ;Muitas vão denunciar e não são totalmente acolhidas. Elas tinham que receber acompanhamento psicológico, um apoio à segurança, que muitas vezes tem falhado para ela, que já vive com medo.; Shirley afirma que é preciso uma tutela maior do Estado com os casos mais extremos, especialmente em ajuda financeira. ;Muitas não denunciam porque ficam com medo de não ter o que fazer, porque vivem dependentes do marido e voltam para a casa e apanham de novo.;

Aborto
A mais polêmica das lutas femininas também é que a mais rende comentários dispersos dos candidatos. O aborto legal é uma bandeira de luta constante entre os que defendem os direitos da mulher. Os movimentos sociais acreditam em avanços nas discussões do tema durante o mandato do atual presidente. Porém, não foram suficientes. Para Maria José Rosado, do grupo Católicas pelo Direito de Decidir, a comissão tripartite, criada em 2005 e formada por representantes dos poderes Legislativo, Executivo e da sociedade civil, conseguiu propor a primeira revisão da legislação brasileira sobre o aborto. Entretanto, tudo ficou nas proposições.
;O mesmo governo não levou adiante. A comissão deveria terminar com uma legislação que liberasse o acesso das mulheres ao aborto como um direito à cidadania;, afirma. De acordo com o anteprojeto, a descriminalização do aborto aconteceria até a 12; semana de gestação e, caso a gravidez implique em risco de morte ou malformação fetal, em qualquer momento dela. A mudança na lei, contudo, terá de acompanhar uma mudança no pensamento.
Para Maria José, a providência inicial do novo presidente deveria ser a desvinculação total de relações com setores religiosos nas decisões que envolvam a saúde sexual das mulheres. ;O governo deve ser fiel ao princípio constitucional, não vivemos em um estado teocrático. Isso, para nós mulheres e para a discussão do aborto, é fundamental.; Fernanda Feitosa é taxativa. Para ela, o aborto legal não é um direito que deva existir sozinho. Como forma de política pública, o Governo Federal deve dar atenção à saúde integral da mulher. ;Com educação sexual, para prevenir a gravidez indesejada, com o planejamento familiar como política de Estado e o aborto legal para que as mulheres não morram.;

O que dizem as candidatas

Dilma Roussef, do PT
Aborto
;Não acredito que alguma mulher seja favorável ao aborto. É uma situação a que as mulheres recorrem no desespero. Entendo que a legislação atual, que prevê o recurso ao aborto em situações específicas de estupro e de risco à vida da mulher, deve ser mantida. Agora, acho que o Brasil tem de ter uma política de saúde pública para atendimento e assistência às mulheres.;

Violência doméstica
;A Lei Maria da Penha foi uma grande vitória das mulheres. Com a sua aprovação, em 2006, e com a implementação do Pacto Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres, demos passos muito importantes. Para se ter uma ideia, de 2003 a maio deste ano, triplicamos a rede de serviços de atendimento às mulheres vítimas de violência. De 2007 a 2010, investimos mais de R$ 13 milhões na capacitação de agentes públicos que trabalham no atendimento às vítimas. Somamos mais de um milhão de atendimentos no Ligue 180. No entanto, ainda há muito a fazer, mas acredito que a maior vitória deste período foi ter colocado o fenômeno da violência contra a mulher na agenda da gestão pública do Estado brasileiro e no debate da sociedade.;

Participação na política e na administração pública
;No governo Lula, nos empenhamos para promover mais autonomia e mais cidadania para as brasileiras. Desenvolvemos políticas públicas específicas para enfrentar problemas que incidem mais sobre as mulheres, como a violência, doenças específicas e a desigualdade no ambiente de trabalho. Além disso, em muitos programas e ações do governo, demos especial atenção à mulher, como é o caso do Bolsa Família, em que a mulher é a titular preferencial dos benefícios, ou o Minha Casa Minha Vida, em que os títulos de propriedade são emitidos em nome da mulher. No meu governo, se eleita, continuaremos a implementar políticas que promovam a autonomia econômica e financeira das mulheres. No caso das mulheres trabalhadoras com filhos, por exemplo, a construção de creches é um programa muito importante. Também vou continuar apoiando a implementação do II Plano Nacional de Políticas para as Mulheres.;

Marina Silva, do PV


Aborto
;O debate não deve ser reduzido a quem é contra ou a favor. As mulheres que optam pelo aborto passam por um momento de sofrimento, de dor, de desamparo. As consequências emocionais, psíquicas e familiares são dramáticas para a pessoa, que serão levadas para toda a vida. Convivi com amigas e pessoas que fizeram e pude acompanhar o sofrimento delas. Eu não faria um aborto, no entanto, nunca as julguei ou as acusei. Penso que o tema não pode ser tratado subtraindo aspectos complexos dessa decisão. No processo, estão questões de ordens filosóficas, moral, ética e espiritual. O debate ainda não foi feito com a devida profundidade, por isso proponho um plebiscito para que a discussão seja feita e ampliada.;

Violência doméstica
;A Lei Maria da Penha é um marco, mas ainda é preciso avançar, em relação à implementação dos princípios da legislação. São 300 mulheres agredidas por dia dentro de suas casas (62 mil agressões), e 68,1% dos casos de violência contra a mulher é presenciada pelos filhos, 72,1% vivem com o agressor. Nossas propostas: Disque Denúncia acessível em todo o território e articulado com a rede de atendimento à mulher; trabalhar junto com municípios e estados para ampliar a rede de atendimento, com as delegacias, juizados, centros e convivência, abrigos (menos de 3% dos municípios brasileiros têm abrigos. Os juizados ainda não existem em várias cidades do Norte e Nordeste); assistência às famílias e às crianças; humanização no cuidado das vítimas; política de drogas e combate ao crack.;

Participação na política e na administração pública
;A posição e o papel da mulher têm um impacto decisivo na formação das famílias. As mulheres são hoje 51% da população brasileira, e 43,7% da população economicamente ativa do país. O investimento na mulher beneficia toda a família, quando se investe na saúde, na educação e na geração de renda das mulheres, as crianças são mais saudáveis e passam a ter melhor rendimento escolar. Incentivar, entre outras coisas, a participação das mulheres na política. Apesar da lei existir, poucos são os partidos que cumprem com a cota de 30% de mulheres. A liderança feminina para lidar com a multiplicidade e complexidade de desafios do século 21: capacidade de negociação e de se colocar no lugar do outro; ser capaz de, em co-autoria, construir um mundo melhor; pró-atividade; convencer do que ganhar pela força.;