Contestação não é via TV ou rede social
Os sucessivos embates do governo com o Supremo Tribunal Federal, por causa do inquérito das fake news, e o desrespeito de apoiadores radicais de Jair Bolsonaro, abriu uma crise entre os poderes, agravada pelo clima de beligerância promovido pelo presidente, que em tom desafiador ao STF disse que “ordens absurdas não se cumprem”. Para a presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), Renata Gil de Alcântara, as instituições brasileiras estão consolidadas. Para ela, a Justiça é que equilibra as relações entre os Poderes. E quem não estiver satisfeito com as decisões prolatadas, que recorra dentro do próprio sistema judicial, e não ao “tribunal” da mídia ou das redes sociais –– diz Renata, em clara crítica a Bolsonaro. A seguir, trechos da entrevista concedida ao CB.Poder, parceria entre o Correio Braziliense e a TV Brasília.
O embate governo federal x Poder Judiciário põe em xeque a democracia?
A gente tem algumas ações que colocam em xeque a democracia, que é jovem, mas bastante consolidada. Temos instituições que são referência no mundo inteiro e falo isso com experiência. Entendemos que esses ataques são pontuais, no entanto são sérios e precisam ter a repressão do Estado.
Como avalia os inquéritos abertos pelo Supremo Tribunal Federal para investigar fake news?
O STF já declarou a validade desses inquéritos e me parece que há elementos consistentes, tanto que eles continuam tramitando, inclusive com a ciência das autoridades competentes da Procuradoria Geral da República.
Por que há incompreensão do presidente Jair Bolsonaro em relação ao Judiciário? Ele alega ser cerceado, que seu poder é tolhido.
O Judiciário é o equilíbrio, faz esse sistema de freios e contrapesos que a Constituição estabelece. É a última porta da cidadania. As decisões judiciais sempre têm lado: o juiz decide pelo autor ou pelo réu e uma das partes sempre ficará inconformada. O que temos é um protagonismo em razão do demandismo. Todas as questões da sociedade são levadas ao Judiciário, e, de acordo com a Constituição, elas devem ser apreciadas em sua totalidade. Quando as questões políticas são levadas, é claro que alguém vai ficar inconformado com a decisão. Temos dito que decisão judicial cabe recurso e o sistema brasileiro, aliás, precisa ter um enxugamento nesse sentido. A contestação deve ser feita por recurso, não pela TV ou por rede social. Temos instrumentos jurídicos consistentes para isso.
Como analisa o fato de o presidente ameaçar não acatar decisão judicial quando foi informado que o STF poderia requerer o acesso aos seus telefones celulares?
Decisão judicial deve ser cumprida, não importa quem seja a autoridade, mesmo a mais importante da República. Continuamos acreditando que todos têm consciência e ciência do seu papel.
Como vê o embate entre União, estados e municípios para definição de regras que devem ser seguidas durante a pandemia? O STF estabeleceu que a maior parte das ações deve ser conduzida por estados e municípios. Acertou?
A decisão teve por base as orientações da Constituição. Nosso sistema é um sistema federativo com autonomia dos estados para deliberar sobre essas questões. Pela Constituição, a competência de estados, municípios e União é concorrente e suplementar. Notamos que, em diferentes localidades, há diferentes índices de contaminação e de respostas. Nesse sentido, a decisão do Supremo respeitou o sistema brasileiro e também as orientações sanitárias.
Na sua opinião, a economia vai ter que dialogar com o direito?
Mais do que nunca. Quem fala muito bem sobre isso é o ministro Luiz Fux. Os juízes precisam estar conscientes deste momento em que a economia interfere diretamente na vida da sociedade e, portanto, nas decisões judiciais.
Nos últimos três meses, vimos a edição de várias leis temporárias. Isso vai interferir nas decisões dos tribunais?
Altera, sim. A gente terá uma nova baliza, um novo olhar. Juiz é um intérprete da lei. A AMB tem capilaridade nacional e tem entregado aos juízes normativas com estudos. Estamos trabalhando muito para que todos tenham ciência e profiram decisões com consistência nessas novas leis.
Existe uma crença de que o Judiciário brasileiro é discriminatório. A sra. concorda com isso?
De jeito nenhum, é o que mais tem acesso no mundo. Digo isso porque a nossa Constituição prevê um amplo acesso à justiça
Sobre as medidas provisórias flexibilizando direitos trabalhistas, haverá sobrecarga da Justiça do Trabalho?
Sim. Vamos ter que contemporizar a pobreza, a necessidade de as empresas se reerguerem e os direitos dos trabalhadores. É um desafio que será bem executado pela Justiça do Trabalho.
* Estagiário sob a supervisão de Fabio Grecchi