No esboço de Oscar Niemeyer, o Teatro Nacional tinha uma vocação latente. A construção austera, adornada pelo mural de Athos Bulcão, deveria se tornar palco de grandes espetáculos de música erudita. A visão onírica do nosso arquiteto maior só confirmou-se parcialmente: o espaço tem hoje seu próprio corpo sinfônico, a OSTNCS, mas abriga espetáculos ecléticos. Um pouquinho desse idealismo, porém, deve ter se entranhado no solo candango, porque Brasília é um tremendo celeiro de cantoras líricas.
;Uma casa de óperas era o que ele (Niemeyer) queria;, confirma Asta-Rose Alcaide, fundadora da Associação Ópera Brasília. A catarinense, radicada em Brasília desde os anos 1970, assistiu de camarote a essa escalada de talentos. Viúva do maestro português Tomas Alcaide, ela acompanhou de perto os primórdios do teatro e, inclusive, esteve presente no concerto inaugural, regido pelo próprio Claudio Santoro, em 21 de abril de 1981. Para ela, começava ali um período dourado.
De fato, o início da década de 1980 foi marcado por importantes montagens no Teatro Nacional. Despontavam então jovens cantoras, nascidas e formadas em Brasília. Elas encarnaram heroínas e reviveram os enredos grandiosos das obras de Mozart, Bizet, Verdi. Elas foram as próprias ;encantatrizes;, como define o crítico literário suíço Jean Starobinski ; responsáveis por seduzir a plateia como sereias faziam com os marinheiros em alto mar.
Hoje as coisas são diferentes, menos inebriantes. ;Acredito que não há mais divas, mas cantoras de destaque;, assinala Asta-Rose. Para Francisco Frias, diretor de espetáculos e professor da Escola de Música de Brasília, não há mais o glamour da época dourada da diva Maria Callas (1923-1977), por exemplo. ;Ícones custam muito ao teatro. Mais ou menos como acontece com um jogador de futebol;, argumenta.
Fora isso, engana-se quem acha que basta ter uma bela voz para protagonizar Carmem, de Bizet. A preparação é intensa. Cursos, treinos e aquecimento da voz, cuidados redobrados com a saúde e fôlego de atleta para entrar em cena uma, duas, três noites seguidas numa temporada. Outro pré-requisito é dominar, pelo menos, quatro idiomas. Saber se movimentar no palco também é fundamental. ;Ter cabeça também, pois não basta ter voz;, acrescenta Asta-Rose, que frequentemente escuta jovens cantoras para aconselhá-las e encaminhá-las para audições e escolas internacionais.
Bravas guerreiras, as sopranos Denise Tavares e Janette Dornellas são exemplos de encantatrizes da capital. Hoje, a primeira dedica-se mais a recitais e apresentações com orquestras. A segunda transita pelo erudito e popular, mas não recusa convites de teatros para mergulhar num importante papel de ópera. Protagonistas dos primeiros capítulos do canto lírico na capital, Denise e Janette já interpretaram heroínas apaixonadas, loucas, ambiciosas e destemidas. Contemporâneas, destacaram-se dentro e fora do país. Nesta matéria, elas descortinam suas histórias no palco.
Ao olhar para o começo de tudo, a cantora lírica Denise Tavares, 45 anos, suspira: ;Fui privilegiada;. Também pudera. Essa paulista chegou à capital em 1975, período em que mestres como Claudio Santoro e Levino de Alcântara dirigiam os principais espaços de estudo da música. O primeiro foi diretor do departamento de música da Universidade de Brasília (UnB), enquanto o segundo regeu a Escola de Música de Brasília. ;Pude participar de tudo o que de mais rico a cidade pôde oferecer nessa época;, lembra.
Com apenas 17 anos, Denise já se apresentava na mais célebre ópera de Mozart, A flauta mágica. No papel do segundo gênio, ficou pendurada numa nuvem que trombou com as árvores do cenário. Mesmo com medo de cair, a jovem cantora aguentou firme, corajosa. A história é apenas uma de tantas que Denise recorda, com carinho, do começo como cantora lírica.
Após concluir os estudos em Brasília, partiu para Londres, onde fez um mestrado em ópera na conceituada Royal College of Music. Após apresentações na Inglaterra e na Alemanha, voltou ao Brasil. No currículo, interpretou quase todos os personagens femininos do seu tipo vocal: soprano. Mas a ópera que costurou diferentes períodos da vida de Denise foi mesmo A flauta mágica. Da obra ainda fez: a Primeira dama, Papagena, Pamina e a Rainha da noite. ;Acho que nesse espetáculo tenho cadeira cativa;, brinca. Mesmo com tanto carinho pela peça, Denise não gosta de escolher um personagem favorito. ;Quando você trabalha, naquele momento o seu papel é o mais fascinante.;
De tipo mignon, Denise toma muito cuidado com a alimentação e o preparo físico para não se desgastar nos espetáculo. Alguns podem durar até quatro horas. Aquece a voz duas vezes ao dia por quase duas horas. Descanso? Apenas final de semana e feriados. ;É como malhação. Só que você faz alongamentos e exercícios para as cordas vocais. Sinto que estou sempre pronta para correr uma maratona;, compara.
A preparação também exige o conhecimento de obras e idiomas. A soprano domina alemão, italiano e inglês, mas também já cantou em russo, polonês, espanhol e francês. Também toca piano e interpreta como a mesma desenvoltura de uma atriz. Alegra-se com as aventuras da personagem, mas também sofre com a dor da heroína que perde um amor, morre ou enlouquece. ;Para sair da personagem demoro uma semana; dá sempre muita pena. Fica um vazio;.
Mesmo ao longo de 25 anos de carreira, a sensibilidade que Denise transborda em cena troca de pele com as protagonistas de La traviatta ou La boh;me, para citar algumas. No palco, é tudo uma coisa só, já que a tragédia ou a comédia tomam emprestado o corpo da cantora e da atriz para contar uma história. Como se fosse mágica. ;Você faz a maquiagem, aquece a voz, alonga, respira fundo. Na coxia, você vê o maquinista, o elenco, o coral; o palco é uma coisa. Mas quando você entra na caixa cênica é outra história. Ali começa o lúdico, a fantasia. E você faz parte dessa fantasia;.
Elegância no palco misturada à atitude rock;n;roll. Assim é Janette Dornellas, 45 anos, que foi mezzo-soprano e passou a ser soprano de timbre único. Convidada para interpretar papéis que só ela dá conta de interpretar por dias seguidos de temporada, como Turandot, da ópera homônima de Puccini, Janette sabe que dois trunfos de um artista de ópera são: resistência vocal e despreendimento no palco. ;Já raspei a cabeça, fiquei pelada no palco, subi no trono, me arrastei no chão com um vestido de R$ 5 mil reais;, conta.
Tamanha desenvoltura em cena começou na adolescência. Aos 19 anos, viu um cartaz da audição para o coro da ópera Porgy and Bess, de Gershwin. Na fila, estava uma jovem de talento promissor chamada Cássia Eller. Selecionada, Janette ficou muito amiga da cantora tímida de voz rasgada com quem compartilhou palcos e shows antes de enveredar pela música erudita. Também aprendeu as artimanhas do teatro com amigos que cursavam a Faculdade Dulcina de Moraes.
Ao contrário de Cássia, o cenário que escolheu foi outro. Fez bacharelado em canto na UnB e estrelou sua primeira ópera aos 21 anos. O menino e os sortilégios, de Ravel, em 1986, teve direção cênica de Hugo Rodas. Montagem da Associação Ópera Brasília, responsável por produzir espetáculos que impulsionaram a carreira de outros cantores líricos da cidade. ;Nessa ópera, passei por muita dor: estava com uma infecção no tímpano. Foi aí que vi como a barra era pesada. Essa não é uma carreira que se começa cedo. Para cantar uma ópera tem que ter maturidade física e emocional.;
Desde então, dedicação, dedicação e mais dedicação. Na bagagem, cursos dentro e fora do país. Em Portland, Oregon (EUA), teve aulas com mestres de peso, como Franco Iglesias, que foi professor de Plácido Domingos. ;Dediquei muitos anos ao erudito. Foi aí que me apaixonei pela ópera, uma linguagem incrível que une minhas duas paixões: música e teatro;.
Com mais de 40 óperas no currículo, Janette guarda com carinho cada uma das montagens, fossem em palcos de teatros consagrados ou em praças. Em especial Carmem, de Bizet, ópera que já lhe rendeu muitos elogios da crítica. Sob a batuta do maestro Silvio Barbato, guarda a recordação da apresentação na Torre de TV, em 2007. ;Cantar para uma plateia de 42 mil pessoas foi um dos momentos mais emocionantes na minha carreira;, recorda.
Dentre outras poderosas mulheres que interpretou, destaca Lady Macbeth (Macbeth), dirigida por Sérgio Brito, Amnéres (Aída), Turandot (Turandot) e Leonora (Fidélio). ;Só papel heavy metal. Ou seja, papéis de muita dificuldade técnica e muita resistência. Tem que ser triatleta;, brinca. Para o tipo físico, a voz de Janette é desproporcional. Sua potência é mais facilmente encontrada em cantoras corpulentas.
Em setembro, Janette parte para Belo Horizonte. Passará por um mês de ensaios até a estreia em outubro de um grande sonho. O papel de Abigail na ópera Nabucco, de Verdi. Enquanto não se veste de ambiciosa escrava filha do rei, a cantora divide o tempo com as duas filhas, canta em produções de pequeno porte, mas não deixa de se envolver com a música. Procura popularizar a ópera com montagens de baixo custo e poucos personagens. Já traduziu e apresentou O Telefone, de Giancarlo Menotti, em escolas da zona rural. ;Ópera não é só superprodução. Basta criatividade. Crianças, jovens e adultos adoram; mas, para isso, precisam conhecê-la.;
Heroínas imortais
É uma ironia, mas as grandes personagens femininas do mundo da ópera costumam morrer no fim. E, se não morrem, sofrem terrivelmente, as pobrezinhas. Tsc, tsc; Talvez seja esse o preço a pagar por um poder de sedução que se mantém aceso séculos a fio, a cada nova encenação. A Revista lembra aos leitores as desventuras de três musas eternas: Carmen, Salomé e Lúcia de Lammermoor.
Carmen
De Georges Bizet (1838-1875)
Estreia: Paris, 1875.
Carmen chocou o público em sua estreia e deu muitos dissabores para seu criador, que morreu do coração três meses depois. O drama sangrento e desbocado é hoje considerado uma obra-prima sem igual ; a ópera mais popular de todos os tempos. Vejamos por quê: na Espanha, o cabo Don José é encarregado de prender Carmem, uma cigana leviana que havia provocado uma briga em uma fábrica de charutos. A danada tem a pomba-gira forte e seduz seu algoz. José deserta e foge com ela para as montanhas. A cigana, porém, começa a se engraçar com Escamillo, um célebre toureiro. José a flagra nos braços do outro em uma tourada e, corroído pelo ciúme, a apunhala.
Salomé
De Richard Strauss (1864-1949)
Estreia: Dresden, 1905.
História tão sensual quanto macabra, Salomé é uma adaptação da obra homônima de Oscar Wilde. A ação se passa durante um festim no palácio de Herodes, padrasto da belíssima Salomé. Ébrio de vinho e de concupiscência, o rei implora a ela que dance para ele. É a dança dos sete véus, em cujo final Salomé, quase nua, exige uma recompensa: a cabeça de São João Batista numa bandeja de prata. Quando esta lhe é trazida, ela beija-lhe a boca, causando horror a todos. Os soldados investem contra ela e a matam esmagada sob seus escudos.
Lúcia de Lammermoor
De Gaetano Donizetti (1797-1848)
Estreia: Nápoles, 1835
Donizetti é considerado um dos maiores representantes do chamado bel canto romântico, espécie de síntese entre o canto ornamentado e a atuação dramática. E põe drama nisso: autor escreveu 76 óperas! Nesse vasto universo, o que torna Lúcia tão especial? Para começar, a mocinha, já comprometida, se apaixona pelo homem errado, um tal Edgar Ravenswood. O amado parte para a França. Desiludida, Lúcia sobe ao altar com Lord Arthur, para quem estava prometida. Na hora da cerimônia, eis que Edgar aparece a apronta um barraco. O casamento, porém, não é anulado. E as núpcias são macabras: em um acesso de loucura, Lúcia mata o esposo. Ao saber do triste fim da amada, Arthur se apunhala. Desce o pano.
Fonte: Guia da Ópera ; 60 óperas célebres resumidas e comentadas, edição e comentários de Jeanne Suhamy (Ed.L Pocket, 2007)