Politica

Palavra final contra fake news

Por 10 votos a 1, Supremo valida o inquérito que apura ameaças à Corte e disseminação de notícias falsas. Ministros reafirmam o compromisso com a democracia e avisam a Bolsonaro que descumprir decisões judiciais é crime de responsabilidade

Com recados duros ao presidente Jair Bolsonaro, o Supremo Tribunal Federal (STF) concluiu, em sessão realizada ontem, o julgamento de uma ação que contestava a legalidade do inquérito que apura fake news e ameaças aos membros da Corte. Por 10 votos a um, o plenário decidiu dar prosseguimento à investigação, centro de uma crise institucional em Brasília e motivo de revolta entre os radicais bolsonaristas. O presidente do STF, ministro Dias Toffoli, afirmou que quem quer “o confronto como forma de denominação não quer o arbítrio, mas o próprio totalitarismo”.

O chamado inquérito das fake news preocupa o Planalto porque mira vários apoiadores do presidente, como blogueiros e empresários. Eles são suspeitos de integrar uma organização criminosa que ameaça integrantes do Supremo e dissemina fake news. O inquérito tem como relator o ministro Alexandre de Moraes. Contrariado com os rumos da investigação, Bolsonaro chegou a ameaçar descumprir “decisões absurdas” da Corte. Integrantes do governo e apoiadores bolsonaristas também falam em convocar as Forças Armadas para atuarem como poder moderador, apesar de não haver previsão constitucional para a medida.

“Esta Corte atua pela construção permanente de pontes, soluções e consensos, ainda que no nosso dissenso interno. Mas, aqueles que querem destruir, atacar e ameaçar ou afrontar as instituições democráticas deste país terão contra si a força da lei e da Constituição de 1988, da qual este Supremo Tribunal Federal é o máximo guardião”, afirmou Dias Toffoli, ao apresentar um voto favorável à continuidade da investigação. “Quiseram banalizar as instituições como desnecessárias, como inúteis. Quiseram banalizar a política, banalizar a democracia, banalizar a liberdade de imprensa e a liberdade de expressão, e quiseram banalizar o mal. Plantam o medo para colher o ódio. Plantam o ódio para colher o medo. E não se impressionam em contar mortos”, disse o presidente do STF.

“Querem o confronto como forma de dominação, a desinformação como nova religião, e o caos como novo deus. Ao fim e ao cabo, querem, não o arbítrio, mas o próprio totalitarismo. Já passamos por momentos de arbítrio, no passado. Arbítrio que nunca mais voltará. A força e o ódio jamais se tolerará. Quem defende a democracia é a própria democracia, o povo brasileiro, corpo e alma da nação brasileira”, continuou Toffoli.

Já o decano da Corte, ministro Celso de Mello, afirmou que o descumprimento de ordem judicial, quando cometido por chefe de Estado, configura “crime de responsabilidade” e também pode ser punido penalmente. “Contestar decisões judiciais por meio de recursos ou de instrumentos judiciais idôneos, sim; desrespeitá-las por ato de puro arbítrio ou de expedientes marginais, jamais, sob pena de frontal vulneração do princípio fundamental que consagra, no plano constitucional, o dogma da separação de Poderes”, disse. “Na realidade, o ato de insubordinação ao cumprimento de uma decisão judicial, seja ela monocrática ou colegiada, por envolver o descumprimento de uma ordem emanada do Poder Judiciário, traduz gesto de frontal transgressão à autoridade da própria Constituição da República”, acrescentou o decano do STF.

“Desobedecer sentenças do Poder Judiciário significa praticar gesto inequívoco de desprezo inaceitável pela integridade e pela supremacia da lei fundamental do nosso país. É tão grave a inexecução, é tão grave o descumprimento de decisão judicial, por qualquer dos Poderes da República ou por qualquer cidadão, que, tratando-se, por exemplo, do chefe de Estado, essa conduta presidencial configura crime de responsabilidade”, alertou.

O julgamento concluído ontem foi motivado por uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPC) apresentada pelo partido Rede Sustentabilidade. A legenda questionou a legalidade do inquérito, que foi aberto de ofício, em março do ano passado, pelo presidente do STF, ministro Dias Toffoli, ou seja, sem a provocação da Procuradoria-Geral da República (PGR). O partido também contestou o fato de Alexandre de Moraes como relator do inquérito, sem que tenha havido sorteio entre os ministros.

Durante o julgamento, a maioria do plenário reafirmou a prerrogativa do STF para, com base no artigo 43 do Regimento Interno do tribunal, instaurar inquérito para investigar ameaças a seus ministros. Votaram a favor do prosseguimento das investigações os ministros Edson Fachin, relator da ação em julgamento, Luiz Roberto Barroso, Alexandre de Moraes, Rosa Weber, Luiz Fux, Carmen Lúcia, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes, Celso de Mello e Dias Toffoli.

Tribunal de exceção
O ministro Marco Aurélio Mello foi o único dos membros do Supremo Tribunal Federal (STF) a votar a favor da (ADPF). Ele afirmou que a Suprema Corte está agindo de forma inquisitorial, contrária ao sistema jurídico brasileiro. Para validar seu argumento, o ministro apontou as diferenças entre o sistema acusatório e o inquisitorial. “Se um órgão que acusa é o mesmo que julga, não há garantia de imparcialidade, e haverá tendência em condenar o acusado, o que estabelece posição de desvantagem do acusado na partida da ação penal. O inquérito inquisitorial diminui a confiança e a credibilidade do sistema de justiça. O viés de um juiz confirmar, na sentença, sua própria acusação é uma variável que não pode ser descartada no sistema inquisitorial”, afirmou o magistrado.

Marco Aurélio também destacou a importância de retirar do poder judiciário qualquer função persecutória, exclusiva do Ministério Público. Diferentemente dos demais colegas, ele afirmou que o artigo 43 do regimento interno do STF, que garantiria a capacidade da corte de abrir um inquérito, não foi aceito pela Constituição Federal de 1988. Marco Aurélio usou argumentos de um trabalho de autoria da ex-procuradora geral Raquel Dodge. “Para que o princípio central que anima o sistema acusatório seja realmente alcançado, garantir julgamentos de juízes imparciais e neutros, não basta que o juiz que julgue não seja o mesmo que acuse. É necessário, também, que o juiz que julgue não seja o mesmo que investigue os fatos que, a seguir, constarão na acusação. O juiz que investiga se vincula e a emoção está presente na vida de todos nós. Se vincula, ainda que inconscientemente, aos resultados da sua investigação, o que lhe diminui a capacidade de avaliar, com distanciamento, a acusação posteriormente feita por outro órgão”, citou.

“Presidente, estamos diante de um inquérito natimorto. Diria mesmo um inquérito do fim do mundo, sem limites. Peço vênia à maioria acachapante de oito votos para dissentir. Eu faço acolhendo pedido formulado na ADPF para fulminar o inquérito, porque o vício inicial contamina a tramitação. Não há como salvá-lo em que pese a ótica revelada posteriormente pela mesma PGR”, proferiu.