Proponho, caro leitor, um desafio: seria o senhor capaz de dizer quando reconquistaremos a nossa antiga vida? Não digo o retorno ao velho normal, porque este, definitivamente, nunca mais voltará. Não há como restabelecer a rotina, agir como se tudo tivesse ocorrido de forma passageira, esquecer os efeitos permanentes de uma doença que caminha para ceifar 100 mil almas brasileiras nos próximos dias, exerce um impacto brutal na economia e, acima de tudo, mexe muito com a nossa cabeça. As consequências da pandemia se estenderão para muito além de 2020, seja nas grandes questões que afetam o mundo e o Brasil, seja na nossa rotina cotidiana. Ninguém que tenha um pingo de consciência, responsabilidade e empatia pode sequer arriscar quando, por exemplo, poderemos sair ao ar livre sem máscara. Evidentemente, há sempre aqueles que pouco se importam com o coletivo e, tal qual o desembargador de Santos caminha de cabeça erguida e dedo em riste para ostentar uma suposta liberdade individual. Deixando de lado os equivocados, é impossível prever, no atual contexto, quando os brasileiros poderão retomar ao trabalho, à escola, à academia, ao restaurante, ao bar da esquina, sem se preocupar com proteção facial, álcool em gel, distanciamento de dois metros, sintomas de covid, grupo de risco, roupa para vestir em casa e roupa para usar na rua. Essa é a realidade. Essa será a nossa realidade por muito tempo. Não adianta negar.
Pois foi justamente o negacionismo sobre a covid-19 que ganhou destaque no noticiário esta semana. Documentos oficiais confirmam que o governo federal tem uma percepção peculiar da pandemia no Brasil, alheia à realidade dos fatos. Em maio, integrantes do comitê de emergência formado para avaliar o enfrentamento da doença alertaram para o risco de um encalhe de cloroquina em razão do excesso de demanda por parte do ministério da Saúde — a pasta chegou a acumular 4 milhões de comprimidos. Ressalte-se, sempre, que a hidroxicloroquina é um medicamento reiteradamente considerado ineficiente para combater os efeitos do novo coronavírus. Afora o fato de se tratar de um monumental desperdício de dinheiro público, não resta dúvida, nem para as emas do Alvorada, a obsessão do governo federal pelo uso da cloroquina.
Um segundo documento, também submetido ao ministério da Saúde em maio, alertou para a urgência de se adotar, com rigor, o distanciamento social. Seria a medida necessária para abreviar uma situação pandêmica que poderia durar de um a dois anos. Mesmo ante todas as evidências, o ministério da Saúde não encontrou razões para, quem sabe, dar início a uma guinada e atuar fortemente para auxiliar governadores e prefeitos que estão no front da pandemia; ou, ainda, ajudar a população brasileira a sair da enorme confusão que se instalou no país na atual fase de flexibilização em meio à escalada da covid-19. Ao invés de reconhecer a gravidade do momento e defender o interesse nacional em uma tragédia sanitária, o governo federal esquivou-se. “Não cabe ao ministro executar essa ou aquela medida de distanciamento social. Ou me pronunciar sobre ação do gestor. O gestor é que, por lei, tem essa obrigação. Nessa linha, seria um pronunciamento praticamente político, e não é da minha linha”, disse Eduardo Pazuello. Ou seja: além de gastar milhões de reais na compra de um medicamento que em nada contribui para o combate à urgência da covid, o ministro interino se recusa a exercer o natural papel de contribuir com os estados e municípios na busca da melhor estratégia para o distanciamento social. Não custa lembrar, ainda, que o negacionismo na gestão de Pazuello começou quando a pasta tentou implementar uma contagem estapafúrdia de mortes confirmadas e mortes notificadas da covid-19 no Brasil. Foi preciso o Supremo Tribunal Federal determinar a manutenção da atual metodologia para que os brasileiros tivessem assegurado o direito constitucional de acesso à informação pública.
A postura negacionista no Ministério da Saúde resulta de um vírus que, progressivamente, contaminou a pasta. A infecção começou quando a postura detalhista e ativa de Mandetta, com entrevistas diárias e cotidianas, começou a incomodar. O que fazer? Demita-se Mandetta. Passou-se então para a gestão de Nelson Teich, marcada pela brevidade e pela indefinição. Foi a pressão pela cloroquina que forçou Teich a pedir demissão, mantendo-se fiel ao juramento à medicina e à sua reputação profissional. E assim chegamos à atual situação, a um ministério interino, sem rosto, sem cabeça. Sabemos que a inépcia neste posto-chave durante a pandemia tem origem no Palácio do Planalto. Tornou-se rotina em Brasília observar o chefe do governo passear sem máscara, propagandear cloroquina, formar aglomerações sem a menor cerimônia, desprezar o trabalho de governadores e prefeitos. Mas o negacionismo de Estado pode sofrer mutação. Basta ver a nova postura de Donald Trump, obrigado a alertar os Estados Unidos sobre o risco da covid-19 e a recomendar o uso de máscara. O presidente dos EUA pode alegar que, finalmente, caiu em si e percebeu a dimensão sanitária e econômica da covid. Mas está difícil ver outra razão que não sejam as eleições, marcadas para novembro.