Dois atos com bandeiras opostas, realizados em 31 de maio, na Avenida Paulista, na maior cidade do país, colocaram em xeque o distanciamento da Polícia Militar em relação ao cenário político. Por lei, por ser uma instituição de Estado, a PM deve se manter neutra em relação à ideologia e aos interesses pessoais dos ocupantes de cargos eletivos. No entanto, na prática, no país afora, é comum encontrar, em grupos nas redes sociais, mensagens de apoio ao presidente Jair Bolsonaro entre integrantes da corporação. Em Brasília, em 24 de maio, policiais chegaram a posar para foto com uma parlamentar bolsonarista em frente ao Palácio do Planalto, sede do Executivo. Grande parte dos militares das Forças Armadas evita manifestações partidárias e mantém um silêncio protocolar, seja pela internet, seja durante o trabalho. Na PM, a história é outra.
Ao contrário das Forças Armadas, que são divididas em três comandos que definem regras e passam ordens para seus subordinados em todo o país, a Polícia Militar está sob gestão dos governadores e comandantes nomeados em cada unidade da federação. Mesmo apoiada por associações de classe, uma Lei Orgânica nacional da categoria, que poderia unificar padrões de conduta, regras e definir punições para desvios de conduta, não saiu do papel. No ato da Paulista, houve forte repressão ao grupo que se manifestava contra o presidente e pedia maior combate ao racismo. Os ativistas alegam que foram alvos de ataques mesmo sem esboçar qualquer ato hostil ou ameaçar a ordem pública. O governador João Doria afirmou que os militares agiram para evitar vandalismo e depredação. Em nota, a Secretaria de Segurança Pública informou que houve “briga generalizada na avenida” e que a "PM atuou para impedir o conflito entre os grupos antagonistas”.
No entanto, Doria ressaltou que “algumas imagens publicadas nas redes sociais estão sendo avaliadas pela corregedoria”. Ele destacou que “se houve erros, quem errou deve ser punido”. Um cabo da Rocam escreveu, no Instagram, mensagens consideradas ameaçadoras pelos manifestantes que se organizaram para protestar contra o governo. “Hoje tem manifestação no Largo da Batata e os antifas querem marcar presença. Eu quero cassetar o lombo dos baderneiros”. No Rio de Janeiro, em vídeo gravado pelo deputado Daniel Silveira (PSL), afirmou que havia mandado atear fogo em uma bandeira carregada por manifestantes que pediam impeachment do presidente Jair Bolsonaro.
O professor Ricardo Caichiolo, cientista político e PhD em Ciências Sociais e Políticas pela Université Catholique de Louvain, na Bélgica, afirma que a tendência pró-governo nas corporações pode ser percebida desde o segundo semestre de 2018. “Durante a campanha presidencial de 2018, já houve um alinhamento do discurso entre o então candidato Jair Bolsonaro e o da categoria dos policiais militares. Já eleito presidente, ele se posicionou favoravelmente à adoção de regras mais brandas de aposentadorias para a categoria na reforma da Previdência e enviou ao Congresso Nacional, no final de 2019, projeto que prevê a excludente de ilicitude por ações realizadas durante operações de Garantia da Lei e da Ordem. O apoio de uma parcela importante do conjunto dos policiais militares foi obtido por meio da recente articulação realizada pelo presidente junto aos representantes de associações de policiais militares para a elaboração de uma proposta de lei orgânica, que é uma das pautas prioritárias dos PMs há anos”, explica.
Eduardo Galvão, professor de Relações Institucionais do Ibmec-DF, também avalia que existe um alinhamento com a visão política do presidente, muitas vezes conquistado ao custo de mudanças na legislação e obtenção de benefícios aos policiais. No entanto, ele avalia como remota a possibilidade de investidas autoritárias da tropa, tanto das Forças Armadas, quanto das polícias contra as instituições democráticas. “Existe um receio de setores da sociedade de que as Forças Armadas ou a Polícia Militar possam ser braços armados atuantes no caso de uma ruptura institucional, um golpe. Mas há bastante ruído e imprecisão nessa narrativa. Representantes da PM negam que haja uma politização da corporação, mas é fato que há uma empatia pelo discurso bolsonarista”, destaca.
O especialista ressalta que existe uma cadeia de comando, que teria que ser confrontada para que um ato contra a lei fosse levado adiante. “Mas para imaginarmos um cenário em que todos os policiais iriam às ruas como tropa política, para isso acontecer, seria necessário que todos tivessem esse alinhamento, virassem as costas para sua corporação e desobedecessem a toda sua cadeia de comando, de sargentos a coronéis. A probabilidade de isso acontecer é baixa”, completa.
Afinidade ideológica
No centro da capital federal ocorreu a cena mais emblemática envolvendo a participação política de PMs dos últimos protestos. Um grupo de policiais militares posou para uma foto em frente ao Palácio do Planalto, junto a deputada Carla Zambelli. A parlamentar, que mantém apoio irrestrito ao presidente Jair Bolsonaro, vestia uma camiseta que declara apoio ao chefe do Executivo. Na cabeça, Zambelli usava um boné com o nome da Aliança Pelo Brasil, partido que está em fase de criação e tem Bolsonaro como principal figura. Horas depois, um dos PMs que aparecem na foto postou a imagem em um grupo no Facebook, que reúne milhares de policiais. Na legenda, o militar escreveu a hashtag “#FechadoComBolsonaro”. No mesmo espaço, ocorrem postagens diárias em apoio ao chefe do Executivo.
Rafael Alcadipani, membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, afirma que a ideologia impede a PM de atuar com imparcialidade em alguns momentos. “Acho que existe um alinhamento ideológico natural. Isto afasta a capacidade das polícias militares de se mostrarem neutras em manifestações”, avalia.
Quanto ao ato dos policiais na Esplanada, ele afirma que a atitude não deveria ser tolerada pelo comando da corporação. “Eu vejo que falta pulso firme nos comandos. Em nenhuma polícia no mundo seria autorizado um ato como este. Os policiais seriam claramente punidos e o comando rapidamente se declararia contrário a isso. No momento em que o comando da Polícia Militar de Brasília não toma nenhuma atitude, ele é conivente com o que está acontecendo”, completa.
Ao Correio, a Polícia Militar do Distrito Federal afirmou que a “postagem do policial militar em sua rede social privada não fere a regulamentação”. De acordo com a instituição, “o policial tem o direito de expressar seu apoio em rede social privada, caso não esteja ferindo o ‘Sentimento de Dever’, a ‘Honra Pessoal’, o ‘Pundonor Militar’ e o ‘Decoro de Classe’, que compõem a Ética Militar”. A PMDF informou, ainda, que é plural e respeita a opinião de seus integrantes, desde que ela se baseie nas normas de conduta e leis do país. “Por fim, a PMDF possui uma corregedoria isenta, atenta e atuante. Qualquer caso que fira as normas em vigor será alvo de investigação”.
Intervenção militar no debate entre Poderes
Nos últimos meses, discussões envolvendo o papel das Forças Armadas sofrem uma perigosa escalada nos Poderes democraticamente constituídos. A Constituição Federal, que em outubro completa 33 anos de promulgação, parece não ter sido suficiente para deixar claro as competências do Exército, Marinha e Aeronáutica. O que se resumia a incitação por parte de apoiadores do presidente de uma ilegal evocação do artigo 142 da Carta Magna, conclamando intervenção militar, agora se converteu em ações no Supremo Tribunal Federal e em manifestações oficiais do governo.
Em entrevista à Veja publicada na última sexta-feira, o general Luiz Eduardo Ramos, ministro chefe da Secretaria de Governo, afirmou que “é ofensivo” dizer que as Forças Armadas vão tomar o Poder. No entanto, na mesma fala, o militar, que ainda compõe os quadros da ativa do Exército, deu a entender que existe um limite de tolerância para que as tropas federais se mantenham dentro da conduta prevista legalmente. “É ultrajante e ofensivo dizer que as Forças Armadas, em particular o Exército, vão dar golpe, que as Forças Armadas vão quebrar o regime democrático. O próprio presidente nunca pregou o golpe. Agora, o outro lado tem de entender, também, o seguinte: não estica a corda”, declarou Ramos.
O ponto de maior tensão até agora ocorreu em 19 de abril, quando o presidente Jair Bolsonaro foi até a Avenida Duque de Caxias, em Brasília, e participou de um ato em frente ao Quartel General do Exército (QGEx). No local, apoiadores do chefe do Executivo pregavam o fechamento do Congresso e do Supremo. O fato provocou alerta no meio militar no momento em que ocorria. Além dos riscos à segurança pessoal do presidente, a imagem dele em frente ao comando do Exército foi considerada extremamente controversa e que afasta a força do prestígio concedido pela população. “Nós não queremos negociar nada. Nós queremos é ação pelo Brasil. O que tinha de velho ficou para trás”, disse o presidente, na ocasião.
Na mesma sexta-feira em que Luiz Eduardo Ramos advertiu a oposição para “não esticar a corda”, o ministro Luiz Fux, do Supremo Tribunal Federal (STF), afirmou, em decisão liminar, que as Forças Armadas “não são poder moderador”. E destacou que Exército, Marinha e Aeronáutica “não podem interferir nos Poderes”. O magistrado manifestou-se em uma ação apresentada pelo PDT no Supremo. O partido questionou trechos de leis que regulamentam a atuação dos militares. De acordo com Fux, o poder dado ao presidente da República de chefe das Forças Armadas é limitado, e esta competência não pode ser usada para “qualquer interpretação que permita sua utilização para indevidas intromissões no independente funcionamento dos outros Poderes”.
A decisão do ministro, que ainda deve passar por avaliação dos demais integrantes da Corte no plenário, revela o ponto de tensão institucional que se alcança com as recentes e constantes referências as Forças Armadas. Poucas horas depois, em resposta ao Supremo, o Planalto divulgou uma nota, afirmando que “as Forças Armadas estão sob a autoridade suprema do Presidente da República, de acordo com o Art. 142/CF”. O texto destaca que os militares podem agir sob determinação de qualquer um dos Poderes e que a decisão de Fux “bem reconhece o papel e a história das Forças Armadas sempre ao lado da Democracia e da Liberdade”. Embora tenha tom compatível com texto constitucional, a resposta, assinada pelo presidente Jair Bolsonaro, pelo vice-presidente, Hamilton Mourão, e pelo ministro da Defesa, Fernando Azevedo, foi vista como uma provocação pelo Poder Judiciário.
Ontem, à Folha de S.Paulo, o vice-presidente da República, Hamilton Mourão, afirmou que as Forças Armadas “se mantêm firmemente disciplinadas” e que seu papel tem sido tratado de forma “preconceituosa” no noticiário. “Não existem militares fardados dando declarações políticas e participando de manifestações, ou seja, as Forças Armadas se mantêm firmemente disciplinadas”, disse Mourão, que é general da reserva do Exército.