Um ano e meio após tomar posse com a bandeira do combate à corrupção e à “velha política”, o presidente Jair Bolsonaro se vê acuado por investigações que trazem incertezas para o futuro do mandato. Isolado politicamente, o chefe do governo acabou sucumbindo a manobras que antes condenava, como a entrega de cargos ao Centrão para barrar um eventual processo de impeachment no Congresso. Esses movimentos, em sentido oposto às promessas de campanha e mais identificados com a tradição política brasileira, revelam semelhanças entre a postura atual de Bolsonaro e a adotada pelo ex-presidente Lula (PT) em 2005, durante o estrondoso escândalo do mensalão.
Beneficiado pela onda antipetista que marcou as eleições de 2018, o presidente, hoje, é alvo de mais de 40 pedidos de impeachment na Câmara dos Deputados. Além disso, é investigado no Supremo Tribunal Federal (STF) por suspeita de interferência na Polícia Federal e responde a processos no Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Também tem tido muita dor de cabeça com as apurações do Ministério Público do Rio de Janeiro sobre as relações financeiras entre o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ) e o ex-assessor parlamentar Fabrício Queiroz, preso desde 18 de junho.
O momento de Bolsonaro guarda uma pressão similar à enfrentada, em 2005, por Lula. Naquela época, o então presidente chegou a ter a destituição dada como certa, enquanto o STF avançava com a Ação Penal nº 470, o chamado processo do mensalão. Vinte e cinco aliados do petista foram condenados por envolvimento no esquema de desvio de dinheiro público para a compra de apoio político.
Uma das principais semelhanças entre os gestos de Bolsonaro e de Lula reside na barganha pelo apoio político do Centrão, um bloco parlamentar de centro-direita conhecido pela atuação fisiológica. Se, durante o mensalão, os parlamentares desse grupo eram pagos em dinheiro para apoiar o governo, agora eles comandam orçamentos bilionários de importantes estatais e autarquias, como o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), cuja verba anual é de R$ 54 bilhões. Um dos maiores expoentes do Centrão, o ex-deputado Roberto Jefferson (PTB), condenado e preso no mensalão, hoje é um dos principais aliados de Bolsonaro.
Além desse ponto em comum entre os adversários políticos, Bolsonaro agora tenta demonstrar uma preocupação com os mais pobres, uma tradicional bandeira petista. O capitão reformado, pressionado pelo desastre da passagem do novo coronavírus pelo país, anunciou a prorrogação do auxílio emergencial por mais dois meses, a um custo de R$ 100 bilhões, o dobro do que queria o Ministério da Economia. Também lançará o Renda Brasil, em substituição ao Bolsa Família e que unificará diversos benefícios. Para ampliar o número de beneficiários, o novo programa utilizará os dados do auxílio emergencial.
O cientista político André Pereira César, da Hold Assessoria Legislativa, lembra que Lula pavimentou o caminho para a reeleição com a ampliação dos recursos do Bolsa Família. O analista também recorda que, com isso, o petista ainda conseguiu fazer a sucessora, Dilma Rousseff.
“O ex-presidente Lula perdeu muito apoio com o escândalo do mensalão. A classe média, que tinha dado um cheque em branco para ele, deixou de apoiá-lo. O que ele fez? Escorou-se nos extratos mais carentes da sociedade, via políticas assistenciais, em especial o Bolsa Família. Foi um erro da oposição acreditar que ele sangraria até perder a eleição. A partir do reforço no aspecto social, Lula obteve um apoio maciço, em especial do Norte e do Nordeste, e conseguiu a reeleição”, disse César. “É exatamente a mesma estratégia que tem sido adotada por Bolsonaro”, observa.
Por traz dessa repentina guinada para o social está o temor do Planalto de que, após o arrefecimento da pandemia, a população tome as ruas para exigir o impeachment de Bolsonaro. Segundo avaliação de conselheiros do presidente, a melhor saída é colocar dinheiro no bolso dos mais necessitados. Eles confiam que, se conseguirem o apoio desse segmento da população, as chances de um impedimento serão remotas.
Recessão
Apoiadores do presidente apostam que ele recuperará o fôlego a ponto de buscar a reeleição em 2022. A grande dificuldade, porém, é que o país enfrenta a pior recessão da história, desemprego em alta e uma crise sanitária que está longe de acabar. Um cenário bem desfavorável em comparação ao vigente durante o governo Lula, quando a economia estava em franca expansão, a inflação se encontrava sob controle e houve a entrada de uma enxurrada de dólares no país, devido ao boom das commodities. A esses fatores, somou-se um consistente processo de inclusão social.
Outro complicador para Bolsonaro é de natureza familiar. Durante os escândalos que mancharam a política brasileira, uma das estratégias mais comuns dos presidentes foi a de se distanciar de aliados enrolados com a Justiça. Foi assim com Lula, que afastou o ex-ministro José Dirceu do governo, depois de ele ter sido apontado como principal mentor do mensalão. Para Bolsonaro, no entanto, tem sido bem difícil, pois é praticamente impossível se desvencilhar de um filho.
Flávio Bolsonaro é investigado pelo MP do Rio por suspeitas de crimes como peculato, organização criminosa e lavagem de dinheiro. Segundo os procuradores, ele e Queiroz comandavam um esquema de rachadinha no gabinete que o parlamentar ocupava quando era deputado estadual na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj). Nessa prática, os funcionários devolvem parte dos salários ao parlamentar.
O deputado Carlos Jordy (PSL-RJ) é um dos que apostam na reeleição de Bolsonaro em 2022. Segundo ele, o presidente tem a favor o fato de não se desviar da agenda de reformas econômicas com as quais se comprometeu ainda na campanha eleitoral. O deputado também citou como trunfo os investimentos federais em infraestrutura.
“O nosso momento, antes da pandemia, não era tão favorável, mas, ainda assim, as medidas econômicas tomadas pelo presidente Bolsonaro e pelo ministro Paulo Guedes (da Economia) estavam repercutindo muito bem, reforçando a credibilidade do Brasil”, afirma Jordy.
O deputado Alessandro Molon (PSB-RJ) acredita que Bolsonaro talvez nem complete o mandato, devido às sucessivas crises que tem criado desde a posse como presidente. “O extremismo dele, a insistência em dividir o país, os ataques à ciência frustraram os que acreditaram que ele poderia representar uma recuperação do Brasil. É um presidente despreparado, que está conduzindo o Brasil a um desastre no meio de uma pandemia”, diz.
Relembre
Mensalão: do pacotinho à condenação
» Em 14 de maio de 2005, ao circular a gravação do vídeo no qual um graduado funcionário dos Correios recebia um pacotinho de cédulas de um empresário, que, ao todo, somava R$ 5 mil, jamais se poderia imaginar que estavam lançados os dados de um dos maiores escândalos do país –– que manchou a aura política do PT, quase abreviou o primeiro governo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e derrubou a virtual candidatura presidencial de José Dirceu, um dos homens fortes do partido.
» O flagrante de corrupção foi a centelha. A ignição veio com a entrevista, publicada em 6 de junho, do (ainda) cacique maior do PTB, Roberto Jefferson –– que retorna à cena como um dos suportes políticos de Jair Bolsonaro e promotor da aproximação do governo com o fluido Centrão. O então deputado federal acusava o PT de promover um esquema de compra de parlamentares, por R$ 30 mil mensais, para que votassem favoravelmente às matérias de interesse do Palácio do Planalto. Foi o próprio Jefferson que classificou a mesada de “mensalão” –– e batizou o escândalo. E apontou para Dirceu como mentor intelectual do esquema.
» À medida que o novelo se desfiou, surgiu o publicitário mineiro Marcos Valério, que, por causa dos contratos que suas empresas mantinham com o governo federal, fora incumbido de operacionalizar o esquema de corrupção. Ele simplesmente reproduziu, a nível federal, uma manobra que executara no governo de Eduardo Azeredo –– que, anos depois, ficou conhecido como “mensalão tucano” e levou o ex-governador à prisão.
» Jefferson e Dirceu também foram parar atrás das grades e estrelas petistas despareceram da constelação política, como João Paulo Cunha, José Genoíno e Luís Gushiken. O governo Lula balançaria, mas não cairia porque, pela sobrevivência, cedeu cargos na máquina pública para os partidos que hoje compõem o Centrão e, sobretudo, para o então PMDB. Com a base consolidada no Congresso, e a incerteza da oposição capitaneada pleo PSDB sobre os efeitos de um processo de impeachment, o presidente obteria a reeleição e, em 2010, faria sua sucessora –– Dilma Rousseff, que ocupara a Casa Civil em substituição a Dirceu.
» Em 2 de agosto de 2012, o Supremo Tribunal Federal (STF) começou o julgamento dos 38 réus do escândalo –– na denúncia inicial, eram 40 réus, mas dois seriam excluídos. Na acusação, o ex-procurador-geral Antonio Fernando de Souza classificou o escândalo como a ação de uma “sofisticada quadrilha”. Foi sucedido na acusação por Roberto Gurgel, para quem o mensalão era “o mais atrevido e escandaloso esquema de corrupção e de desvio de dinheiro público flagrado no Brasil”.
» A relatoria do caso foi entregue ao hoje ministro aposentado Joaquim Barbosa. O julgamento despertou a ira dos radicais, que tentaram desqualificar o STF e, em vários momentos, o próprio magistrado, que sofreu até intimidação física. Mas nada disso adiantou: ao final, das 112 votações que a Corte realizou do mensalão, o voto de Barbosa foi seguido pelo plenário em todas as ocasiões –– e unanimemente em 96 delas.
“A partir do reforço no aspecto social, Lula obteve um apoio maciço, em especial, do Norte e do Nordeste, que precisavam mais desses recursos, e conseguiu a reeleição. É exatamente essa mesma estratégia que tem sido adotada por Bolsonaro”
André Pereira César, cientista político