A herança escravocrata da sociedade brasileira está na raiz de fenômenos políticos como a ascensão de Jair Bolsonaro à presidência da República, mas explica também a corrupção, a desigualdade social e, mais recentemente, a derrota para a pandemia do novo coronavírus. A opinião é de um dos maiores estudiosos do comportamento brasileiro, o antropólogo fluminense Roberto DaMatta, 83 anos. Ele é mestre e doutor pela Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, autor de vários livros e de centenas de artigos sobre o tema.
Para o pesquisador, que é professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), o brasileiro é inconsciente em relação a essa cultura de subordinação que vem dos primórdios da escravidão, de se colocar como superior ou como inferior. “É isso que faz com que você tenha um presidente que exerce essa arrogância toda, até de receitar remédios que a Organização Mundial da Saúde já disse que fazem mal”, diz o docente, em entrevista ao Correio, demonstrando preocupação com a escalada autoritária do chefe do Executivo.
Para ele, o Brasil vive um momento de “erosão”, com o risco de implosão das instituições estabelecidas que levaram muito tempo para se consolidar. “Eu sinto que existe uma dimensão autoritária. Agora, se esse autoritarismo vai se fechar num fascismo, ou num stalinismo, que são mais ou menos parecidos, no sentido de que você não pode ter oposição, eu não sei, mas é um sintoma. Agora, é um sintoma sério, porque junto com isso tem uma pandemia”, alerta o antropólogo. A seguir, os principais trechos da entrevista.
A pandemia do novo coronavírus colocou em xeque, no Brasil e em todo o mundo, os políticos, a economia, os sistemas de saúde, e também o grau de civilização de cada país. Por que estamos perdendo essa guerra?
O Brasil, eu não sei se seria uma ofensa à civilização falar que o Brasil é um país civilizado. Tem duas maneiras de se ler o Brasil. Você pode ler o Brasil como um Estado nacional moderno, que tem uma República, tem uma bandeira, tem uma moeda, e você pode ler o Brasil de uma outra forma, que é de forma antropológica, sociológica, que é o que eu fiz, durante os últimos quarenta anos, que é a leitura através dos valores. Essas leituras são conflitivas. Se você olhar o Brasil como uma República que nasceu no final do século XIX, logo depois da abolição da escravatura, essa contradição aparece de uma maneira óbvia. Nós proclamamos a República, mas nós não somos republicanos. Por que não somos republicanos? Porque não nos preocupamos com a sorte daqueles escravos, que vieram da África, e que eram quem carregava o Brasil nas costas. E foi aí que começamos um grande movimento transumano, de imigração de massa, de trazer estrangeiros brancos para trabalharem no Brasil. E demos a esses estrangeiros condições que não demos aos negros que haviam sido alforriados.
Quer dizer que muito do que somos hoje tem a ver com o período logo após a abolição da escravatura?
A questão da civilização é complicada no Brasil porque a libertação dos escravos não foi de uma vez só. A primeira etapa foi a proibição do tráfico negreiro, depois a lei que libertou quem tinha mais de 60 anos, seguida da Lei do Ventre Livre. É uma sabedoria tão grande para promover o atraso e a desigualdade que é uma sabedoria, digamos assim, salomônica. Por que imagina você, no meio dessas leis, você é um homem de 30 anos, seu pai está livre, porque tem mais de 60 anos, e seu filho está livre, e você é escravo. E sua mulher também é escrava. Então essa escravidão reproduz, de uma certa maneira, a mesma segmentação que existe na sociedade dominante, onde você tem os muito ricos, e que controlam o sistema político, e você tem os muito pobres, os marginais, os miseráveis, o que a gente chama hoje de vulneráveis, e no meio você tem várias camadas que se organizam de diversas maneiras, que são as camadas médias, como chamava meu querido amigo Gilberto Velho [pioneiro da antropologia urbana no país], que, por sua vez, se estruturam. Quando não se estruturam de maneira adequadamente econômica e política, se estruturam socialmente, em cerimônias, em maneira de falar. Porque tudo isso é observado no Brasil – se fala errado ou não fala, se é mais escuro ou mais claro, como é que são os dentes, se corta a unha. Nós somos uma sociedade que tem um preconceito de marca, de aparência.
O que é preciso para mudar isso?
Em matéria de civilização, o que é que nós estamos vivendo? Eu acho que estamos vivendo um momento em que é fundamental a consciência de que é preciso interligar esse Brasil, interligar a sociedade, os seus costumes, os seus hábitos, as suas desigualdades que vêm lá da escravidão, uma matriz aristocrática, que tinha na base produtiva o trabalho escravo. O que nós estamos vivendo hoje é que é preciso que haja uma melhor relação, com muita clareza, entre o Estado e a sociedade brasileira. Não pode haver um descompasso, no qual quem está no Estado tira da sociedade e a ela não serve.
O que a pandemia revela do Brasil?
A pandemia revela uma total falta de organização, uma total falta de entendimento dos papéis sociais nessa emergência. Não é possível quando as autoridades de saúde mandam você usar uma máscara que o presidente da República apareça ostensivamente tirando a máscara. Isso é inadmissível. Não funciona. Não é assim que os seres humanos funcionam. Você não pode chegar para o seu filho e não ensinar o seu filho a usar o banheiro. Quem é que dá o exemplo? Além disso, você não tem sincronia no país. O Brasil não é sincronizado. Porque cada pessoa tem as ambições. Uma sociedade civilizada é uma sociedade que tem uma base educacional, pedagógica, que é um acordo mínimo entre as elites, entre o povo, os aristocratas, os milionários, porque há certas coisas com as quais todos nós concordamos. Se há uma fila, por exemplo, todos concordam que a prioridade deve ser dada aos mais velhos.
E os descompassos na Educação, ao que o senhor atribui?
Eu morei em uma cidade de Minas Gerais chamada São João do Nepomuceno. E visitei várias cidades da zona da mata. Eu era menino, por volta da década de 1940. Nessa época, um dos prédios mais bonitos, se não o mais bonito da cidade, era o do grupo escolar. Eu, aqui em Niterói [RJ], na década de 1950, estudei, no curso secundário, no Liceu Nilo Peçanha; os liceus tinham carteiras de jacarandá. Eram os que pagavam melhor os professores. Mas nós, da classe média branca, liquidamos isso. Liquidamos, porque tinha muitos 'pretinhos' que estudavam nessas escolas. Então nós inventamos os colégios particulares, experimentais, porque diziam que tinham uma pedagogia nova, não sei o quê. E esse ensino de qualidade foi todo por água abaixo. Da mesma forma como acabamos com as estradas de ferro e colocamos automóveis na rua.
Qual a relação entre o grau de civilização da sociedade brasileira e a eleição do presidente Jair Bolsonaro?
Quem inventou o Bolsonaro? Quem foi que botou esse ator no palco? Pergunta isso aos eleitores. Porque a política é um palco. Tem gente que entra, tem gente que sai. Só que, no Brasil, pouca gente sai, e muita gente fica. E não só fica como também nomeia filhos. Se você pegar em Brasília a genealogia dos políticos vai ver que há dinastias de políticos em Brasília. E o que o Bolsonaro prometeu não fazer ele está fazendo. Então a pergunta que a gente faz é essa: como é que esse cara foi eleito? Como é que o capitão foi eleito? Com todos os defeitos e eventuais qualidades, porque ali tem alguma coisa que puxou a eleição dele, por que foi eleito? Quais foram as esperanças que agenciaram os eleitores do Bolsonaro? Uma delas, obviamente, foi a Operação Lava Jato. Eu escrevi até um artigo sobre isso. A Operação Lava Jato hoje está sendo reduzida, e talvez vá acabar.
Por que o senhor pensa dessa forma?
Porque nós não conseguimos diminuir a desigualdade e a aristocratização nesse país. Essa coisa dos relacionamentos pessoais serem protagonistas fundamentais no uso do dinheiro público, dos projetos públicos, e na definição eleitoral da política, no seu sentido mais superficial possível que é a eleição. A eleição é importantíssima, mas, uma vez eleito, você vai querer saber que contribuição esse sujeito vai dar. E para isso é que é preciso ter partidos fortes. Partidos políticos que tenham, realmente, um programa. Mas o que a gente fez com os partidos políticos? Criamos o fundo partidário. Você e eu pagamos um fundo para o cara inventar partido político! Isso não existe em menhum país do mundo. A sociedade cria um fundo de bilhões de reais para dar para meia dúzia inventar partidos políticos, para criar um troço chamado Centrão. O que é o Centrão? Para um país que está querento retirar privilégios, o Centrão é o centro da corda. É como o cabo de guerra, o Centrão fica no meio, não deixa a corda andar, ninguém ganha. A corda vai arrebentar, mas ninguém ganha o jogo. E tudo mundo olhando os privilégios que essa gente tem.
Como o senhor vê a atuação do presidente Jair Bolsonaro na pandemia?
Eu nem sei qual é o substantivo nem o adjetivo que eu posso usar. É um comportamento nulo, remando contra a corrente. O papel do presidente da República é um papel que, numa democracia, em que milhões de pessoas votaram nele, agenciadas por esperanças por melhora. O homem foi vítima de uma facada durante a campanha, isso nunca aconteceu na história do Brasil. Coisa muito grave. Depois que ele sobreviveu, as pessoas estavam esperando um comportamento, no mínimo, um pouco mais sensato, não vou falar em razoável, mas sensato. Você não pode desafiar as pessoas não usamdo máscara, andando de barco, mesmo sabendo que está sendo filmado. É uma maneira totalmente irracional de você se projetar, porque você se projeta invertendo o papel que você deve ocupar. Ao invés de ser o presidente, o líder, você atua de maneira antipatriótica. E ele, o presidente, foi do Exército.
O senhor acha, então, que o presidente está dando mau exemplo?
A minha crítica é pessimista, mas construtiva, é você saber as implicações do papel que você ocupa. O presidente, o comandante, o chefe de família, o governador, o prefeito, o diretor da escola, o professor, ele é o cara que deve dar o exemplo. O professor não pode rasgar o livro na frente dos alunos. O político não pode prometer uma coisa em campanha, e na presidência ele ter uma relação com um elemento que é crítico no protagonismo da corrupção à brasileira, que é justamente o compadrio. O Bolsonaro faz tudo para defender os filhos. Não pode. Mas, sobretudo, com um vocabulário, com um tom de voz, com uma agressividade que revela uma pessoa instável. O que você quer no chefe de um país, mesmo que ele seja instável, é que pelo menos pareça estável. Tem um elemento de dramaturgia, porque é um cargo dramático. Você pegar um país que estava vivendo uma crise econômica enorme, que tinha “impichado” uma presidente, exatamente por causa disso, porque ela tinha levado o país a uma crise, e você chega ao poder e se liga às zonas mais obscuras da ideologia contrária, de direita. E você tem uma relação com a sua família, com seus filhos, uma relação simbiótica, porque você tem que defender esses filhos.
Em Carnavais, Malandros e Heróis, que completou 40 anos em 2019, o senhor abordou algo enraizado na sociedade brasileira: a batida frase “Você sabe com quem está falando?”. Recentemente, um fiscal da prefeitura do Rio foi ofendido por um casal que usou essa pergunta. Após todos esses anos, o Brasil não conseguiu evoluir nesse sentido?
Não evoluiu e é por causa disso tudo que eu falei para você. É uma aristocratização. O que nós estamos buscando, em termos de objetivo de vida, qualquer profissão que você tenha, é ficar famoso, porque você sabe que ficando famoso você vai, eventualmente, ter dinheiro, o que é importante para viver, e viver confortavelmente é importante, e a conquista disso te leva a sentir uma superioridade profética. Aí você vai poder entrar em qualquer lugar, vai poder fazer qualquer coisa. Nesse ensaio que você citou, é um ritual de colocar as pessoas em uma situação inferior. Você só faz essa pergunta para inferiorizar a pessoa. Eu li 500 livros em relação a esse assunto. É uma posição aristocrática. O que é uma sociedade aristocrática? Numa sociedade aristocrática não existe política nem mérito; você já nasce rei. Não é preciso falar de luta de classes quando você tem algo como 'Você sabe com quem está falando?'. Isso não acaba, ninguém vê isso como problema.
O senhor está dizendo que isso está normalizado no Brasil?
O maior problema em qualquer sociedade, em qualquer psicologia, é você ter uma coisa sobre a qual não tem consciência. O Brasil é inconsciente em relação a essa cultura de subordinação que veio lá da escravidão, de você se colocar como superior ou como inferior. Esse que é o ponto chave do sistema. É isso que faz com que você tenha um presidente que exerce essa arrogância toda, até de receitar remédios que a Organização Mundial da Saúde já disse que fazem mal.
O TCU descobriu que houve mais de 600 mil pagamentos indevidos do auxílio emergencial, destinado a remediar os impactos da pandemia. O que isso diz da nossa sociedade?
O que é que define a malandragem no Brasil? A malandragem está sempre no fio da navalha; é uma coisa que não é totalmente ilegal mas também não é completamente legal. É um tipo de esperteza. A gente é esperto, quer tirar vantagem de tudo. Então o que é que aconteceu? Quando houve esse anúncio da distribuição do auxílio emergencial para as pessoas vulneráveis, eu pensei: 'vai ter gente de classe média que vai se candidatar'. Porque o governo está distribuindo dinheiro. Isso é a caracterização cabal de uma sociedade aristocrática, onde o rei distribui dinheiro, onde o rei passa de carruagem e joga dinheiro. Isso aconteceu aqui no Brasil quando a Carlota Joaquina saída na carruagem dela, ou o rei Dom João VI saía e jogava pela janela da carruagem, jogava moedas para o povo. Isso é típico de uma sociedade aristocrática pré-revolução francesa. Você ter essa aceitação, essa internalização profunda de inferioridade e de superioridade, da nossa família. Qual a história da maioria das famílias brasileiras? Todo mundo era rico e perdeu dinheiro, e agora nós estamos aqui batalhando. São essas fábulas familiares que nos mostram a nossa profunda nostalgia de uma sociedade monárquica. Então a gente quer um monarca. Quem é eleito presidente, se bobear, com raras exceções, vira monarca, porque pode fazer tudo. E é por isso que a gente não consegue acabar com o foro privilegiado.
O que mais o senhor aborda em Carnavais, Malandros e Heróis?
Abordei também que um dos problemas densos no Brasil, do ponto de vista sociológico, é que quem obedece às regras e às leis é inferior. Isso eu concluiu nesse meu ensaio. Eu entrevistei, mais ou menos umas duzentos e cinquenta pessoas. Eu fazia uma pergunta para todo mundo: 'O que você acha, como você classificaria uma pessoa que segue todas as regras?'. Respostas: 'É um babaca', enquanto todos nós somos malandros. Somos espertos. É o jeitinho brasileiro, nós não somos bobos, nós somos vivos. Todas essas definições, de esperteza. A ideia é essa no Brasil. Isso não vai acabar.
O governo tem sido alvo de protestos contra o fascismo e o racismo. O senhor vê a presença desses dois elementos no atual governo?
Sem dúvida. A gente está vivendo um momento de erosão, e correndo o risco de uma implosão das instituições estabelecidas que custaram muito a se firmar, ou pelo menos a se conformar. No caso brasileiro, isso não tem dúvida de que estamos vivendo. Começa com o próprio comportamento do presidente da República, dos aliados desse presidente e da família desse presidente. É uma coisa muito arriscada, muito delicada e muito perigosa. Todo mundo está falando nisso, eu não estou sozinho. Há uma decepção enorme em relação àqueles que votaram nesse presidente com o comportamento dele, com as atitudes dele. Eu escrevi um artigo sobre isso. Aquela reunião ministerial de 22 de abril, por exemplo, foi uma das piores coisas que eu já vi. Um líder promove o uso de palavrão, ele promove a agressão, ele promove o 'vamos passar a boiada, que agora ninguém está vendo', ele promove um comportamento que é desleal com aquelas pessoas que estão ali para servir ao Brasil e não para ser servidas. Eu sinto que existe uma dimensão autoritária. Agora, se esse autoritarismo vai se fechar num fascismo, ou seja, num fascismo ou num stalinismo, que são mais ou menos parecidos, no sentido de que você não pode ter oposição, eu não sei, mas é um sintoma. Agora, é um sintoma sério, porque junto com isso tem uma pandemia.