O governo Jair Bolsonaro pode ter chegado a um ponto de inflexão, em razão da estratégia adotada pelo presidente para impor suas vontades aos demais Poderes e entes federados. As ameaças ao Supremo Tribunal Federal (STF), os desentendimentos com o Congresso e as frequentes retaliações a governadores e prefeitos, a partir de uma concepção de poder centralizado e vertical, incompatível com a Constituição de 1988, são fatores de instabilidade político-institucional. Ainda mais num ambiente dramático, de crise sanitária e econômica, agravado pelo negacionismo da política de isolamento social para combater a pandemia de coronavírus e pelo colapso do projeto de reformas ultraliberais, diante da recessão econômica.
Houve uma grande mudança de contexto político, econômico e social, ao qual o presidente da República não se adaptou, em razão de um projeto de poder em bases ideológicas incompatíveis com a realidade brasileira e nossas relações com o mundo. Esse projeto sempre foi minoritário na sociedade, mas parecia se impor pela audácia e virulência com que Bolsonaro mobilizou seus apoiadores mais radicais e militarizou seu governo. Tornara-se uma ameaça ao Estado de direito democrático e à coesão nacional, além de um fator de isolamento e desmoralização do Brasil perante as demais nações, sobretudo do Ocidente.
A aposta num governo de viés bonapartista, vanguardeado por setores de extrema direita, como forma de intimidar e se impor aos demais Poderes e entes federados, aproveitando-se da desmobilização da sociedade em razão da pandemia, parece que bateu no teto. As afrontas aos fundamentos do Estado de direito democrático, ao atribuir ao Executivo um predomínio exorbitante em relação aos demais Poderes e personificá-lo na figura do presidente República, acabaram provocando ampla e forte reação da sociedade, que transcende em muito os partidos de oposição. Como num passe de mágica, a sociedade civil passou a defender o Congresso e o Supremo, dos quais havia se distanciado. Deu-se conta dos verdadeiros riscos da situação.
À margem do grupo de generais que formam o Estado-Maior de Bolsonaro — Luiz Eduardo Ramos, na Secretaria de Governo; Braga Neto, na Casa Civil; Fernando Azevedo, na Defesa; e Augusto Heleno, no Gabinete Segurança Institucional (GSI) —, havia um “subgoverno”, que opera contra as instituições democráticas e aposta na ruptura institucional, com métodos de atuação incompatíveis com a ordem democrática. Esse “subgoverno”, comandado pelos filhos do presidente Jair Bolsonaro, está sendo desnudado pelas investigações conduzidas pelo ministro Alexandre de Moraes, com endosso de todo o Supremo Tribunal Federal (STF), sobre as chamadas fake news e as ameaças às autoridades do Legislativo e do próprio Judiciário.
O escândalo
Entretanto, nada é mais comprometedor do que o envolvimento de Bolsonaro e seus filhos com o amigo e “faz tudo” da família, o policial militar reformado Fabrício Queiroz, preso na quinta-feira em Atibaia (SP), por determinação da Justiça fluminense, no inquérito das rachadinhas da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. Por mais que o presidente da República tente se desvincular do caso e seu filho mais velho, o senador Flávio Bolsonaro, diretamente envolvido no escândalo, jure inocência, o fato abalou o esquema de poder de Bolsonaro, porque exuma velhas e perigosas relações com milicianos do Rio.
O potencial catalisador do caso Queiroz alterou a correlação de forças políticas não só fora como dentro do governo. Os militares que ocupam o Palácio do Planalto e a Esplanada dos Ministérios, em número muito maior do que os de qualquer governo do regime militar, não têm como endossar as desculpas do presidente da República sem arrastar as Forças Armadas para o pântano político. Os sinais de que isso estava começando a acontecer foram dados pelas negociações com o chamado Centrão, que reúne os partidos mais fisiológicos do Congresso, uma estratégia de sobrevivência e blindagem política de Bolsonaro que envolve o loteamento de cargos na Esplanada e a distribuição de verbas públicas.
Ao longo da história, até 1985, os militares sempre ocuparam o centro das crises políticas, condicionando seus desfechos. Submeteram-se administrativamente aos governos, como instrumento do Estado, mas, em termos políticos, ocorria exatamente o contrário: os políticos é que dependiam deles para se manterem. Foram um fator de preservação da integridade territorial e da construção do Estado nacional, mas plasmaram um modo de pensar a nação, a sociedade, a política e gestão que não é apenas um repertório de glórias e vitórias. Coleciona, também, muitas escolhas equivocadas e ações condenáveis. Historicamente, eis o drama do “partido fardado”, formado pelos militares com gosto pela política: sempre fracassa, por se colocar acima da sociedade e das instituições, inclusive as suas, que se baseiam na lei e na ordem, na hierarquia e na disciplina.
“Houve uma grande mudança de contexto político, econômico e social, ao qual o presidente da República não se adaptou, em razão de um projeto de poder em bases ideológicas incompatíveis com a realidade brasileira e nossas relações com o mundo”